segunda-feira, 22 de março de 2021

4686) O vampiro e a vanguarda (22.3.2021)




O que a gente chama de obra de vanguarda são obras que, paradoxalmente, muitas vezes refletem sobre o passado, sobre a retaguarda, propondo uma revisão de coisas que tínhamos como certas e definitivas – como a linguagem de uma arte qualquer, a pintura, a música, o cinema.
 
Estamos plácidos, satisfeitos, contentes com o que já sabemos e o que já dominamos. E certas obras de vanguarda vêm nos cutucar e nos perguntar: “Tem certeza de que é isso mesmo?”.
 
São as obras que nos convidam à famosa “ressignificação”, palavrinha que anda na ponta da língua de todo mundo. Vamos ressignificar. Vamos repensar. Vamos reinventar. Vamos redefinir. Como é mesmo essa história de que o Far-West americano era todo limpinho?... De repente aparece uma coisa plebéia e mal-educada como o “western spaghetti”, cheia de Ringos e Djangos bêbados, cuspindo, malcheirosos, caubóis que trocam de calça um vez por ano... Olhem só, era um cinema que ressignificou uma indústria inteira. Era de vanguarda, e a gente não sabia.



Alguém poderia fazer um filme de vanguarda com vampiros? Desta vez não falo apenas em filmes comerciais que questionam o gênero dentro do próprio gênero. Estou pensando num filme como Cuadecuc Vampir, de Pere Portabella (1970). É como a história de Drácula narrada por Andy Warhol. Ou como o Nosferatu de F. W. Murnau refilmado por Jean-Luc Godard – não o de Viver a Vida; o de Imagem e Palavra.
 
O filme está aqui, no YouTube, para tranquilizar os leitores que se queixam às vezes (com razão) de que eu gosto de comentar filmes que ninguém viu, ninguém tem, ninguém encontra:
 
https://www.youtube.com/watch?v=6yu4K6GPWCY&ab_channel=Nicol%C3%A1sValencia


Em 1970, o diretor espanhol Jesus Franco queria adaptar o romance Drácula (1897) de Bram Stoker, com Christopher Lee no papel principal, e garantiu ao ator que seria uma adaptação fiel. Lee partiu para a Espanha, pois dizia já estar enjoado de fazer o vampiro em histórias sem pé nem cabeça, muitas vezes mais próximas do ridículo do que do terror.
 
O filme, Conde Drácula (1970), não saiu grande coisa, mas tem pelo menos dois elementos ausentes nos demais: a presença do norte-americano Quincey Morris, personagem importante do livro, que todas as adaptações resolveram limar; e mostra um Conde que começa velho e vai remoçando à medida que saboreia o sangue das moças londrinas. É um filme relativamente fiel ao livro, mas vagaroso, cheio de planos desnecessários, com um elenco esforçado (tem até o doido Klaus Kinski no papel do doido Renfield) mas nem sempre eficaz.


O crítico Jonathan Rosenbaum, cuja opinião respeito muito, o considera “um dos piores filmes de horror já feitos”, mas faz a ressalva de que sem ele não existiria este média-metragem de Pere Portabella, que ele considera um “filme prodigioso”. Cobrindo para o Village Voice o Festival de Cannes de 1971, Rosenbaum achou o filme de Portabella “o filme mais original do festival e o mais sofisticado em seu audacioso modernismo”.
 
(Foi o ano em que foram exibidos Morte em Veneza de Visconti, The Go-Between de Joseph Losey, Johnny Got His Gun de Dalton Trumbo, O Amanhã Chega Cedo Demais de Jack Nicholson, Procura Insaciável de Milos Forman, Pindorama de Arnaldo Jabor, THX-1138 de George Lucas e outros.)
 
