terça-feira, 22 de maio de 2018

4349) Dez álbuns: 5 - "Rain Dogs" (22.5.2018)






Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.

Corria o ano de 1985, 86 e eu cheguei, certa noite, no quarto-e-sala de Lenine e Anna, lá no Jardim Botânico, onde estava uma turma sentada ouvindo um disco com a atenção de quem escuta um holograma de Hari Seldon.

Não era: era Rain Dogs, o disco de um desconhecido chamado Tom Waits, que Alex Madureira advertiu logo de cara: “É a sua cara, B. Tavares”. E era.

Link para o disco:

Eu tenho uma relação engraçada com o rock, porque para mim o rock seria uma espécie de síntese entre as festas de rua de New Orleans e a tecnologia da Nasa, ou seja, depois de uma fagulha como essa não há fogo que não pegue. Fausto Fawcett costuma dizer que por dentro de todo Jetson existe um Flintstone, e para mim o rock é isso, distorção elétrica e bombos tribais.

Tom Waits tinha uma dimensão a mais, um viés numa direção harmônica e cançonetista que sem deixar de ser tipicamente norte-americana me toca como uma coisa muito próxima de certa música brasileira. É rock, mas é um rock da Lapa, um rock Praça Tiradentes, um rock com perfume de lupanar, não para grandes multidões, mas para pequenos salões com pista de dança e palquinho mambembe.

Boa parte das canções de Rain Dogs são acompanhadas por uma espécie de bandinha roufenha, desafinada, com sopros, cordas e sanfonas, como se fosse aquilo uma meia-dúzia de músicos que tocam pela bebida e não por um cachê, e que depois de acabada a bebida naquele botequim eles descem do palco, enfileirados e cambaleantes, e saem à rua, às 3 da madrugada, sob neve e vento frio, com um Hermeto Paschoal meio catacego a guiá-los, e lá vão eles tocando, bradando impropérios, aos escorregões, dando a volta ao quarteirão e se encaminhando por sensibilidade telepática rumo ao penúltimo puteiro ainda aberto.

E a guitarra. A guitarra está para o rock assim como a espaçonave está para a ficção científica. É uma espécie de senha, de password, uma espécie de “pra entrar aqui tem que saber o que é isso”, mas muita gente confunde os sinais e pensa que vai abrir uma porta para um lugar onde só existem guitarras (ou um lugar onde só existem espaçonaves).

Isso é um erro. O rock não é uma instrumentação. O rock é um estado de espírito. (Não, por favor, não me deixem repetir essa platitude tão constrangedora. Esse clichê é a coisa menos rock do mundo. Quem “é um estado de espírito” é a canção romântico-agrícola do Brasil Central.)

O rock é um estado do corpo, uma espécie de corrente elétrica que se projeta pela medula espinhal e se ramifica por onde quer que haja neurônios e outras partículas equivalentes.

Daí que me parece um desperdício total não utilizar no rock instrumentos tão cheios de possibilidades quanto o bombardino, o xilofone, as maracas, o trombone de vara, o bandoneon, o clavicórdio, o berimbau-de-boca, o cajón, o clarinete, a tuba... E vou parar por aqui, vocês já captaram a idéia; senão este parágrafo vai ficar parecendo aqueles trechos do “Cara de Bronze” onde Guimarães Rosa despejou miliduzentos nomes de ervas e arbustos mineiros.

Daí que uma das minhas primeiras bandas de rock preferidas tenha sido The Band – em parte pelo fortíssimo trio guitarra-baixo-bateria formado por Robbie Robertson, Rick Danko e Levon Helm, mas em grande parte também pelas iluminuras sonoras proporcionadas pelos sopros e teclados de Garth Hudson e Richard Manuel.

Esse tempero timbrístico se enriqueceu com o rock jazzeado do Blood, Sweat & Tears, mas o crescimento da música soul nos anos 1970 foi puxando tudo cada vez mais para uma música eletrificada para grandes bailes. E não era isso. Eu queria ouvir uma coisa meio cabaré berlinense nos anos 1930, uma coisa com pegada roqueira mas com uma injeção poderosa de music-hall, de café concerto. E letras de expressionismo poético informado pelo Dadaísmo dos anos 1910 e pelo pop dos anos 1950. Um rock que tivesse sido alimentado com canções de Brecht & Kurt Weill.

Tom Waits, na primeira audição de Rain Dogs, me trouxe de volta essas sonoridades, e me agasalhou quentinho o coração com aquela surpreendente voz de um Louis Armstrong redneck.

Tinha guitarra? Tinha sim senhor. Um tal de Marc Ribot que, sabiamente, em vez de tentar emular a ululação lancinante de um Clapton ou um Jimmy Page, ficava pontilhando umas notinhas dissonantes, secas, cristalinas. Uns solos-de-acompanhamento iguaizinhos um bordado feito no camarim por uma cantora meio doidona cujos pontos acompanham a linha riscada sem nunca se cravar em cima dela mas sem perder-lhe o rumo.

Rain Dogs tem uma porção de ritmos que eu mal e mal reconheço – diria até que tem polca, tem mazurca, tem valsa? Tem rock?

Algumas canções são desabafos truculentos, canção de marinheiro esbravejante, como “Cemetery Polka”, “Singapore”, “Rain Dogs”. Outras são semiboleros à luz-negra no Recife Velho, como “Jockey Full of Bourbon”, pra balançar os quadris, ou “Hang Down Your Head”, pra fungar agarradinho. Ou então uma marcha fúnebre em dia de chuva para um garimpeiro de Serra Pelada, como “Diamonds & Gold”.

Sim, tem uma seresta feita por um violonista e um sanfoneiro ao pé de uma escada-de-incêndio numa madrugada num beco onde ninguém escuta, como “Time”. Tem um monólogo noturno de Philip Marlowe, fumando à janela do escritório enquanto espera o telefone tocar (“9th & Hennepin”).

É uma poética suja de sarjeta, com olho para tipos sociais captados com um nome-de-guerra e dois traços meio caricaturais, como nos versos de Aldir Blanc ou Itamar Assumpção. Imagens que seriam surrealismo puro se não evocassem de cara os quadrinhos urbanos-FC de Alan Moore ou Warren Ellis. Waits é um poeta que bebeu tanto quanto Dylan nas fontes brechtianas da decadência metropolitana, não a decadência dândi dos granfinos que cruzam a madrugada em busca de sensações novas, mas a dos boêmios de bolso furado para quem a madrugada é um globo-da-morte onde basta estar ligado e seguir o fluxo, e tudo vai dar certo.

E voltando àquele capítulo inicial: na época acabamos formando (Lenine, Lula Queiroga, Ivan Santos e eu) uma banda conceitual intitulada “Wolf Gang” – pouco tempo antes, Amadeus de Milos Forman tinha sido o grande sucesso no cinema, e todo mundo danou-se a escutar Mozart.

Passamos meses ensaiando, nunca subimos num palco (falei que era uma banda conceitual), mas meia dúzia de músicas foram compostas, entre elas “Mais Além” (gravada depois por Lenine, além de Ney Matogrosso e Rhana). Que de início pretendia ser um plágio de “Clap Hands” de Waits, mas depois, como todo rock, acabou encontrando um caminho próprio. Pra vocês verem as coisas como são.