domingo, 9 de março de 2008

0146) O matagal nos jardins do idioma (9.9.2003)



(Ilustração: o manuscrito Voynich)

A língua brasileira é muito rica e, como não poderia deixar de ser, tem certas curiosidades que me deixam intrigado. Como por exemplo essa frasezinha aí em cima, entre vírgulas. É tão dispensável quanto o nosso apêndice vermiforme, mas, tal como ele, parece que só pode ser extirpada do nosso discurso à base de bisturi. Pela minha lógica, quando uma coisa não poderia deixar de ser desta ou daquela forma, o que ela é de fato torna-se tão óbvio que deveria dispensar este comentário; mas não é o que acontece. “O Senador Fulano e o Ministro Sicrano encontraram-se para jantar em Brasília e, como não poderia deixar de ser, conversaram sobre a reforma tributária.” Creio que um “naturalmente” ou um “é claro” cumpririam a mesma função, chamando menos a atenção para o fato de que se está dizendo uma coisa auto-evidente. Esta frase parece-se muito com o francês “ça va sans dire”, onde se diz que não era preciso dizer algo que acabou sendo dito porque era mesmo necessário.

Já uma erva daninha que vive a se infiltrar pelas frestas do discurso oral é o tal “enfim”. No começo era usado para encerrar uma enumeração que se estendia demais, mas agora já substitui a própria enumeração. Dizia-se: “Este curso de informática tem como público-alvo professores, estudantes, jornalistas, escritores, secretárias, enfim – todas as pessoas que lidam diariamente com a palavra escrita”. O “enfim” surgia como uma palavra mágica que queria dizer “Chega, tá bom, vamos interromper esta lista senão ela não acaba mais”. Era até uma expressão meio antipática, indicando uma certa impaciência de quem falava, além de certa subestimação da inteligência do interlocutor; como se a pessoa estivesse dizendo: “... enfim – acho que você já entendeu, posso parar de exemplificar?” Pois hoje em dia a impaciência parece ter aumentado, porque o que ouço com mais freqüência são frases como: “A gente decidiu fazer essa reunião para... enfim, discutir o projeto”, “Nós queremos um roteiro que chame a atenção para... enfim, o Meio Ambiente.” “Eu acho que a música brasileira de hoje... enfim, é uma grande mistura de ritmos.”

E tem “e por que não dizer”, uma das cadeias verbais mais redundantes do idioma. “Istambul é uma cidade exótica, movimentada, misteriosa, atraente, e por que não dizer, moderna.” Deve ter surgido quando um belo dia alguém estava enumerando elementos e de repente percebeu que o próximo elemento que se preparava para citar poderia ser objeto de dúvida ou de questionamento por parte de algum leitor. Reconhecendo que o estranhamento do leitor se justificava, o redator, ainda assim, julgou-se autorizado, pelos seus próprios critérios, a incluir aquele detalhe em seu arrazoado. Surgiu daí esta insidiosa expressão que se embosca por entre os teclados do país inteiro, pronta a saltar sobre redatores inexperientes, apressados, distraídos, desprevenidos, e por que não dizer, preguiçosos assim como eu.

0145) A Copa do Mundo é nossa (7.9.2003)

Reza a lenda que, na véspera da estréia do Brasil na Copa do ano passado, Ronaldo foi dormir e sonhou que Deus aparecia em seu quarto na concentração. Sentado na beira da cama, empunhando um lápis e uma prancheta, Deus lhe disse: “Ronaldo, você é um bom rapaz e sofreu muito – contusões, cirurgia no joelho... Para premiar sua coragem, vou lhe conceder nesta Copa tudo que você pedir.” Ronaldo não hesitou: “Quero que o Brasil seja penta.” Deus anotou, comentando: “Tudo bem, mas já estava previsto. Não quer mais nada?” Ronaldo: “Eu gostaria que ele vencesse todos os jogos, sem nem um empate sequer.” Deus anotou: “Tudo bem, já aconteceu em 70... Algo mais?” Ronaldo: “Eu preferiria que a final fosse contra a Alemanha, ia ser um jogo pra ficar na História.” Deus anotou: “Tá legal.” Ronaldo continuou: “E eu queria fazer os gols do Brasil na final.” Deus franziu a testa e anotou, perguntando: “Pra encerrar, mais alguma coisa?” E ele: “Dava pra eu ser o artilheiro da Copa?...” Aí Deus jogou a prancheta no chão, impaciente: “P.q.p., Ronaldo! Tu tás pensando que eu posso tudo, é?...”

Esta singela fábula serve para ilustrar o fato de que o Brasil obteve na última Copa tudo que ele e o próprio Ronaldo poderiam sonhar. Nem por encomenda teríamos um resultado tão expressivo. Os ranhetas poderão dizer que em 2002 não enfrentamos equipes poderosas como França, Argentina, Itália e outras – equipes tão “poderosas” que pagaram todas um mico histórico, e voltaram para casa com o rabo entre as pernas. Não, amigos. A simetria do universo organizou-se de tal forma que a “máquina arrasadora” da seleção teria ganho até da Argentina de Maradona, quanto mais da de Batistuta.

E é aqui que emergem os contornos da tragédia grega que se prenuncia nas fímbrias do meu entendimento. Depois de um Penta como aquele, podemos sonhar com um Hexa em plena Alemanha? Nem pensar. Eu rezei pro Brasil ganhar aquela decisão porque calculava: “Temos que ganhar da Alemanha é agora, porque em 2006, babau. Eles não vão deixar.” “Eles”, é claro, são todos aqueles que não deixaram o Brasil ganhar Copas como as de 1974, 1978, 1982, 1986, 1990 e 1998. É a Fifa, são as Federações Européias, é a CIA, a Máfia, a Yakuza japonesa... Não duvido que nessas derrotas brasileiras tenha interferido até o dedo diabólico de Zé Santos e Lamir Mota, especialistas nesses golpes maquiavélicos.

Hoje o Brasil começa uma caminhada rumo ao altar dos sacrifícios. Nenhuma força política, econômica ou futebolística da Europa permitirá que em 2006 cheguemos aos seis títulos, deixando Itália e Alemanha nos três atuais. Preparem-se para a tragédia grega, que é quando o herói coberto de glórias afivela as armas pela última vez e parte para o campo de batalha sabendo que a batalha está perdida de antemão, mas é melhor morrer do que recuar. Agora – se Deus aparecer de novo com a prancheta, “abasta” a gente pedir um campeonato simples, e já é lucro.

0144) “Limbo”: a guerra ao corpo (6.9.2003)




Um artigo na revista eletrônica Slate analisa o documentário de Melody Gilbert Whole, exibido recentemente no Los Angeles Film Festival. Tema: pessoas saudáveis que amputam seus próprios membros. Parece maluquice? Tudo parece maluquice, antes da gente se acostumar. Um indivíduo diz que viu pela primeira vez uma pessoa com a perna amputada quando tinha 4 anos. Aos 7, pensou: “Eu queria ser assim também”. Aos 50, colocou a perna numa bacia com gelo seco até danificá-la de forma irreversível, e convenceu um cirurgião a amputá-la. Ao ver o resultado, disse: “Todos os meus tormentos acabam de desaparecer.”

Não dê de ombros, caro leitor, dizendo que o cara é doido. Se ele é doido, mande ampliar o Hospício. O filme mostra outro que disparou um tiro de carabina 12 na perna, para obrigar os médicos a cortá-la. Outros resolveram tudo com guilhotinas artesanais ou serras elétricas. Ninguém contou conversa. Houve até casos de matrimônios desfeitos: o sujeito achou melhor perder a esposa do que ficar com a perna. Alguns médicos consideram a apotemnofilia (é o nome científico) um distúrbio de fundo sexual, uma crise de identidade. Há pessoas que se excitam sexualmente com a visão de corpos mutilados, como podemos ver no filme Crash de David Cronemberg (que outro cineasta iria se interessar por isto, além dele e de Buñuel?), baseado no romance de J. G. Ballard, um dos melhores escritores de ficção científica britânicos.

Outro autor de FC, Bernard Wolfe, publicou em 1952 o romance Limbo, onde ele prefigura um mundo pós-III Guerra Mundial onde a melhor maneira encontrada para reprimir a agressividade humana é através da amputação dos braços e das pernas, e sua substituição por membros artificiais. O Pacifismo é associado à passividade. No ato sexual, os homens “desaparafusam” os braços e as pernas e deitam-se de costas, deixando o papel ativo para as mulheres. “Imobilização” é um dos conceitos básicos dessa sociedade. Existe algo de doente nela? Daqui da nossa, não há como saber.

“O Homem tem descoberto maneiras engenhosas de se desfigurar e se ferir. Amarrando os pés, esticando os beiços com batoques, perfurando narinas e bochechas e orelhas, lixando os dentes, amarrando o crânio até deixá-lo em forma de pirâmide, circuncidando-se, castrando-se para virar menino-de-coro ou eunuco-de-harém, cortando dedos e artelhos e cabelos em rituais de dor, ferrando em brasa e tatuando a própria pele, apertando o abdômen com espartilhos, empanturrando-se até a senilidade, envenenando-se com nicotina e álcool e outras drogas; e as Amazonas, decididas a aderir à auto-flagelação (igualdade de direitos, sempre!) cortam o seio para poder manejar o arco. Um frenesi incessante de decepação do próprio corpo. O ser humano, independente de outras coisas que possa ser, é com certeza um animal que se auto-mutila. Num certo sentido, um amputado voluntário.” Dizia Bernard Wolfe, em 1952.

