domingo, 15 de agosto de 2021

4734) Erros criativos (15.8.2021)



(provas corrigidas de Un Coup de Dés")

Gosto de colecionar erros criativos, que podem ser de diversos tipos. Um dos mais frequentes é quando uma pessoa tenta fazer ou dizer algo, e por uma razão qualquer acaba fazendo ou dizendo algo diferente do que pretendia – e o resultado traz uma informação nova, um detalhe curioso que em circunstâncias normais talvez não ocorresse a ninguém.
 
Não é simplesmente o erro onde a gente manga do erro. É o erro que às vezes até parece intencional, porque o resultado poderia até ser justificado, mesmo que com um raciocínio um pouco tortuoso.

 
Meu amigo Mario Bag, ilustre ilustrador da minha obra literária, postou no Facebook tempos atrás:
 
Gastaram tanto tempo discutindo se o certo era dizer que alguém entrega algo "a domicílio" ou "em domicílio" que, talvez por causa do uso contínuo de "Home-Office" durante a pandemia, surgiu uma outra expressão (que já escutei de duas pessoas consideradas "do povo"): "ENTREGA A HOME-CÍLIO".
 
É um erro? É, se considerarmos que a pessoa entendeu mal algo que escutou e não reproduziu corretamente o que tinha escutado, como talvez fosse sua intenção. Mas o ruído que ela introduziu no termo, tentando fazer sentido dele, mostra que houve um entendimento do conteúdo.
 
Ou seja: a mensagem foi distorcida, mas a intenção significativa (indicar que se tratava de “algo relativo à residência de alguém”), se manteve, mesmo que por um caminho tortuoso.
 
São palavras distintas, porque em inglês “home” vem do proto-germânico “haimaz” (=lar), enquanto que em português “domicílio” vem do latim “domus” (=casa). A semelhança sonora, porém, resolveu poeticamente a parada.
 
O mais comum, no entanto, é que por ocasião de um erro de leitura ou de escutação o sentido vá pro espaço.
 
Li num artigo: “Fulano de Tal construiu canários para peças teatrais, óperas e desfiles de modas”. Na verdade trata-se de “cenários”. O que não me impediu de por uns cinco ou dez segundos erguer os olhos para a parede e visualizar um profissional num ateliê, parecido com um antiquário ou uma loja de taxidermia, rodeado por gaiolas de variados tamanhos exibindo canários artesanais em variadas cores, e posturas imóveis.
 
A literatura está cheia de exemplos de mensagens enriquecidas por ruídos telefônicos. Já mencionei, nesta série (consultem no blog a tag “Erros Criativos”) o caso do livro Naked Lust (“Luxúria Nua”), de William Burroughs. O título foi comunicado aos editores por telefonema internacional.  Por isto mesmo acabou virando oficialmente Naked Lunch  (“Almoço Nu”), e o resto é História.
 
Algo semelhante aconteceu com Gene Wolfe, o grande autor da série de FC “The Book of the New Sun”. O último romance da série intitula-se A Cidadela do Autarca (“The Citadel of the Autarch”). Ora, autarca é uma palavra rara mesmo em português, domínio em que talvez sejamos mais afeitos a elementos gregos do que o pessoal dos EUA. “Autarca” significa “soberano absoluto”.
 
Em 1981, por telefone, Wolfe informou o título da obra-em-progresso a Charles N. Brown, o saudoso editor da revista Locus. Brown não entendeu direito o que tinha ouvido e anunciou, no número seguinte da revista, que Gene Wolfe estava prestes a lançar o romance The Castle of the Otter (“O Castelo da Lontra”).
 
O que fez Wolfe? Correu às redes sociais, que nem existiam ainda, para clamar-se prejudicado? De jeito nenhum. Ele simplesmente declarou que “O Castelo da Lontra” era um nome excelente –  e publicou um ano depois um livro com esse título, reunindo material relativo à pesquisa e criação de sua série, dedicado a Brown e à equipe da Locus.

 
(Na revista do mês seguinte, Charles N. Brown pediu desculpas pelo erro e disse que o livro se intitulava na verdade “The Castle of the Autarch”. Wolfe comentou: “Ainda não chegou lá, mas está esquentando.”) 


("Oblique Strategies")
 
O compositor Brian Eno e seu parceiro Peter Schmidt inventaram um “baralho de conselhos” intitulado “Estratégias Oblíquas” (Oblique Strategies). São cerca de cem cartas, cada uma com uma frase impressa, que eles costumavam tirar ao acaso, quando estavam encrencados num problema criativo qualquer.
 
Uma dessas cartas dizia algo como: “Transforme o Acaso num aliado.” Ou seja: quando num trabalho criativo surge uma interferência não-prevista, mas o resultado é interessante, que motivo temos para eliminar esse “ruído”? Apenas o fato de que “não estava no roteiro”? Dane-se o roteiro. O roteiro é um ponto de partida para alguém começar a criar, não é uma descrição prévia de como deve ser a obra no final da criação.
 
Na série de TV “Twin Peaks”, de David Lynch, um dos principais personagens é o “espírito maligno” chamado de Killer Bob. É uma espécie de fantasma que persegue as pessoas e impele os homens ao estupro e ao assassinato. Como surgiu o personagem?  Durante uma gravação, o reflexo de um dos assistentes, um cara feioso, agachado numa posição que parecia ameaçadora, foi captado pela câmera. Em vez de cortar a imagem e filmar de novo, David Lynch a manteve, e criou o personagem, usando o assistente (Frank Silva) como ator pelo restante da série.
 
Era uma cena comum, com a personagem Laura Palmer sozinha em seu quarto. Ao ver pela primeira vez a imagem captada pela câmera, Lynch assustou-se ao perceber, por um ou dois segundos, a imagem daquele sujeito num quarto que se supõe quase deserto. Era como um fantasma obsessor. E ele entendeu de imediato que se mantivesse a imagem no filme o susto do público seria equivalente ao dele. Surgiu assim o Killer Bob.

 
(Killer Bob)
 
Reza a lenda que uma boa parte do críptico Finnegans Wake (1939) de James Joyce foi ditado pelo autor, acamado, a Samuel Beckett, que durante um bom tempo trabalhou como seu secretário. Durante uma dessas sessões, Joyce estava ditando o texto quando alguém bateu à porta e ele respondeu: “Pode entrar!”. 

Beckett, obedientemente, colocou o “Pode entrar!” no texto do livro. Joyce, ao que consta, se divertiu com o incidente, e o “erro” está lá até hoje.