O conto de Jorge Luís Borges “A loteria de Babilônia” tem um dos parágrafos iniciais mais compactos que já vi na literatura, condensando anos de História e uma porção de situações complexas em umas poucas linhas. É uma lição aprendida com Edgar Allan Poe, outro mestre na arte de resumir situações complexas no início do conto. No texto de Borges, o narrador assim exemplifica um dos exóticos rituais que vigoravam em sua sociedade: “Durante um ano da lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam”.
Esta condição de ser declarado invisível me lembra uma expressão tipicamente paraibana: “dar um gelo”. Imagino que muitos dos leitores já terão dado um gelo em alguém, ou, pior, levado um gelo no meio de uma turma. Dar um gelo significa não dar atenção a uma pessoa, fazer de conta que ela não existe. Às vezes o gelo ocorre espontaneamente. Estamos numa mesa de bar e um chato, um Penitente, se aproxima; tratá-lo com indiferença pode fazer com que bata em retirada. Outras vezes, é uma atitude permanente. Há um complô, uma sabotagem declarada contra Fulano. Ele chega, cumprimenta... recebe resmungos como resposta, ou nem isso. Pergunta algo ao grupo e os outros se fazem de moucos. Ninguém o encara. Todos silenciam quando ele fala, e aí mudam de assunto. Numa situação dessas já vi o cara que leva o gelo dar um soco no peito de outro e o outro se levantar, dizer “eu vou lá fora”, e ir embora. Sem passar recibo.
O gelo se amplia em punições sociais maiores. A imprensa, por exemplo, é especialista em dar um gelo em figuras que se tornam deletérias por seus defeitos, ou se tornam malditas por terem pisado nos calos de alguém importante. Políticos, artistas, esportistas, ninguém está livre de receber um gelo tácito dos meios de comunicação. Seu nome só aparece, na melhor das hipóteses, em fichas técnicas e enumerações muito extensas. E olhe olhe.
Temos muitos termos ténicos para definir o gelo. A expressão “persona non grata”, por exemplo, é utilizada nos meios políticos e diplomáticos para vedar a algum indivíduo o acesso a um Estado ou a um país. É o corte de relações diplomáticas com um indivíduo específico. Outro termo muito comum é “lista negra”, a lista de pessoas cujo nome não pode aparecer nos meios de comunicação, ou não podem exercer um cargo público, ou não podem sequer ser empregadas por empresas privadas, como foi o caso da famosa “lista negra” de roteiristas e diretores de Hollywood, suspeitos de serem simpatizantes do comunismo durante a época do macartismo.
Um gelo faz nossa auto-estima cair abaixo de zero. Já vi jogador de futebol entrar no segundo tempo, e sair no fim do jogo sem ninguém passar-lhe a bola. Já vi sujeito numa festa ficar zanzando de grupo em grupo, e as pessoas olhando através dele como se ele fosse um holograma. No mundo das socialaites e dos playboys, o gelo é uma diversão elevada a Arte, como a fofoca e a paquera.
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