0143) The Who e a nossa geração (5.9.2003)



O canal a cabo GNT exibiu o show do grupo inglês The Who no Royal Albert Hall, em Londres, em 2001.

The Who é um dos grupos da Era Jurássica do rock, com todas as conotações que isto implica.

Em 1º lugar, seus membros sobreviventes estão à beira dos 60 anos. Em 2º, são dinossauros porque foram um dos grupos que iniciaram a era do gigantismo nos shows de rock, valendo-se de recursos (som, luz, cenário, palco) com que ninguém nem sonhava no tempo em que os Beatles se apresentavam em público.

E em 3º, porque o Tiranossauro Rex, o mais feroz dos dinossauros, era chamado de “o lagarto do trovão”, e todos os shows do The Who eram uma avalanche maciça daquele conceito que Shakespeare e William Faulkner definiram como “o Som e a Fúria”.

Não esperem de mim a costumeira lamentação do pessoal mais velho, as queixas de que “já não se faz rock-and-roll como antigamente”. O rock de hoje não precisa ser feito como o de antigamente, até porque antigamente já se fazia tudo que se escuta por aí. O próprio show do Albert Hall mostra a continuidade entre as duas épocas quando sobem ao palco quarentões como Bryan Adams (que canta “Behind Blue Eyes”) e os pós-adolescentes Eddie Vedder (do Pearl Jam) e Noel Gallagher (do Oasis).

Muita gente estranha ao ver Mick Jagger saltitando nos palcos até hoje, como se o rock fosse para ser deixado de lado após “a idade da razão”. Pois eu acho que rock é uma dessas coisas cuja porta de entrada é a adolescência. Contraiu, não tem mais jeito; mas se chegar aos 30 anos sem ter contraído, está vacinado.

O show do Albert Hall tem momentos notáveis, como “Baba O´Rilley” com solo de violino de Nigel Kennedy, e um “Drowned” em que Peter Townshend chega sozinho e mostra como se vira um violão acústico pelo avesso.

Mas... a passagem dos anos não perdoa! Townshend está parecendo o ministro Cristóvão Buarque. Roger Daltrey está com o cabelo e as cordas vocais mais curtas. E é um pouco entristecedor ver por trás dos pinotes da dupla a barba grisalha e o perfil discreto de John Entwistle, sempre meio escondido por trás do baixo. Ele viria a morrer no ano seguinte, quando o Who se preparava para iniciar uma turnê nos EUA.

Entwistle sempre pareceu um coadjuvante, mesmo tendo sido escolhido como “o baixista do milênio” pela revista “Guitar” (o 2º colocado foi Paul MacCartney). Depois da morte do baterista Keith Moon em 1978, o Who está, como os Beatles, reduzido à metade.

Momento para pensar: os quase sessentões cantando “My Generation”, o hino equivalente, para sua geração, ao “Geração Coca-Cola” do Legião Urbana. Quando eles cantam “I hope I die before I get old”, não estão mais ironizando os velhotes, como há 38 anos. Continuam a ser uma geração para a qual as outras torcem o nariz, só que agora pela razão inversa. O “que barulheira é essa desses garotos?” virou “que velhinhos são esses pensando que tocam rock?”. É destino de roqueiro, só remar contra a corrente!





0142) A Regueifa: o repente da Galícia (4.9.2003)

Dentro das tradições do canto improvisado ou canto a desafio, a Espanha registra na região da Galícia a prática do repente chamado “regueifa”. A Galícia é a região a noroeste da Espanha cujos cidades mais conhecidas são Santiago de Compostela, La Coruña e Vigo. Ali, fala-se além do espanhol o idioma galego, que tem enorme semelhança com o português. Pode-se dizer, de certa forma, que a Galícia seria um prolongamento de Portugal para o Norte, que acabou ficando politicamente vinculado à Espanha.

A tradição da “regueifa” tem origem nas festas de casamento do povo galego. Regueifa, na verdade, é uma espécie de bolo ou de rosca (pão redondo) que é costume servir nestas ocasiões festivas. No clima de brincadeiras e de confraternização, surgiu a tradição de se fazerem desafios verbais, tradicionalmente iniciados com verso como “A regueifa está na mesa, / quem quere vir a colhe-la?”. Alguém aceita o desafio e improvisa uma quadra, quatro versos de 8 sílabas onde segundo e o quarto versos rimam entre si (uma estrofe aBcB). Um contendor responde esta quadra com outra, e passam a fazer esse ping-pong, por entre os aplausos e o incentivo dos grupos.

A regueifa é um canto a desafio, e envolve técnicas tradicionais como elogiar o próprio grupo (família, aldeia, etc.) e atacar ironizando o grupo a que pertence o adversário, além de fazer insultos e provocações de todo tipo. Cantada “a capella”, sem o uso de instrumentos, a regueifa se caracteriza principalmente pela velocidade com que os versos são feitos. Considera-se vencedor aquele que depois de improvisar uma quadra não é rebatido pelo adversário, que se cala ou entrega os pontos. O teor da disputa, principalmente de disputa entre clãs ou grupos territoriais, pode ser bem intenso, e em muitas ocasiões certas localidades proibiram a prática da regueifa porque essas disputas costumavam acabar em quebra-quebra e enfrentamento corporal.

Eis algumas quadras típicas, no curioso idioma galego, que chega a parecer um português mal escrito: “A regueifa está na mesa / e no medio ten un ovo / para cantar a regueifa / veñen as de Portonovo. // A regueifa está na mesa / ela é de pan de centeo / o muiño que a moeu / non tiña capa nin veo. // A regueifa está na mesa / eu comereina primeiro. / Quén me dera estar ca noiva / no burato do palleiro!” Acho que era nessa hora que o bofete falava no centro.

A regueifa é hoje cada vez menos praticada, ao contrário dos desafios dos “bertsolaris” do País Basco. Só restam praticantes nas comarcas de Brindeiro e Bergantiños, a qual (principalmente a cidade de Coristanco) é a região natal de muitos regueifeiros famosos como Mandián e Leonarda de Xornes, Sotelo de Xaviña, Celestino de Cerqueda e Branco de Muiñoseco. Os que mantêm esta tradição orgulham-se de cultivar os talentos essenciais da regueifa: o “desafío”, a “improvisación” e o “inxenio” (engenho, habilidade). Longa vida aos poetas da regueifa!

0141) O campo probabilístico (3.9.2003)

Campo probabilístico é um conceito científico, mas como não sou cientista, costumo usá-lo literariamente, de modo intuitivo, sem o rigor e a exatidão que se pede à ciência. Sabemos que certas coisas ocorrem com mais facilidade em certas circunstâncias, e com maior dificuldade em circunstâncias diferentes. Uma moça sabe que é mais fácil arranjar um namorado ficando debruçada à janela (eita, como eu sou antigo) do que trancada no quarto. E sabe que se fôr a uma festa... aí as probabilidades namorísticas são elevadas ao quadrado. Quando um nordestino pega um pau-de-arara em Santana dos Garrotes e vai para São Paulo em busca de trabalho, está reconhecendo intuitivamente que o campo probabilístico de São Paulo, em matéria de oportunidades de emprego, é mais intenso do que o de Santana dos Garrotes.

O campo probabilístico é como o campo gravitacional. Um meteorito pode ficar séculos vagando pelo espaço, até passar perto do campo gravitacional de um planeta e ser atraído por ele. A Física tradicional dizia que o planeta atraía o meteorito. A Física einsteiniana refinou este conceito, dizendo que a massa física do planeta distorce o espaço à sua volta, afundando-o, e faz com que o meteorito role em sua direção. É como se esticássemos uma rede elástica das que se usam sob os trapézios nos circos, e colocássemos sobre ela uma bola de ferro. A superfície da rede é distorcida pelo peso da bola, e objetos jogados perto dela acabam rolando de encontro ao peso maior.

Mesmo assim é o campo probabilístico. No futebol, a grande área é um campo probabilístico de gol muito mais intenso do que o resto do campo, embora teoricamente um gol possa ser marcado de qualquer lugar. Mas dentro da área predomina o chamado “perigo de gol”, ou seja, uma intensificação deste campo de probabilidades. Muitos turistas são assaltados porque desconhecem as variações de campo probabilístico de perigo na cidade onde estão passeando. Um morador da cidade sabe intuitivamente onde pode e onde não pode “acontecer alguma coisa”.

O sucesso, em qualquer atividade, intensifica o campo probabilístico de uma pessoa, para coisas boas e para coisas ruins. Todo mundo quer ter algum tipo de contato com o Sujeito Famoso. Pedidos de entrevistas, convites para festas, propostas de trabalho, tietagem, bajulação, trambiques, atentados... tudo parece chover do céu. O telefone não pára, a correspondência se agiganta, os compromissos se multiplicam. Ele atrai o interesse dos outros, atrai a curiosidade, atrai a atenção alheia como um ímã atrai limalha de ferro. O peso do seu sucesso deformou o campo social à sua volta, e agora tudo parece rolar na sua direção. Não depende mais de sua vontade. Depois de posto em funcionamento, o mecanismo probabilístico do sucesso é mais difícil de frear do que um transatlântico. Como diziam os Novos Baianos, “caia na estrada, e perigas ver”.

