quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

4417) Onde fica o meio do mundo (26.12.2018)




São vários os contos populares onde esta cena aparece. Eu me refiro àquele confronto que geralmente se dá entre o herói, que é um cara apenas esperto, e o poderoso Rei. O Rei faz uma série de perguntas, e o esperto as rebate com um negaceio diferente de cada vez.

Aí, o Rei pergunta:

– Onde fica o meio do mundo?

E aí “Camões”, ou “Cancão de Fogo” ou qualquer outro diz:

– Exatamente ali, perto daquela coluna do palácio.

– Como é que você sabe?

– Pode mandar medir.

O Rei não tem como mandar medir, e talvez nem soubesse explicar o que era pra ser medido. Ele pergunta:

– Quantos cestos de terra tem naquela montanha? – aponta a janela escancarada.

O esperto diz:

– Um milhão, duzentos mil, e vinte e seis.

Se o Rei fosse esperto, os dois se engatariam nesse ponto, gerando um impasse absoluto, como um empate por exaustão no xadrez. Mas o Rei é um mero personagem, e precisa fazer a terceira pergunta, a frase fatal para que o vírus da História seja passado adiante:

– O que é que eu estou pensando?

E “Arlequim”, ou “Pedro Malazarte” responde:

– Está pensando que eu sou [a falsa identidade sob a qual ele se apresentou ao rei], mas não sou, eu sou [Arlequim, Malazarte].

E o conto se desenlaça. O que há de interessante nessas cenas é que pertencem ao conto de fadas, à literatura de cordel, ao esquete de humor, à arte da pergunta acachapante e da resposta relâmpago. São de circo, são de almanaque medieval, são das madrugadas radiofônicas. Um antropólogo talvez dissesse que ela cumpre um pouco a função de cortar nós-górdios filosóficos reduzindo tudo a uma cambalhota simples.

O interessante é que pode-se manter essa ceninha, vamos chamá-la “O Interrogatório” ou “As Três Perguntas do Rei”, entre os quadros de uma história, mas mudando-se, como convier, quais as perguntas feitas, as respostas dadas. É um bloco que pode ser trocado por diálogos novos, mas sempre mantendo essa função: o esperto “come o rei com farinha”.

Dando uma geral nas literaturas antigas do Ocidente e do Oriente a gente vê o quanto é comum esse conceito da cena que pode ser infindavelmente mudada e ainda assim continuar a mesma. Ela precisa cumprir sempre a mesma função: fazer o esperto revelar sua identidade ao rei, após derrotá-lo. A perguntas e as piadas podem ser mil vezes refeitas por quem encenar esse conto.

São centenas as aventuras de cordel em que um coronel ou rei ou fazendeiro põe a filha no balcão matrimonial, com a condição de que o pretendente responda três perguntas, ou formule três perguntas próprias, ou pratique alguma façanha, para merecer a mão da noiva em disputa. É a aliança estratégica entre o Poder (o rei) e o Saber (o esperto).

É claro que todas essas histórias são contos inventados, e é muito fácil imaginar um improviso de fração de segundo quando se está escrevendo e revisando em toda comodidade. Mas o “repente relâmpago” também existe na vida real, aquela resposta ideal imaginada, formulada e dita em voz alta ao longo de alguns segundos.

Diz-se que Bocage usava, em alguns círculos poéticos, o pseudônimo anagramático de Elmano, a partir de seu nome verdadeiro, Manoel Bocage.

Um dia vem ele por Lisboa quando cruza com outro poeta, que, vendo-o cabisbaixo, pergunta em verso:

– Elmano, a lira divina / por que razão emudece?

Bocage, que estava meio sorumbático, ripostou:

– Porque mais cala no mundo / quem mais o mundo conhece.

O amigo tornou, em cima da bucha:

– E o que tens visto no mundo / que tanto assombro te faça?

E “Elmano Sadino” fechou a estrofe:

– Um poeta com ventura, / um toleirão com desgraça.

Bocage era da linhagem de poetas malditos, como Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”.  Na vida de cada um deles vê-se a presença do improviso leve e solto, parte de uma cultura, que pode chegar a encenar grandes disputas de arquibancada cheia; mas no geral é para uso cotidiano, em mesa de bar.