terça-feira, 18 de abril de 2023

4933) O passe e a assistência (18.4.2023)



(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa)
 

A língua brasileira tem umas coisas engraçadas. A primeira delas é que começou sendo “Língua Portuguesa”. Era assim chamada na época em que eu comecei a frequentar a escola, ou seja, quando os dinossauros dominavam a Terra. Mas... Meu pai era viciado em palavras-cruzadas e charadas; eu passava dias e noites folheando as dezenas de dicionários que ele tinha em casa, e sempre me chamou a atenção haver um Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, cujo propósito eu já era capaz de entender e aceitar. 
 
Era uma língua traduzida para outra língua quase igual. 
 
Portugal, no entanto, é um amor que eu tive e vi, pelo espelho, na distância se perder, como disseram de forma irretocável Roberto & Erasmo Carlos. Surgiu na estrada a cordilheira dos Estados Unidos e a língua inglesa, que tem contaminado de forma irremediável a nossa, contando com o apoio entusiasmado de muita gente – inclusive eu. 
 
Um debate recente é o que envolve a adoção da palavra “assistência”, no futebol: “O gol de Pedro foi uma beleza, mas vamos reconhecer que a assistência de Arrascaeta foi sensacional.” 
 
Muita gente se rebela contra isto, dizendo que na nossa língua patriótica já existe a palavra passe e que o anglicismo é dispensável. Bastava dizer “o passe”. Era assim que a gente escrevia no Diário da Borborema.O gol de Fernando Canguru foi uma beleza, mas vamos reconhecer que o passe de Assis Paraíba foi sensacional.”  



(Assis Paraíba e Fernando Canguru)


A palavra assistência, pelo que entendo, veio do basquete. Eu já a via nas transmissões do SporTV na década de 1990, quando passei a acompanhar o time do Chicago Bulls, no tempo de Phil Jackson como técnico, e Michael Jordan e Scottie Pipen na quadra.
 
Posso estar me enganando, mas desde essa época – quando ninguém usava “assistência” no futebol – eu via uma diferença entre assistência e passe. O passe é quando você apenas entrega a bola a um companheiro. A assistência (no basquete) é aquele passe decisivo, no garrafão, naquelas frações-de-segundo cruciais quando o ataque penetra todo de uma vez e é preciso entregar a bola, de maneira inesperada, para alguém em condições de fazer a cesta.
 
Nessa mesma época, anos 1990, eu não via ninguém da imprensa do futebol chamar um passe decisivo, passe-para-o-gol, de “assistência”. Todo mundo que eu lia dizia algo como: “No jogo de hoje da Seleção Brasileira, Rivaldo teve grande atuação; não marcou gols, mas deu passes decisivos para os gols de Ronaldo e Bebeto”.



(Rivaldo)
 

Ninguém dizia “assistência”.
 
E aqui entra meu argumento em favor deste anglicismo. A palavra nova é necessária (mesmo que venha de outra língua, o que não é nada demais) quando carrega consigo uma nuance que não tem na palavra anterior. A palavra assistência não substitui a palavra passe: ela indica um tipo específico de passe, um tipo mais importante de passe. 
 
É algo parecido com o que faz a gente distinguir entre “passe” e “lançamento”. Um lançamento, no futebol, também é um passe: Fulano entrega a bola para Sicrano. Mas é um passe geralmente a grande distância, e que muitas vezes tem a intenção de dar início a uma jogada nova, um ataque, uma combinação de avanço a toda velocidade e de deslocamento paralelo dos outros jogadores, que se oferecem como opções de jogada. 
 
“Jogador era Gérson, que fazia um lançamento de 40 metros com a facilidade de quem atrasa uma bola para o goleiro.”  Onde se lê “Gérson”, claro, pode-se ler também Zico, Zidane, Iniesta, Zezinho Ibiapino. 
 
Quem descreveu de maneira exemplar a diferença entre “passe” e “lançamento” (sem usar estas duas palavras) foi João Cabral de Melo Neto neste poema, do livro Agrestes (1981-1985). O “passe” é uma carta, que se entrega em mãos; o “lançamento” é um telegrama que cruza o hiperespaço para chegar ao destinatário. 


(João Cabral de Melo Neto, pelo Santa Cruz, do Recife)
 

DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL
 
Não é a bola alguma carta
que se levar de casa em casa:
 
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
 
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
 
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
 
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
 
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.
 
Passe é quando você simplesmente entrega a bola a um companheiro. Lançamento é quando você descobre à distância um companheiro desmarcado, ou um espaço vazio, e lança ali a bola, para “precipitar os acontecimentos”. E a assistência é, de certa forma, o penúltimo toque antes do gol. É aquele passe (pode ser curto ou longo) que deixa o atacante na cara do gol, com a única função de finalizar corretamente. 


(Gerson – Turma do Roma)


Me perdoem os leitores que não curtem muito futebol. Ele entrou neste texto como Pilatos no “Credo” ou como as pedrinhas na sopa de Pedro Malazarte. O texto é sobre a língua, as importações da língua e o enriquecimento da língua. Não acho que dizer “assistência” empobreça nosso vocabulário esportivo, pelo contrário. 
 
Uma língua busca o tempo inteiro dois objetivos opostos: ser cada vez mais simples e precisa (para que a comunicação possa fluir sem tropeços), e cada vez mais rica e cheia de nuances (para poder refletir a realidade, que é assim). 
 
Quando os “Manuais de Escrita Criativa” nos dizem para usar palavras simples, não estão nos dizendo para só dizer coisas banais. Fernando Pessoa disse que o poeta é um fingidor porque “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Só usou palavras simples, e isso serviu para ressaltar o imprevisto da idéia, a originalidade da idéia, a verdade profunda da idéia. 
 
(E o Brasil já chegou a um ponto em que muita gente torcerá o nariz diante do “deveras”, dizendo que isto é “falar difícil”. Paciência.)