0140) Bispo do Rosário e a enciclopédia do apocalipse (2.9.2003)

Acho que a maioria dos meus leitores tem uma idéia de quem foi Artur Bispo do Rosário, ex-boxeador, ex-marinheiro, negro, nordestino, o qual depois de uma crise esquizofrênica passou o resto da vida no manicômio, onde criou uma impressionante obra artística. Seus trabalhos já correm o mundo, e há vários livros e documentários de cinema e TV sobre sua obra.

Bispo não pintava, mas bordava. Nas suas visões místicas, ele recebeu uma mensagem de que devia preparar o mundo para o Juízo Final. Seu acervo inclui imensos estandartes de pano com longos textos bordados com um fio azul obtido por ele ao desfiar seu uniforme do manicômio. Como num “almanaque mundial”, esses estandartes enumeram países, capitais, áreas, populações, riquezas naturais... Com o mesmo fio azul, Bispo envolvia por completo objetos numa espécie de casulo, e depois os identificava com etiquetas: tesoura, colher, tijolo, revista, lanterna...

Quando Bispo acabava um desses objetos, era como se estivesse salvando-o da destruição. Seu gesto era o mesmo de Noé. Graças a Bispo, se Deus precisasse reconstruir o mundo teria à disposição o “arquétipo platônico” de todas essas coisas, o seu Modelo Original quando da criação deste universo. A obra de Bispo é uma enciclopédia do apocalipse. Ao vermos numa exposição prateleiras e mais prateleiras com essa coleção, o conflito entre a impressão de caos e a impressão de ordem chega a ser incômodo. Bispo queria encapsular com o fio de sua “escrita” todas as coisas do mundo, e seu trabalho (que é muito mais rico e diversificado do que o que descrevo aqui) lembra certas enumerações vertiginosas de Borges, em “O Aleph” e em seu ensaio sobre Nathaniel Hawthorne.

O caso de Bispo e o caso dos artistas descobertos (ou inventados) pela Dra. Nise da Silveira em seu "Museu do Inconsciente” me parecem dois casos curiosos e raros (embora felizmente haja até muitos) em que a nossa sociedade trata os loucos mais ou menos como os índios o fazem. A maioria das tribos de índios, no mundo inteiro, não trancafia nem executa os seus loucos. Quando o sujeito endoidece fica por ali, dizendo e fazendo suas loucuras. A tribo lhe dá um mínimo de condições para sobreviver, e à força de conviver com ele acaba percebendo uma utilidade ou descobrindo uma beleza naquilo que ele faz. Vou improvisar uma teoria: vai ver que na Pré-História esse tratamento dado aos loucos era tão generalizado que alguns sujeitos mais espertos passaram a se fingir de doidos, só para não seguirem o mesmo estatuto dos demais. Séculos depois, não era mais preciso fingir; todos sabiam que eles tinham tanto juízo quanto o resto, mas aquele procedimento já tinha se tornado uma tradição. As pessoas já tinham se acostumado a ter seus falsos-doidos por perto, sendo sustentados, observados e aplaudidos. Ninguém os levava muito a sério, mas ao mesmo tempo preferiam não ficar sem eles. Acabaram lhes dando o nome de artistas.

0139) “Bertsolaris”: os repentistas bascos (31.8.2003)



Os “bertsolaris” são os repentistas do País Basco, aquele de quem a gente só ouve falar quando os guerrilheiros do ETA fazem um atentado a bomba. 

O ETA luta pela independência dessa nação que tem sua própria língua, sua tradição cultural e sua história, mas que foi cortada em duas, ficando 25% no sul da França e 75% no norte da Espanha. O idioma basco, ou “euskara”, é uma raridade linguística. É diferente de todos; ninguém sabe ainda sua origem. 

Os 2 milhões de bascos são extremamente afeiçoados a essa língua e à terra natal. Há séculos sonham em ter seu próprio Estado e governo, mas não está fácil. E tome carro-bomba.

Uma das tradições deste povo tão tradicionalista são os seus repentistas, chamados de “bertsolaris”. Minha ignorância do idioma basco dispensa comentários, mas como eles chamam suas estrofes de “bertso”, imagino que “bertsolari” signifique algo como “versejador”. 

Tal como nossos cantadores, os “bertsolaris” improvisam versos em estrofes de forma fixa, atendendo a pedidos da platéia, e fazendo desafios entre si (sem o acompanhamento de instrumentos). Ao que parece, o “bertso” não é improvisado espontaneamente, de acordo com a vontade do próprio poeta, como acontece com frequência entre os violeiros nordestinos. É preciso que alguém da platéia proponha um tema, uma provocação, e a partir dela os repentistas fazem suas estrofes.

Entre as estrofes típicas dos bertsolaris, o “zortziko mayor” é uma estrofe de 8 linhas onde as linhas pares têm a mesma rima. Seria, na notação adotada no Brasil, uma estrofe com rimas aBcBdBeB. Os versos ímpares têm 10 sílabas, e os pares têm 8. 

Já o “zortzyko menor” segue o mesmo esquema de rimas, mas seus versos têm respectivamente 7 e 6 sílabas. 

Também existem o “hamarreko mayor” e o “hamarreko menor”, que são as mesmas estrofes anteriores ampliadas para 10 linhas. 

Um hábito típico dos poetas é, ao ouvir o pedido da platéia, imaginar rapidamente uma resposta à altura, que será o desfecho, as duas linhas finais, e vir improvisando a estrofe desde o começo, até fechá-la com essas duas linhas de maior impacto. É o que no Nordeste os cantadores chamam “a queda do verso”, as últimas linhas improvisadas antes de se repetir o mote dado pela platéia. (O mote, como o usamos, não é usado entre os bascos).

Os bascos têm também o seu equivalente ao cordel, o que eles chamam de “bertso paperak”, ou “verso de papel”. São folhas soltas onde alguns improvisos famosos são reproduzidos e passados adiante; não parecem tanto com nossos folhetos, e sim com os nossos “poemas” impressos num só lado de uma folha de papel jornal. 

Os “paperak” surgiram no período das guerras carlistas (1839-1876); quanto ao “bertso” improvisado, sua história vem desde o ano 1800. Os “bertsolaris” de hoje se enfrentam em festivais que arrastam milhares de espectadores. Existem hoje cerca de 100 escolas de “bertso” no País Basco, com um total de 800 alunos. Dá até inveja!






0138) O depressivo (30.8.2003)



Uma vez eu conversava sobre Literatura com alguns amigos quando alguém foi na estante, pegou um livro de Dostoiévski, e comentou que certo conto foi escrito numa fase em que o autor estava muito deprimido, arrasado por problemas financeiros e de saúde, pensando em suicidar-se, etc. 

Eu folheei o livro (faz muitos anos, não lembro mais que livro era), li alguns trechos, e tentei imaginar que tipo de emoções depressivas resultariam numa prosa tão bem escrita quanto aquela. 

Pensei, com a irreverência sacrílega que me é tão espontânea: “Oxente, eu bem queria ter uma depressão e escrever desse jeito! Era lucro!”

Anos depois eu estava editando um livro e me deram para examinar uma “boneca”, uma prova do livro em seus primeiros estágios. A diagramação proposta e as ilustrações estavam todas lá, mas não o texto. Nos lugares que iriam ser ocupados pelo texto, havia apenas blocos inteiros de letras sem sentido, guardando o lugar. 

Eram apenas duas letras, repetidas aleatoriamente: nnoonn oooonn oooonnn nooooonnn ooo nnnooo nnonono ooono nonono nnnoo ooonono oonnoonnoo ooooonnn nono onon nonooo nnnooo nnonono oo... Acho que é uma convenção gráfica usar estas duas letras, e não jfjfjf, kwkwkw ou outras.

Naquela madrugada insone, olhando esse texto-fantasma, vi ali pela primeira vez um hipotético texto literário produzido por um escritor com depressão. Estava ali a mais aterrorizante força da Natureza: a Entropia, a perda de energia, a perda de significado, a perda da diferenciação. 

A Entropia é a progressão rumo ao que os cosmólogos chamam “a morte térmica do Universo”: o dia em que todas as estrelas terão esgotado seu combustível e o Universo inteiro será uma extensão indiferenciada, reta e uniforme como a linha horizontal de um eletrocardiograma numa UTI, quando o coração pára de bater, pára de fazer a linha luminosa no mostrador dar aqueles pulinhos ritmados, e avança numa direção só: piiiii...

Texto produzido pela depressão, o de Dostoiévski? Besteira. Aquilo ali é a cura da depressão. Ler pessimistas como Kafka, Cioran, Albino Forjaz de Sampaio, cura a depressão de qualquer pessoa. 

O que deveria nos aterrorizar é a ausência de idéias, de emoções, de palavras, de sentido. 

Quem assistiu “O Iluminado” de Kubrick (ou leu o livro de Stephen King) deve lembrar a cena mais apavorante do filme. Jack Torrance, o protagonista, está endoidecendo aos poucos, mas todo dia senta na máquina e passa horas escrevendo um romance. A certa altura, a mulher dele pega aquelas centenas de folhas escritas, e vê que em todas elas há apenas uma frase, repetida obsessivamente: “All work and no play makes Jack a dull boy” (“Só trabalhar, sem se divertir, faz de Jack um menino deprimido”). 

Esta única frase, de cima a baixo, ao longo de centenas de páginas, depois de semanas de trabalho. Aquele sujeito, sim, está a um passo do zero absoluto, está a um passo de ser capaz de escrever apenas: nononono nnnoonnoo ooooonno ooooooo...