Aqui, o comentário de Rosenbaum:
https://news.google.com/newspapers?id=J3pIAAAAIBAJ&sjid=H4wDAAAAIBAJ&pg=6434,5448189



O que é o filme? Bem, enquanto Jesus Franco fazia seu Conde Drácula, que mesmo com toda fidelidade stokeriana não é melhor que as produções da Hammer Films naquela época, Portabella rodava com sua câmera os mesmos planos, fazendo uma espécie de “making of” do filme do outro. Cuadecuc Vampir é uma mistura de filme de ficção (porque acompanha tintim por tintim a narrativa do filme de Jesus Franco) e documentário, porque mostra em planos rápidos mas evidentes o trabalho da equipe, dos cinegrafistas, dos técnicos de efeitos especiais (soprando neblina, ajeitando maquiagem, etc.) e momentos de descontração dos atores, que sorriem e acenam para a câmera mesmo quando estão com a boca coberta de sangue, entre uma tomada e outra.

 
O filme é mudo, e tem a fotografia completamente estourada, em preto-e-branco (o filme de Jesus Franco é colorido), o que o deixa muito parecido com o Nosferatu de Murnau. Na trilha sonora, nenhuma voz dos atores, somente sons aleatórios – e entra aí o elemento Godard. Estrondos, pancadas soturnas sem qualquer sincronia com o que aparece na tela, inserção brusca de música orquestral melosa, rapidamente cortada... A trilha sonora é uma sucessão de silêncios e sustos.
 
Os últimos minutos do filme têm pela primeira vez som sincronizado, e mostram Christopher Lee, sentado no camarim, lendo um trecho do romance de Bram Stoker, onde é descrita a cena da morte do vampiro.


Cuadecuc (que significa algo como “a cauda da cobra”) pertence ao ramo desconstrutivo das vanguardas, em que alguém pega uma obra muito conhecida do público e nela interfere com ruídos, paródias, cortes, justaposições, comentários, variantes etc. 
 
Obras desse tipo são uma homenagem ao original, mesmo quando o menosprezam, pois não existiriam sem a fama do original. Quando Marcel Duchamp põe um par de bigodes na Mona Lisa essa piada herética só tem graça porque a Mona Lisa é “o quadro mais famoso do mundo”, como qualquer pesquisa DataFolha feita na Avenida Paulista pode comprovar. É preciso haver uma estrutura já conhecida para que a desconstrução vanguardista aconteça.
 
A história de Drácula é de conhecimento público, de modo que qualquer espectador irá entendendo quem é o rapaz que chega àquela cidade antiquada, de lá pega uma diligência, salta numa floresta brumosa, é levado para um castelo onde mora sozinho um velho imponente que lhe serve jantar mas não se alimenta... E de noite aparecem três moças bonitas e meio dentuças...
 
As peripécias do romance já foram glosadas e reglosadas em dezenas de filmes, quadrinhos, romances menores. O que há de interessante é que Portabella está recontando ao mesmo tempo um clássico da literatura de terror (Drácula, de Bram Stoker), um clássico do filme de terror (Nosferatu, de Murnau) e um filme de terror colorido, contemporâneo, que está sendo feito ao mesmo tempo por um amigo seu (Conde Drácula, de Jesus Franco).


(Pere Portabella)
 
Os antropólogos dizem que não há duas versões de um mito que sejam idênticas, e que nenhuma delas reúne todos os elementos do mito. É preciso reunir e superpor o maior número possível delas, para que as repetições e confirmações comecem a encorpar a narrativa mítica fundamental. O mesmo ocorre na cultura de massas, quando uma história “cai no gosto” das multidões e durante mais de um século é recontada mil vezes.
 
A vanguarda interfere nesse processo, não para confrontá-lo, talvez, mas para dar-lhe uma sacudidela, ver até que ponto ele está com os parafusos bem apertados, sentir até que ponto uma platéia pode assistir uma hora inteira de filme sem som (ou com som estridente e randômico) e ainda assim passar recibo de que viu a história do Conde Drácula.
 
Histórias clássicas dessa envergadura tendem à diluição e à esclerose quando são recontadas pela linguagem do cinema comercial, que é sempre datada, sempre conservadora. É o que ocorre com o filme de Jesus Franco, apesar da sua boa disposição em ser “fiel à obra original”.
 
A interferência vanguardista e herege de Portabella transforma uma história concebida para provocar um confortável terror (finalidade do cinema comercial) numa história que não aterroriza mas incomoda. O que é sempre bom de vez em quando.