sexta-feira, 5 de maio de 2017

4232) As Formas Simples (5.5.2017)



Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simples saiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.