0137) A tragédia espacial (29.8.2003)

A tragédia com o foguete VLS no Maranhão está alimentando discussões sobre cortes de verbas, e até teorias da conspiração que vêem no episódio uma possível sabotagem dos norte-americanos, interessados tanto na base de Alcântara quanto em dificultar a autonomia espacial brasileira. (Veja-se o saite www.relatorioalfa.com.br)

Enquanto fatos mais claros não vêm à tona, eu não consigo parar de pensar nas vítimas. Ao ver no jornal aquelas 21 fotos e resumos de carreira eu nem pensei nos pais de família que ali estavam. Quer dizer, pensei, todo mundo pensa; mas todo mundo pensou nisso, e eu acho que pensei algo que poucas pessoas terão pensado. Olhei aqueles rostos sérios e pensei: “Aqui deve ter pelo menos meia dúzia de leitores de ficção científica.” Espero que os caros leitores perdoem minha deformação profissional; mas acontece que eu pertenço a uma minoria, e como hoje em dia toda minoria se sente no direito de pavonear-se ante os holofotes da mídia, porque não a nossa?

O leitor de ficção científica é um cara para quem o futuro existe. É um cara que desde a infância percebeu que o mundo não vai ser sempre a mesma coisa. Todo velho vive se queixando: “no meu tempo era diferente...” Eu sou velho às vezes, e também me queixo às vezes, mas o que me cura da velhice e do queixume é ter lido Julio Verne aos 13 anos, H. G. Wells aos 14, Ray Bradbury aos 15. Meu mundo se alargou, minha responsabilidade por ele se alastrou para além do Açude Velho e do Oceano Atlântico, estendeu-se Sistema Solar afora, expandiu-se pela Via Láctea e fincou postos avançados nas nebulosas distantes. Eu entendi que pelo simples fato de estar vivo aquilo tudo me pertencia, como se fosse uma Capitania Hereditária que Deus tivesse jogado no meu colo dizendo: “Esse mundo é teu. Te vira.”

Acho um crime alguém dizer: “O Brasil não tem nada que fazer projeto espacial. Isso é coisa pros americanos, pros europeus.” Está errado. Críticas aos projetos espaciais são legítimas, como aliás a qualquer projeto científico que envolva imensas despesas e grandes riscos; dúvidas quanto à possibilidade real de colonização do Sistema Solar, idem. Eu mesmo tenho muitas. Mas que se critiquem os projetos todos, que se diga: “A Humanidade inteira tem que cuidar daqui de baixo”. Nunca que se abaixe a crista e se diga, com a resignação dos capachos: “Deixa isso para os americanos, porque eles são melhores do que nós”.

O projeto espacial pertence a todos os garotos e garotas que um dia leram Arthur C. Clarke e se sentiram donatários do Sistema Solar. Pertence a todos os que, como Santos Dumont, acreditaram que o sonho de Julio Verne não era privilégio dos franceses, mas pertencia também a um brasileiro que ousou sonhar e ousou fazer. Eu olho as fotos daqueles 21 caras e saúdo todos os que acreditaram que é possível olhar de perto as estrelas, que tiveram o sonho de saltar no abismo, que não tiveram medo do Fogo Sagrado no centro do Sol.

0136) Athayde e o Moto-Contínuo (28.8.2003)

Numa entrevista dada em 1954 a Orígenes Lessa, o cordelista João Martins de Athayde afirmou ter inventado um Moto-Contínuo, a fabulosa máquina sonhada pelos cientistas desde a Antiguidade e o Renascimento. Lessa espantou-se. Como é que um simples poeta caboclo conseguira criar algo além das possibilidades de um Arquimedes, de um Leonardo da Vinci? O Moto-Contínuo (ou Moto-Perpétuo) é uma máquina que produz a própria energia, e portanto é capaz de trabalhar perpetuamente sem precisar de corda, de combustível, de força humana, etc. Ou seja: uma impossibilidade científica, visto que em todo trabalho mecânico existem perdas em forma de atrito, calor, desgaste, etc.

Macaco velho, e sabedor de que os poetas tendem a acreditar piamente nas coisas que imaginam, Lessa perguntou a Athayde pela máquina. “Trabalhei nela 24 anos,” disse o poeta, “mas encostei. Não estava para ser embrulhado. Quebrei e escangalhei tudo, para ninguém tomar. Mas não ponha isso no jornal, porque ninguém acredita mesmo. No dia em que o meu invento aparecesse, pegava fogo no mundo.” Ainda incrédulo, Lessa perguntou por que ele não mostrara uma tal invenção ao governo. E Athayde: “Não adiantava. Eu podia ter ido no Getúlio, apresentava tudo, explicava tudo. Aí ele chamava um compadre, mostrava, pedia a opinião. Ele dizia: ´Isso aí não vale nada. Eu faço melhor.´ E no dia seguinte apresentava um igual e ficava com a glória...”

Isso é um verdadeiro raio-X da alma de um poeta sertanejo. Ele sabe que se um dia descobrir a Pedra Filosofal ou o Elixir da Juventude, quem vai ficar com a glória é algum dos muitos intermediários que virão enxamear sobre o prodígio para explorá-lo comercialmente, assim como as infusões dos índios amazônicos já nos retornam em forma de remédios caríssimos das multinacionais farmacêuticas, com patente requerida e tudo o mais.

Athayde era menino da roça, nascido em 1877 (ou 1880) em Ingá do Bacamarte. Alfabetizou-se sozinho, recolhendo pedaços de jornal no chão, perguntando a um e a outro “que letra é essa”. Andava com uma cartilha escondida no chapéu, porque o pai queria que continuasse analfabeto e ajudando na roça. Foi para o Recife, trabalhou como enfermeiro, e começou a escrever os poemas que compunha de memória. A partir de 1920 publicou clássicos como “Proezas de João Grilo”, “História da Imperatriz Porcina”, “Sacco e Vanzetti aos olhos do mundo”, “História do valente Vilela”, “Juvenal e o Dragão”. No auge do sucesso morava num sobrado, tendo no andar de baixo a oficina cheia de máquinas impressoras, onde empregados viravam turnos imprimindo best-sellers como “A lamentável morte do Padre Cícero Romão Batista” ou “A morte de Lampião”. Escrevia a noite inteira, enquanto a esposa trazia café e colocava seus pés numa bacia dágua, para que se mantivesse acordado. Em 7 de agosto de 1959, devido a uma embolia cerebral, o Moto-Contínuo parou de funcionar.

0135) A arte de decorar (27.8.2003)



(ilustração: Virgil Finlay)

Aprendi a decorar sonetos quando tinha 9 ou 10 anos. Depois de muitas tentativas, criei um método que uso até hoje. Leio em voz alta a 1ª linha. Depois leio a 1ª e a 2ª. Depois, a 1ª, a 2ª e a 3ª. E assim por diante. Isto significa que quando eu ler a última linha, a 14ª, já terei repetido a primeira treze vezes, a segunda doze, e assim por diante. Se o soneto fizer um mínimo de sentido, qualquer ser humano normal fica com uma idéia razoável dele. Depois, faço uma “grade” vertical com as rimas de cada estrofe. Amoníaco, rutilância, infância, zodíaco. Hipocondríaco, repugnância, ânsia, cardíaco. Ruínas, carnificinas, guerra; roê-los, cabelos, terra. Depois gravo o início de cada estrofe: “Eu, filho... Profundissimamente... Já o verme... Anda a espreitar...” E pronto. Meia horinha, não mais.

A memória é como um músculo: a prática constante a desenvolve, a inatividade a atrofia. Sherlock Holmes comete um grande equívoco (o seu único, ao que eu saiba) quando diz, em Um estudo em vermelho, que a memória humana é como um sótão, cuja capacidade é limitada e cujas paredes não são elásticas, de modo que “chega um momento em que para a aquisição de novos conhecimentos é necessário eliminar conhecimentos já estocados.” Nada mais falso. A memória não é um espaço a ser preenchido, são processos que devem ser estimulados. Todo estudante desenvolve seu próprio método para decorar declinações do latim ou tabelas de valência de elementos químicos. Não existe método universal: cada mente tem um perfil diferente. Uns têm memória visual, outros memória auditiva (precisam dizer em voz alta), outros têm memória associativa...

Muita gente se admira ao ver cordelistas que sabem de cor dezenas de folhetos. E por que não? Um folheto tem a mesma cadência do começo ao fim, tem rimas, e geralmente conta uma história. Tudo ali se encadeia, tudo facilita a memorização do que vem a seguir. Difícil é decorar uma lista aleatória de nomes ou de números. Decorar poesia, decorar falas de teatro ou de cinema, é moleza. (Não, não é moleza. Mas existe um caminho, uma lógica, um fio de coerência; basta segui-lo)

Um dos piores efeitos da civilização é perdermos a capacidade de decorar. Todo mundo tem agenda de papel, agenda eletrônica, telefone com memória. E precisamos disso tudo para lembrar o telefone de uma pessoa para quem já ligamos inúmeras vezes. Quantos de nós sabem de cor a própria identidade, o CPF? Confiamos nas anotações escritas, e com isso nosso cérebro vai minguando. Quando alguém vai nos dar seu endereço, perdemos um tempo enorme à procura de lápis e papel, só para anotar: Rua dos Coqueiros, 155, apartamento 201. É neste sentido que as máquinas vão destruir nossa civilização, não no sentido Schwarzeneggeriano do termo. Há um conto ótimo de Isaac Asimov onde ele mostra um gênio matemático do futuro, um cara que consegue multiplicar números de cabeça (25 x 32, etc.)! Eu diria que esse futuro já chegou.


