É um poema intitulado “The Lucky”, e faz parte da bela série de 20 poemas intitulada “The Quest”, de 1940 (aqui: http://bit.ly/1fOrJZb). Estruturalmente é um quase-soneto de 14 linhas com estrofes 6-6-2 (rimando ABCACB – ABCACB - DD); as linhas são de metro variável, a maioria em decassílabos (até onde consigo escandi-los de ouvido), sendo algumas delas, na engraçada nomenclatura do verso inglês, “pentâmetros iâmbicos” (di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM). Não traduzirei o poema. Tentar traduzir, mantendo o sentido, um poema rimado e metrificado é como pegar um carro e querer ir ao mesmo tempo pro sertão e pra capital.
Começa
pelo título. “O Sortudo” é nome de desenho animado, “O Afortunado” parece vestir
um terno de linho branco. Tem um buraco na língua portuguesa para um termo tão
simples como “lucky”. Auden questiona:
“Digamos
que ele tivesse dado ouvidos ao comitê de eruditos: só ficaria sabendo onde não
devia procurar. Digamos que o cão obedecesse ao chamado do seu assobio: a
cidade soterrada nunca teria sido descoberta. Digamos que ele tivesse mandado
embora a criada descuidada: o criptograma nunca teria caído das folhas do
livro”. Pequenas decisões, pequenas encruzilhadas, pequenos acasos de que
dependem as grandes descobertas e aventuras.
“’Não
fui eu!’, ele exclamou, quando, firme e perplexo, tropeçou no crânio de alguém
que viera antes. ‘Um refrão absurdo brotou na minha mente e deixou desmontada a
Esfinge do intelecto; conquistei a Rainha porque meu cabelo era ruivo; essa
aventura terrível é um tanto chata.” E
conclui: “É este o tormento dos que falharam: ‘Eu estava condenado desde o
princípio, ou teria vencido, caso tivesse fé na graça divina?”.
Isto
é um arremedo questionável do original, sem poesia, mas dane-se a poesia por
enquanto. Auden era um poeta religioso com profundas crises metafísicas, destino
dos poetas religiosos (como é possível crer naquilo tudo sem que a Razão esperneie
de vez em quando?). As grandes jornadas,
as grandes demandas, as grandes empreitadas heróicas dependem de coincidências,
detalhes, escolhas involuntárias. Nunca sabemos se nossa consagração ou nossa
catástrofe são mesmo nossas.