sexta-feira, 13 de novembro de 2009

1362) “C’était um rendez-vous” (26.7.2007)



É um curta de oito minutos e pouco, dirigido por Claude Lelouch nos anos 1970. Ao amanhecer, um carro dispara pelo centro de Paris. A câmara, no banco da frente, vai registrando a passagem dos sinais vermelhos (em esquinas felizmente desertas àquela hora matinal) ao longo de paisagens parisienses: o Arco do Triunfo, a avenida dos Champs Élysées, a Rue du Rivoli, a Praça da Ópera... Ouvimos o ronco angustiado do motor, cada vez mais agudo, a troca de marchas, o ranger dos pneus nas curvas fechadas... O carro faz algumas barbaridades, corta pela contramão, entra com tudo em ruelas estreitas, mas sempre em frente, sem nunca se deter, até que surgem as ruelas de Montmartre, as primeiras ladeiras, ele vai subindo, divisamos ao fundo a cúpula branca do Sacré-Coeur, e é nos degraus da frente da igreja que o carro se detém. No instante em que ele pára, uma mulher jovem, bonita, vem subindo os últimos degraus, e do lado esquerdo do carro surge um rapaz, o motorista, que a abraça. E surge na tela o letreiro: “Cétait um rendez-vous”. Era um encontro marcado. (Procurem pelo título, no YouTube)

O filme tem uma certa poesia, embora seja politicamente incorretíssimo pelas inúmeras infrações que o motorista cometeu. Entende-se que a idéia tenha sido irresistível para um sujeito como Lelouch, fanático por automobilismo – em seu famoso filme Um homem, uma mulher, o protagonista, interpretado por Jean-Louis Trintignant, é piloto de corridas. Para fazer o filme, ele montou a câmara num sistema estabilizador (para evitar que a trepidação borrasse a imagem), e usou uma Mercedes Benz 450 SEL, sendo que o som do motor é de uma Ferrari 275 GTB. (Eu copiei esses dados do YouTube; na vida real, não sei distinguir uma Ferrari de um Fuscão Preto).

Recentemente, a banda Snow Patrol usou o filme de Lelouch como a imagem de um videoclip para sua canção “Open Your Eyes”. Em vez do som do motor, ouvimos a banda cantando, e a canção se encerra com a imagem do casal se abraçando na última cena. A música é uma daquelas canções que se iniciam com um ritmo contínuo da guitarra e a voz vai se superpondo, enquanto a imagem desliza velozmente, de modo contínuo. É muito bom o clip, até mesmo por ser minimalista – se bem que imagens em movimento contínuo são uma das melhores coisas para sincronizar: praticamente qualquer música dá certo.

Alguém poderia fazer um clip assim, se bem que teria de ser um clip editado, para não ficar muito longo: começando com uma imagem noturna (digamos, uma praça) perto do amanhecer, a câmara sairia percorrendo paisagens da cidade, ruas desertas, praças vazias, e à medida que o sol nascesse aquilo iria clareando aos poucos até que depois de mostrar algumas centenas de ruas a câmara voltaria inesperadamente, por uma transversal, ao ponto de partida, e terminaria com o mesmo enquadramento do início, só que agora banhado pelo sol.

1361) Os tesouros não merecidos (25.7.2007)




Nos contos fantásticos que envolvem algum tipo de comércio com o sobrenatural (lâmpada mágica, três pedidos, etc.) existe uma lei não-escrita segundo a qual tudo que se pede com facilidade acaba custando um preço inesperado. 

Em “O demônio da garrafa” de Robert Louis Stevenson, o sujeito pede à garrafa mágica uma mansão; logo vem a saber da morte de um tio, que lhe deixa de herança exatamente o dinheiro necessário para construí-la. 

Em “A pata do macaco” de W. W. Jacobs, o velho casal pede à relíquia miraculosa as 200 libras que faltam para pagar a hipoteca da casa; recebem-na como indenização trabalhista pelo acidente fatal que seu filho único sofre no dia seguinte. 

Existe uma lógica cruel no atendimento a esses pedidos ingênuos de pessoas que acreditam que a riqueza é grátis. Ora, como dizia um célebre economista norte-americano, “almoço de graça não existe”. Tudo cobra um preço, mais cedo ou mais tarde.

Outro lugar comum romanesco é a herança inesperada. Foi tão usado que virou anátema – o sujeito que usar isso hoje cai em descrédito, e nem estou me referindo à literatura, falo mesmo em novelas de TV. 

Fulana é uma viúva jovem, honesta, sofredora, que dá duro no batente para criar três filhos. Faltando dez capítulos para o fim da novela, ela recebe a notícia de que morreu uma tia-avó dela no Mato Grosso e lhe deixou de herança um milhão de reais. Surpresas desse tipo foram tão usadas para resolver problemas que perderam a credibilidade. 

Mais sábios são os criadores folclóricos, porque num conto-de-fadas não há nenhuma herança que não venha com uma maldição (“o tesouro é seu, mas você não pode se casar”) ou com uma condição misteriosa e geradora de problemas futuros (“o castelo tem 99 quartos, mas há um que você não pode abrir”).

A sabedoria popular desconfia dos tesouros não merecidos, quer dizer, daqueles que são conquistados magicamente, que caem do céu em nosso colo, que chegam às nossas mãos sem nenhum dispêndio de sangue, suor e lágrimas. Nos contos populares coexistem realidade e fantasia, por isso há tesouros que o sujeito acha simplesmente dando uma topada numa pedra (a fantasia, o desejo infantil da riqueza fácil) mas no pacote vem sempre uma ameaça ou uma punição.

Maldo eu que seja isto também uma reação freudiana (êpa!) das populações camponesas medievais, em cujo seio essas lendas brotaram, a instituições que eles viam com estranhamento, como a da herança. 

Naquele tempo feudal, em que os servos nada tinham de seu, devia ser para eles algo fantástico o modo como a morte de um nobre transferia magicamente para um parente distante seus títulos, seus brasões, seus castelos, seus vinhedos, seus servos. Uma casa nobre em ruínas e farrapos ressurgia para a riqueza devido à morte de um parente distante. Uma fortuna às vezes imerecida, geradora de contos de advertência, sinais de perigo tentando restaurar o equilíbrio de um mundo abalado por esses caprichos divinos.