0134) O mnemonista (26.8.2003)



Em 1944, Jorge Luís Borges publicou o conto “Funes, o memorioso”, que ele próprio descreve como “uma vasta metáfora da insônia”. Funes é um rapaz que tem memória total, tem acesso irrestrito a todas as coisas que viu, sentiu, viveu, pensou. Se sugeríssemos a Funes uma palavra, digamos “folha”, ele seria capaz de recordar os milhões de vezes em que a ouvi, leu ou pronunciou, lembrando a data, o lugar e as circunstâncias de cada uma dessas vezes. 

Muita gente não percebe a base científica em que se apóia o “realismo mágico” de Borges. Pessoas de memória excepcional como a de Funes são tão reais quanto pessoas de memória bruxuleante como a minha.

O psicólogo russo A. R. Luria é autor de um livro clássico sobre o tema, The Mind of a Mnemonist, onde ele descreve o funcionamento da mente do paciente que ele chama de “S.”. 

Aos 30 anos de idade, S. trabalhava num jornal, e chamou a atenção do seu editor pelo fato de nunca tomar notas das matérias que fazia. Alguns interrogatórios e testes de memorização deixaram o editor tão perplexo que ele acabou mandando o repórter ao consultório de Luria, onde seu espantoso talento foi descoberto. 

S. era capaz de decorar com exatidão qualquer texto, qualquer lista de palavras ou de números que lhe fosse apresentada. Uma lista de 70 palavras era memorizada visualmente, como se estivessem escritas diante de seus olhos, de modo que ele não apenas podia repetir a lista inteira, como também dizê-la de trás para a frente, ou responder imediatamente quais as palavras que ficavam antes e depois de outra palavra específica. 

Lembrar, para ele, era como ler algo escrito à sua frente. Luria observou também que tal impressão era indelével. Oito anos após um teste em que decorou uma série de sílabas desconexas, S. foi capaz de reproduzir sem problemas a mesma série.

A memória de S era sinestésica, ou seja, era uma rede de associações entre palavras, imagens, sons, cheiros, sensações táteis. Um dia, ao voltarem de um laboratório, Luria perguntou distraidamente a S. se ele seria capaz de lembrar o caminho de volta. “Claro,” disse ele, “como poderia esquecer? Por exemplo, aqui tem esta cerca... ela tem um gosto bem salgado, uma textura áspera, e o som dela é tão agudo que dói no ouvido.” 

S. decorava poemas em línguas estrangeiras usando o expediente de associar cada sílaba a uma imagem e distribuir essas imagens num percurso fictício ao longo de uma rua. Depois, era só refazer o percurso, ver as imagens, e reconstituir as sílabas. Nada mais fácil.

Não é de admirar que para ele fosse muito difícil manter uma conversa sobre qualquer assunto. Tudo o distraía, tudo arrastava sua mente em outra direção. Tinha dificuldade em permanecer nos empregos, em manter amizades duradouras. Sua mente era um calidoscópio, um turbilhão, um dilúvio de lembranças que aumentava sem parar, porque nada era esquecido. Como nas lendas antigas, sua bênção era também sua maldição.





0133) O canto das sereias (24.8.2003)




(George Turner, "Snowstorm")


Uma coincidência é um mote que o Acaso joga na bandeja à nossa frente: “Quê que tu consegue fazer com isso aí?...” É uma dica, uma provocação. Ontem li em dois lugares totalmente diferentes (um artigo de J. C. Avellar sobre cinema numa revista, um texto sobre pintura figurativa na Internet) referências a um mesmo episódio. Em 1842, o pintor inglês George Turner, famoso pelas suas pinturas marítimas, fêz-se amarrar ao mastro de um navio, durante uma tempestade, para poder contemplar a fúria dos elementos sem correr o perigo de ser arremessado para fora do tombadilho por algum vagalhão mais impetuoso. Aguentou por 4 horas o sacrifício, em nome de arte, e produziu uma bela pintura intitulada “Snow Storm”.

A imagem do indivíduo atado ao mastro é um episódio da “Odisséia”. Ulisses ordena aos seus marinheiros que ponham cera nos ouvidos e que o amarrem ao mastro. Assim, os marinheiros remam sem ser perturbados, e ele pode conhecer o canto das sereias sem atirar-se ao mar em busca delas, como faziam todos os que se aventuravam por aqueles mares. Eu mesmo publiquei um poema inspirado neste episódio (“Bilhete cínico aos trabalhadores”, no livro “Balada do andarilho Ramón”).

Em síntese, essa imagem representa o artista que quer chegar perto do abismo, mas quer também ter a certeza de voltar. Pelo bem da arte, ele quer ter uma experiência transcendente e perigosa, mas quer fazê-lo cercado de algumas garantias. Parece haver nisto uma certa covardia, mas existe lógica: se o artista morrer durante a experiência, ela terá sido em vão, porque ele não foi capaz de retratá-la numa obra de arte. O objetivo do artista é a obra, ou seja, a “reportagem do que aconteceu”, e não a experiência em si. Quando Aldous Huxley, em maio de 1953, tomou quatro decigramas de mescalina dissolvidas em meio copo dágua, ele o fêz acompanhado da esposa e de um cientista que pesquisava o efeito das drogas, e gravou em fita tudo que foi conversado naquela manhã – o que lhe serviu de base para o livro “As portas da percepção”.

Jean-Paul Sartre foi outro que experimentou a mescalina antes que ela fosse transformada em modismo na era Woodstock. Em 1935, ele tomou mescalina e teve terríveis alucinações com monstros e caranguejos que o perseguiam. Há relatos de que ele julgava ver um enorme orangotango espreitando-o do lado de fora da janela (fico imaginando se não seria influência do filme “King Kong”, lançado dois anos antes). Uma parte do impacto mental desta experiência foi reconstituído em A Náusea, que é tanto um romance existencialista quanto um relato de estado alterado de consciência. Em Beyond the Outsider, o livro em que descreve sua própria experiência com mescalina, Colin Wilson observa que a experiência de Huxley foi próxima de uma iluminação mística, e a de Sartre uma verdadeira “bad trip”. Por mais que se tomem precauções, ninguém volta ileso de uma descida ao abismo, porque no fundo de todo abismo existe um espelho.

0132) A linguagem do maluco (23.8.2003)




É como dizia aquele monitor no meu tempo de Faculdade: “Eu não sei se entendi, mas posso explicar.” 

A capacidade de verbalização do ser humano é uma coisa impressionante. Você pergunta a um técnico de futebol por que motivo o time leva uma goleada atrás da outra e ele diz: “A gente precisa projetar o resultado negativo dentro de um contexto. Ele pode ser positivo amanhã, na medida em que torna os nossos parâmetros mais realistas. E uma pessoa que tem parâmetros realistas está a um passo do sucesso.” Pronto! Tá resolvido o problema. Avisa ao garoto do placar.

Nessas horas, eu penso que nossa capacidade de explicar está na razão inversa da nossa capacidade de entender. E aí me vem à mente a linguagem usada pelos malucos-beleza de um modo geral. 

Como sabe todo leitor de Aldous Huxley e de Carlos Castañeda, a experiência com as drogas alucinógenas tem muitos pontos em comum com a experiência mística de contato com a Divindade, ou, pelo menos, com o Inefável, o Inexprimível, o Indescritível. É uma experiência que transcende a nossa capacidade de verbalização. 

No momento da iluminação, entendemos tudo: o universo, a eternidade, o espaço, o tempo e o eu. O problema é contar para os outros na manhã seguinte.

Vai daí que os Malucos (o apelido carinhoso dos que costumam vibrar em uníssono com o Diapasão do Cosmos) têm uma característica em sua linguagem: a Recusa de Nomear. A Fuga ao Substantivo. O Pudor ante a Coisa-em-si, “das Ding an Sich”. 

Vou dar um exemplo. Você encontra um Maluco, começa a conversar sobre isso e aquilo. É um sábado de sol, perto da praia, está fazendo calor, aí você propõe: “Bora tomar uma cerveja?” E ele concorda: “É uma.” É uma o quê? É uma boa idéia, é uma proposta interessante... Mas o Maluco dispensa estes complementos; depois do "é uma”, vem um ponto final inequívoco. 

Ele não precisa dizer as coisas até o fim: o fim foi vislumbrado, foi captado, foi compreendido, e consequentemente foi catapultado para o Plano Superior do Indizível.

O Maluco está contando a você que hospedou um primo que tinha vindo à procura de emprego na cidade, e se queixa de que o primo não quer nada com nada: “Eu chego todo dia em casa, e ele tá lá, na maior.” Na maior o quê? Na maior folga, na maior boa-vida, na maior descontração... 

Mas não precisa dizer. Se todo mundo já entendeu num vôo telepático, pra quê um recurso tão pedestre quanto a verbalização? 

O discurso do Maluco tem a forma de uma rosquinha: é um círculo sem centro. O seu Centro, ou seja, a Coisa a que ele se refere, é rodeada de complementos, mas nunca é dita. 

Você pergunta como foi o show de Fulano, e ele explica: “Foi demais.” Não diz se foi bom demais, animado demais, bem-produzido demais... Não diz o que foi, apenas registra que o foi com intensidade. 

O Maluco não precisa dizer a essência das coisas, pois já se embebeu dela com tal intensidade que ela se tornou algo óbvio. Pra que ficar explicando?






0131) Quem foi Hercules Florence? (22.8.2003)




A História Secreta da Ciência, se fosse escrita, seria maior que a História oficial. Já me referi ao gaúcho Padre Landell (“Quem foi Landell de Moura”, 25 de junho), bem como a Santos Dumont (“As máquinas voadoras”, 9 de julho), que só não é obscuro aqui no Brasil. 

Outro indivíduo admirável foi o francês (e brasileiro adotivo) Hercules Florence, que descobriu a fotografia sozinho no interior de São Paulo, mas não conseguiu mostrar a ninguém suas idéias e soluções, as quais acabaram ocorrendo a outras pessoas, como é inevitável.

Florence (1804-1879) nasceu em Nice, e na escola destacou-se nas artes plásticas, na matemática e na física. Gostava do mar e de aventuras. Aos 20 anos, desembarcou no Brasil. Em 1825, juntou-se como desenhista à expedição onde o explorador russo Barão Langsdorff, cercado de cientistas, percorreu 13 mil km pelos sertões de São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais. 

A aventura teve fim trágico em 1829, com a morte de vários integrantes, tendo o próprio Langsdorff enlouquecido (possivelmente de sífilis). Os desenhos de Hercules Florence foram conservados, e o material etnográfico colhido na Expedição Langsdorff tem sido editado, no Brasil e no exterior.

Radicando-se na Vila de São Carlos (hoje Campinas, SP), Florence desenvolveu a partir de 1832 uma série de pesquisas sobre a reprodução de imagens com o uso de câmara escura, lentes e papéis embebidos em compostos químicos. 

Experimentos semelhantes aos seus foram refeitos na Europa por Daguerre, Talbot e outros. Sem contatos fora do Brasil, Hercules Florence tinha apenas uma vaga idéia do que lá se pesquisava. Felizmente, os manuscritos detalhados em que registrou seu trabalho, em mais de mil páginas, foram conservados pela família, e estão transcritos no livro Hercules Florence – 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil de Boris Kossoy (São Paulo: Fac. de Comunicação Social Anhembi, 1977). É possível, inclusive, que tenha sido Florence o primeiro a usar o termo “fotografia” para designar a nova técnica.

Na ciência, idéias maduras ocorrem a pessoas diferentes, em lugares diferentes. Há exemplos incontáveis. O próprio Florence, embora lamentasse o isolamento em que vivia (numa vila de 6 mil habitantes, num tempo em que a capital paulista tinha 22 mil), alertava: “Não disputarei descobertas a ninguém, porque uma mesma idéia pode vir a duas pessoas.” 

Quando as enciclopédias apontam um Fulano qualquer como inventor ou descobridor de algo, dão a impressão às vezes de que foi ele a única pessoa que pensou naquilo. Na verdade, são centenas, milhares de indivíduos trabalhando ao mesmo tempo, nos quatro cantos do mundo. Uns têm mais dinheiro, outros mais recursos técnicos, outros mais acesso às autoridades ou à imprensa. 

A corrida das invenções científicas parece uma maratona onde, depois que todo mundo cruza a linha de chegada, o vencedor é escolhido por um júri de repórteres.





0130) O otimista (21.8.2003)



O otimista foi satirizado por Voltaire no Cândido, através do Dr. Pangloss, o sábio para quem qualquer coisa que acontecesse servia como prova cabal de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. 

Como Voltaire não deixou caco sobre caco deste patético personagem, o otimismo de hoje trocou de discurso, e em geral aparece associado a uma crença qualquer, seja ela política, religiosa ou científica. Um otimista típico de nosso tempo é o americano médio, que acredita na vitória pacífica do Republicanismo Protestante Militar. 

No lado científico, há os que crêem que algo milagroso vai acontecer nos laboratórios e resolver todos os nossos problemas. Décadas atrás era a energia nuclear, hoje são a Biotecnologia e a Engenharia Genética.

Esses, no entanto, são os otimistas por atacado, aqueles que trabalham em escala macro, e podem se dar o luxo de passar a vida inteira acreditando numa Teoria, porque sabem que, daqui que ela seja provada ou desmentida, “ou morro eu, ou morre o rei, ou morre o burro”. 

O otimista mais interessante como tipo humano é aquele que consegue manter esta atitude dentro da guerra de trincheiras, da carnificina de baionetas que é a vida cotidiana, onde parece que tudo conspira para nos convencer de que o mundo não foi feito para dar certo.

O otimista é, na verdade, um paranóico do Bem, um paranóico que acredita que o Universo inteiro conspira a seu favor. Ele é capaz de conceber as mais rebuscadas explicações para justificar sua fé em hipóteses pouco confiáveis. 

O otimista estaciona o carro numa rua escura e bate descuidadamente a porta, sem travar. A gente avisa a ele para ter mais cuidado, e ele diz: “Ora, quem vai se dar o trabalho de roubar um Gol velho, com aquele Santana dando sopa ali na frente?” 

O otimista começa a tossir, tem um pouco de febre, e em lugar de pensar se está com tuberculose ou com a Pneumonia Asiática, diz: “Foi aquele sorvete de ontem, ainda bem que só tomei um pouquinho e amanhã vou estar bom.”

O otimista ouve no “Jornal Nacional” que o Governo vai conceder um aumento de tanto por cento para a categoria dele; faz um cálculo rápido com lápis e papel, e no dia seguinte já compra um DVD no crediário. Faz compras pela Internet fornecendo o número do cartão de crédito, e se dizemos que tome cuidado, ele retruca: “Todos os dias circulam pela Internet 11 milhões de números de cartão de crédito. Por que me preocupar?” 

Às vezes não resistimos, e ironizamos: “Ah, quer dizer que essas coisas só acontecem com os outros?” Ele responde: “Não necessariamente, mas acontece que eu só sou um, e os outros são seis bilhões. Então...” Contra uma lógica de ferro como esta, é difícil argumentar. Melhor deixá-lo em paz. 

Afinal de contas, se metade do progresso tecnológico humano se deve aos preguiçosos (“deve haver uma maneira mais fácil de fazer isto”), todo o nosso progresso social se deve a estes curiosos personagens, que acham que alguma coisa pode dar certo num mundo errado como este.






0129) A música dramatúrgica (20.8.2003)

A melhor definição de literatura que eu já vi é do escritor Damon Knight. Dizia ele: “Uma história não é aquela porção de páginas com palavras impressas. Aquilo ali são as instruções verbais para criar a história. A história é o que acontece em sua mente enquanto você lê as instruções.” Tá dito tudo, não é mesmo? A literatura manipula palavras que, a rigor, são apenas sinais gráficos no papel. É uma atividade abstrata. Podemos achar que um filme também é um conjunto de instruções audiovisuais sobre como criar a história, mas aí já seria forçar a barra, porque afinal um filme nos impõe imagens e sons concretos. O mesmo se aplica ao teatro, aos quadrinhos, a às outras formas de arte narrativa. Somente a literatura é feita apenas de instruções verbais que precisam ser transcodificadas em nossa mente para gerar a história.

Escrevo: “um triângulo amarelo dentro de um quadrado azul”, e tenho certeza de que o leitor vê o que sugeri. Se pudéssemos enxergar a visualização feita por mil leitores (se é que tem tanta gente lendo esta coluna), teríamos mil pequenas variações desta imagem básica. Escrevo: “Uma rua deserta de madrugada, um carro que avança lentamente, de faróis apagados”. As variações podem ser incontáveis. Qual é a rua deserta? A Av. Presidente Vargas? A Quinta Avenida? A Maciel Pinheiro (de Campina Grande, de João Pessoa)? Uma rua abstrata? E o carro? É uma fusca, é um Gol, é uma Ferrari reluzente, um DKW-Vemag branco com teto preto? Tudo isto é possível, porque as palavras descreveram mas não especificaram. A arte da prosa e da poesia é essa oscilação entre o que é dito e o que é deixado à imaginação.

Surge daí a minha teoria de “música dramatúrgica”. (Meu negócio é teoria; não me peçam para praticar, dá muito trabalho) A música dramatúrgica é quando você usa a palavra e os efeitos sonoros para criar ambientes, ações, situações, personagens, etc., trazendo ao universo tão repetitivo da canção popular (o cantor cantando, o acompanhamento acompanhando, os vocalistas vocalizando...) algo da literatura escrita e da novela de rádio. Não tenho nada contra as canções tradicionais; passo o dia a escutá-las, mas por isso mesmo começo a matutar: Será que é só isso? Voz, violão, banda, orquestra? Por que não usar o CD para criar pequenas histórias em volta das canções, através de vozes, ruídos, efeitos sonoros, e todos os recursos que as antigas novelas de rádio nos davam?

No rádio, basta um zumbido profundo para dizer: estamos numa espaçonave. Basta um cloc-cloc de cascos para sugerir, a custo zero, um bando de jagunços ou de caubóis. Basta um fundo sonoro de grilos e araras para criar a Floresta Amazônica. Produções milionárias e gratuitas, para enriquecer a textura e o sentido das canções, trasformando-as em áudio-clips, em pequenas histórias que vão além do esquema “cantor + coro + acompanhamento”. Um CD sonoro é um universo de possibilidades, e mal arranhamos a sua superfície.

0128) Uma biografia de Guimarães Rosa (19.8.2003)

Existem umas 200 biografias de Machado de Assis, nenhuma de Guimarães Rosa. Por que será? Temos fascículos ou livros didáticos com resumos da vida do autor, e só. Precisaríamos de uma biografia pesquisada, trabalho profissional, como o de Fernando Morais sobre Assis Chateaubriand, os de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues e Garrincha, ou (para ficarmos num exemplo doméstico) o de Fernando Moura e Antonio Vicente sobre Jackson do Pandeiro.

Não que eu tenha ilusões de que biografias sirvam para revelar “quem foi, de fato, Fulano de Tal”. Toda vida humana, até a de Zezim das Couves, é irredutível a palavras. Sempre que leio uma biografia, fico pensando nos acessos de desespero e nas crises de depressão que o biografado teria, se lhe dessem a chance de voltar à vida e ler o que escreveram sobre ele. “Não foi nada disso!” seria com certeza seu desabafo mais frequente. Mas, paciência. Fazer o quê? Morreu, lascou-se. A vida continua, e a crítica literária também. E há um setor da crítica, que tem lá sua importância, onde se investiga a cronologia de uma vida em paralelo à cronologia da gestação e criação da obra.

A vida de Guimarães Rosa permanece em aberto, esperando quem sabe a vinda de um “brazilianist” que tenha o pique do destemido John Baxter, o cara que já biografou Luís Buñuel, Federico Fellini, Stanley Kubrick, Woody Allen e Steven Spielberg. Ou de Jeffrey Meyers, que já contou as vidas de Scott Fitzgerald, Edgar Allan Poe, Hemingway, D. H. Lawrence e Joseph Conrad. E o momento seria agora, em que muitos dos seus contemporâneos ainda estão vivos, além de familiares, como suas filhas Vilma e Agnes.

Tolkien, o autor de “O Senhor dos Anéis”, afirmou certa vez: “Uma das minhas opiniões mais sólidas é a de que o estudo da biografia de um autor é uma maneira totalmente inútil e falsa de abordar sua obra.” E ainda assim, a biografia dele escrita por Humphrey Carpenter é uma aula de como mostrar a relação entre vida e obra, sem as interpretações gratuitas ou as generalizações apressadas em que biógrafos mais ingênuos (ou menos escrupulosos) incorrem com facilidade. A biografia literária que Emir Rodriguez Monegal fêz sobre Jorge Luís Borges é, também, um primor de reconstituição do ambiente cultural e literário que formou o escritor. O biografado entra nela quase como um coadjuvante. O personagem principal é a Literatura, através dos escritos de Borges e do mundo literário de que ele fêz parte.

Guimarães Rosa foi médico rural e do Exército, trabalhou no antigo Serviço de Proteção ao Índio, foi diplomata na Alemanha nazista e na Colômbia, ajudou a demarcar as fronteiras do Brasil, flertou com o Ocultismo, estudou dezenas de línguas, ocupou numerosos cargos oficiais, teve uma vida bem documentada, correspondia-se com Deus e o mundo (no sentido real e no metafórico). Tudo isso se filtrou para os seus escritos, mas a história dessa complexa alquimia ainda está esperando para ser contada.

0127) O Catatau (17.8.2003)




O Catatau de Paulo Leminski (Curitiba, edição do autor, 1975; reeditado em 1989 pela Sulina, de Porto Alegre) é chamado de romance, por ser um texto em prosa com mais de 200 páginas. Afora isto, o livro assusta o leitor desprevenido. 

“Era um povo tão preguiçoso que só falava palavras oxítonas e deixava para parábolas o que podia ter sido profecia.” (p. 192) 

O livro é um parágrafo único, um monólogo interior cujo protagonista chama a si mesmo de Renatus Cartesius. É o filósofo René Descartes, que teria vindo ao Brasil com Maurício de Nassau. 

“Que espécie de lugar é este que nos pergunta onde estamos?” (p. 112) 

Em contato com a natureza tropical de Pernambuco, e com uma erva alucinógena fumada pelos nativos, entra num prolongado delírio. 

“Fumar isto dá uma fome!” (p. 14) 

E o livro se derrama, num dilúvio joyceano e concretista.

Leminski foi um dos melhores poetas minimalistas do Brasil – muitíssimo melhor, por exemplo, do que Oswald de Andrade, de quem era meio discípulo. 

“Posso me enganar, o que ninguém pode é se enganar por mim.” (p. 21) 

 Foi também um dos nossos melhores teorizadores de poesia. Tendo sido professor de português e redator publicitário, tinha facilidade em dizer as coisas de maneira simples. 

“As coisas só caem no esquecimento quando subiram muito alto no entendimento.” (p. 68) 

Era um prodigioso fazedor de frases, e esta talvez seja a melhor coisa do “Catatau”: as incontáveis frases engraçadas, paradoxais, satíricas, absurdas, sarcásticas, líricas, de que o livro é composto. 

“Antes adorava um deus maior que eu; agora, adoro uma brincadeira.” (p. 150)

Poliglota, tradutor de John Lennon e de poetas japoneses, parceiro musical de Caetano Veloso e de Morais Moreira, Leminski, que tinha sangue negro e descendia de polacos, sempre foi uma figura meio escandalosa na pacata Curitiba. 

“O futuro vem de fora. Dentro, está que é uma atualidade só” (p. 192) 

 No Catatau, ele usa o choque cultural entre o racionalismo europeu e o surrealismo dos trópicos para falar também de suas próprias contradições. 

“Senhores, mecenhores, não mereço tanto, tudo é efeito do sol na febre com fome!” (p. 66) 

Tinha um temperamento polêmico, expansivo, capaz de imensa objetividade e de circunlóquios barrocos. “Catatau” é a obra que melhor exprime a catadupa linguística do seu pensamento. 

“Faço tudo de que sei que não vou me arrepender, mas é que não me arrependo nunca do que fiz com essa determinação.” (p. 90)

Quase três décadas após seu lançamento, o Catatau mereceu análises de José Miguel Wisnik, Antonio Risério e muitos outros; um bom lugar para começar a pesquisá-las é o saite “Kamiquase”  (http://www.elsonfroes.com.br/kamiquase/nindex.htm). 

Leminski publicou romances, poesia, ensaios, traduções de Walt Whitman, William Blake, John Fante, Samuel Beckett. Morreu de cirrose em 1989, aos 44 anos. 

“Vício, forma mais violenta de estar vivo: bom senso e boa sensação, incompatíveis!” (p. 48)








0126) O rap e o repente (16.8.2003)

Dias atrás fui ver um show de de Berna Ceppas, um cara que faz música computadorizada. “Música eletrônica” é música dançante que toca em boate. Música computadorizada é música para nerds como eu ficarem sentados, vendo num telão uma montanha-russa de imagens picotadas e aleatórias, ao som de loops & samples, enquanto no palco alguns sujeitos pilotam computadores, mesas de som e outras engenhocas, criando um sincronismo entre improviso visual e improviso sonoro.

O show tinha a participação especial de Negone, um “rapper” carioca. E de um instante para o outro o show de transformava. Depois de 50 minutos de som na caixa e imagem no telão, sem que nenhum dos artistas no palco desse outro sinal de vida a não ser mexer em controles, sobe no palco um cara com um microfone que vai até a platéia e pede que lhe emprestem documentos. Ele pega carteiras de identidade e de motorista, começa a ler os dados e a improvisar em cima: “Essa aqui é Luciana, nasceu em 74, veio hoje no teatro, pra me ver improvisar... É aqui que eu vou dizer, é aqui que eu vou falar... Ela nasceu no Rio, é garota carioca, gosta de comer pipoca, quando toma guaraná...”

A platéia vem abaixo. O show, que era musicalmente ótimo, ganha uma dimensão humana que não tinha antes. O espectador sente-se parte do show, vê seu nome e seus dados sendo usados como pretexto-de-rima pelo poeta. Todos riem, todos gostam, e vinte minutos depois, quando o poeta devolve os documentos e encerra sua canja, os aplausos são entusiasmados.

Eu passei minha adolescência vendo Dedé da Mulatinha e Colombita cantarem pelas ruas de Campina; vi duplas como Cachimbinho e Geraldo Mouzinho, Caju e Castanha, fazerem esse toma-lá-dá-cá com a platéia. O Nordeste é mesmo privilegiado. Uma coisa que os negros norte-americanos transformaram em moda nos anos 1980 já era praticado nos sertões da Paraíba em 1880. Não vou entrar aqui na lenga-lenga de que basta ser americano para fazer sucesso. Isso é coisa já sabida.

O rap e o repente não são concorrentes: são irmãos, filhos do Capitalismo Europeu com mães diferentes. Podem até torcer o nariz um para o outro, no reencontro, mas ambos sabem quem são, e se tiverem a chance de conviver, acabarão se aproximando e se entendendo. O gesto do improviso criativo pode tirar a secura e a frieza da música tecnológica, criada a partir de bases e de colagens sonoras improvisadas. Um ótimo exemplo é o show do DJ Dolores, onde a música computadorizada prepara o terreno para Maciel Salu improvisar décimas, aboios ou solos de rabeca. Música high-tech e música folk podem se enriquecer mutuamente. Qualquer platéia admira um improviso feito sobre um assunto que ela entenda. Cachimbinho & Cia. não precisam abandonar o pandeiro e aderir à eletrônica. O formato antigo continua. Mas pode surgir um formato novo, desde que surja para valorizar o improviso, o repente, o verso feito na hora, que é o grande diferencial desta Arte Maior.

0125) Os emoticons (15.8.2003)

Quem troca mensagens pela Internet conhece, mesmo que não costume usar, os emoticons, aqueles simpáticos sinais que indicam a intenção emocional da frase ou fazem comentários brincalhões ao próprio texto. Os emoticons também são chamados de “smileys”, aquela carinha básica que é um círculo com dois pontos (os olhos) e uma leve curva (a boca sorrindo), e que é um ícone americano tão típico quanto o poster do Tio Sam (“I Want You”) ou o logotipo da Coca-Cola. O primeiro emoticon foi criado em 19 de setembro de 1982 por Scott Fahlman, numa mensagem para o “bulletin board” da Escola de Ciências da Computação da CMU (Carnegie Mellon University). Fahlman sugeriu os dois emoticons básicos: o que exprime satisfação: :-) e o que exprime desapontamento: :-( O texto desta mensagem original, e o relato do trabalhão que deu para recuperar esta relíquia paleozóica dos primórdios da computação, está em: http://research.microsoft.com/~mbj/Smiley/Smiley.html

Parecia que a coisa ia acabar aí, porque há pouco espaço para variações, mas o fato é que a imaginação humana não tem limites, principalmente quando o sujeito trabalha em escritório e tem um monte de coisas chatas pra fazer. Hoje há centenas de emoticons à solta pelas telas e teclados do mundo. Fazem parte da “linguagem internética”, o código informal posto em prática pelos usuários da Rede. Também fazem parte desta linguagem as abreviaturas que usamos em nossos emails. Pq vc n vem k, pra gt conversar? abs, bt. Há abreviaturas bem mais esotéricas do que estas. Vendo jovens conversando em chat, confesso que às vezes não entendo uma palavra. Outra característica da linguagem internética são os acrônimos, ou siglas que resumem uma expressão mais longa: vai pra pqp, seu fdp.

O interessante é que os emoticons não precisavam da Internet para existir. Os sinais utilizados para criar a maioria deles já existiam nos teclados das paleolíticas máquinas de escrever que usamos desde o século passado: dois pontos, ponto e vírgula, parênteses, aspas, barras, várias letras e acentos... Por que somente com a Internet alguém pensou em usá-los para fazer figurinhas? Podem existir mil razões, mas vou sugerir uma: Era uma situação nova. Vocês não avaliam o bem que uma situação nova faz à criatividade mental. A linguagem datilografada (a burocracia, a correspondência, o jornalismo, a literatura...) estava fossilizada por décadas de manuais de redação e estilo, cursos de datilografia do tipo “asdfg”, regras e mais regras. Quando um sujeito sentava à máquina, estava cheio de implantes mentais sobre como devia usar aquilo. Mas, quando juntaram os velhos teclados aos novos monitores eletrônicos, criou-se uma carga de visualidade diferente daquela do papel em branco. Era um espaço ainda sem dono, ainda a ser desbravado. As msgs tinham que ser curtas, era preciso descobrir, mesmo brincando, mesmo por distração, novas maneiras de abreviar, de sugerir. Um belo dia... heureca! ;-)))

0124) A arte do trocadilho (14.8.2003)



(Ilustração: Brock David)

O trocadilho é um desvio verbal em que uma palavra é alterada, ou mais de uma palavra são justapostas, de modo a fazê-las assumir novos sentidos, por associação sonora. 

Há inúmeros tipos e variadas técnicas de trocadilho. A qualidade de um trocadilho deve ser medida, a meu ver, pela relação complexidade/simplicidade. Um bom trocadilho tem uma idéia complexa, mas é rapidamente entendível; e vice-versa. 

O espírito de um trocadilho está no som, e não na grafia das palavras, mesmo quando ele é comunicado por escrito. 

Um caso de trocadilho involuntário foi o que vi uma vez numa enorme livraria: uma senhora entrou e perguntou ao funcionário “onde era a seção espírita”. Pela cara perplexa que ele fêz, é claro que ouviu “sessão”. Foi um trocadilho involuntário de parte a parte.

Grandes trocadilhistas são Guimarães Rosa, Paulo Leminski, Glauco Mattoso, Oswald de Andrade... 

O melhor tratado científico sobre o trocadilho é O Chiste e suas relações com o Inconsciente, de Freud. Como a quase totalidade dos exemplos é em alemão, a necessidade de traduzir e explicar a múltipla significação de algumas palavras tira um pouco do prazer da leitura, porque o bom do trocadilho é o pequeno susto quando percebemos que estávamos “lendo errado”, e que existe um duplo sentido naquela frase. 

Perguntaram uma vez a Emilio de Menezes: “Qual é a diferença entre o homem e a mulher?”, ao que ele respondeu: “Eu não concebo.” A sutileza surge neste caso do duplo sentido de uma palavra, e não da junção de duas. 

Misturando duas, temos o chamado “portemanteau”, ou cabide, onde se “pendura” uma palavra na outra, misturando-as. Quando Carlos Drummond usou a palavra “monstruário”, estava seguindo uma regra básica do trocadilho: fundir duas palavras usando a parte mais característica de cada uma. O trocadilho entre “mostruário” e “monstro” é quase inevitável, e daí decorre uma coisa interessante do trocadilho: ele é mais uma descoberta do que uma invenção. É uma associação entre palavras que estão ali, disponíveis, esperando apenas o instante em que alguém perceba que é possível juntar aqueles dois termos. 

Já vi discussões e brigas intermináveis sobre “Fulano que furtou a idéia de Sicrano”, quando para mim era evidente que não houve furto: a idéia estivera lá a vida toda, à vista de quem a pudesse ver.

O melhor trocadilho é o que é feito num repente, de improviso. Uma vez minha mãe pegou uma maçã na mesa e reclamou que ela estava com uma banda estragada, e eu falei: “Pois é... Metade má, metade sã.” 

Outra vez, fui no Bar Canarinho, na feira, ver uma cantoria com Lourival Batista, que andava apoiado num bastão. Uma daquelas mocinhas de minissaia perguntou: “Seu Louro, pra que essa bengala?”, e ele disse: “Isso é coisa pra quem não gala bem...” 

O trocadilhista é como Romário, tem que estar sempre pronto, porque o passe perfeito, ou a furada do zagueiro, pode surgir a qualquer instante.





0123) Os pobres (13.8.2003)

Falei dias atrás que os ricos são generosos. Mais generosos ainda são os pobres, e não falo dos mendigos ou miseráveis; falo dos pobres, os que conhecem a angústia e a responsa de possuir alguma coisa. Um rico pode dar-nos de presente uma BMW ou uma casa de campo sem que isto abale o seu saldo médio; já um pobre, quando reparte seu almoço, está nos dando metade do que tem. A concentração de valor nas posses de um pobre é uma coisa que até assusta, porque um pires quebrado talvez só possa ser reposto no ano que vem, e se o leite que está no fogo derramar, babau. Um cara que mora num barraco nas Malvinas está, do ponto de vista dele, mais cercado de preciosidades insubstituíveis do que o zelador do Louvre.

A literatura de esquerda contribuiu muito para criar uma imagem idealizada dos pobres, através da repetição de verdades parciais como “todo pobre é explorado”, “todo pobre é honesto”, “todo pobre quer melhorar de vida”, e assim por diante. Pobre não é tão simples assim; até por uma questão de loteria genética, qualquer pobre é tão complexo e contraditório quanto um playboy de F. Scott Fitzgerald ou uma marquesa de Proust. Seria extremamente educativo se pudéssemos criar um Museu da Imagem e do Som só com depoimentos de brasileiros de esquerda que, nas décadas de 1960-70, largaram seus apartamentos de classe média para trabalhar junto ao Povo, e acabaram descobrindo que o Povo não era nada do que tinham imaginado nos livros.

Os ricos, quando querem aventura e adrenalina, vão escalar o Vesúvio ou caçar rinocerontes em Uganda. O pobre produz a mesma adrenalina encarando o transporte, o batente, o patrão, as contas no fim do mês. Uma vez eu conversava num táxi sobre esses assuntos gerais – falta de grana, falta de trabalho, despesas acumuladas – e o taxista disse: “Pois olhe, nesses últimos dez anos eu só conheci duas situações: cabeça dentro dágua, cabeça fora dágua, cabeça dentro dágua de novo...” Vida de pobre é uma decisão de campeonato por dia. São três horas de ida, oito de trabalho, três horas de volta, e ao adormecer ele pensa: “Obá! Nem fui demitido hoje!” Enquanto ele mantiver a cabeça fora dágua, tem todos os motivos para comemorar.

O sujeito que se mantém honesto quando pobre dificilmente deixa de sê-lo se enriquecer; por isso a indústria da propina e do suborno é tão maléfica quanto a da droga. Subornar um guarda com 10 reais é como levar uma mulher para a cama por 10 reais; depois que ela aceita, daí para a frente é só questão de discutir preço. O cara embolsa a grana, mas deixa de ser pobre, começa a virar miserável. O miserável é o pobre que perdeu os valores, perdeu o rumo, perdeu o sentido, o planejamento, a esperança. Um miserável é como o time que percebe que perdeu a decisão do campeonato, e agora só pensa em acabar o jogo com um sururu. Um miserável é capaz de matar para tirar um real de alguém. Um pobre não; mas é capaz de morrer pra defender o derradeiro real que traz no bolso.