terça-feira, 12 de dezembro de 2023

5011) Um Louvre dentro de um Titanic (12.12.2023)




As leituras da obra de Jules Verne são hoje em dia, tanto tempo após sua morte (Verne morreu quando Machado de Assis ainda estava vivo), as mais variadas possíveis. Curiosamente, na França multiplicam-se as leituras místicas, ocultistas e esotéricas de seus livros, apelando para simbologia alquímica, magia ritual, sociedades secretas... A obra de Verne, vista por esse ângulo, renderia um novo Pêndulo de Foucault a Umberto Eco. 
 
Verne escreveu metodicamente, abundantemente, produzindo livros de aventuras empapados de ciência, com a regularidade de um mecanismo de relojoaria. Dois romances por ano. A leitura de seus livros em sequência nos revela a sua curiosidade sobre o conhecimento científico, o seu otimismo tecnológico, o seu senso de aventura “aconchegante e confortável”... 
 
Uma leitura específica que sempre me esclareceu foi a que Roland Barthes faz em Mitologias (1957) sobre o Capitão Nemo e suas aventuras (“Nautilus e Bateau Ivre”).




Barthes vê com olho esperto o Capitão Nemo e seus ideais de herói romântico; tendo rompido com a humanidade, ele na verdade nem quer destruir nem consertar o mundo, apenas afastar-se dele. 
 
A descrição de Barthes é toda cheia de simpatia irônica: 
 
A imaginação da viagem corresponde em Verne a uma exploração da clausura, e o bom entendimento que existe entre Verne e a infância não provém de uma mística banal da aventura, mas, pelo contrário, de um gosto comum pelo finito, que se pode encontrar na paixão infantil pelas cabanas e tendas: enclausurar-se e instalar-se, este é o sonho existencial da infância e de Verne. O arquétipo deste sonho é esse romance quase perfeito, A Ilha Misteriosa, no qual o homem-criança reinventa o mundo, povoa-o, fecha-o e nele se encerra, coroando este esforço enciclopédico com a postura burguesa da apropriação: pantufas, cachimbo e lareira, enquanto lá fora a tempestade, isto é, o infinito, uiva inutilmente
 
(Mitologias, Difusão Européia do Livro, trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza e Rejane Janowitzer, p. 118)
 
Barthes estabelece um contraste interessante entre este herói romântico introvertido e os heróis românticos extrovertidos de tantos romances europeus de aventura, exploração e conquista. 
 
Jules Verne escrevia para jovens, e mantinha em seus enredos a pulsação excitante de toda aventura de peripécias. Outros autores, contudo, na época dele e depois dele, usavam essas aventuras em lugares exóticos para criar parábolas onde não enxergamos propriamente o entusiasmo colonialista de ocupar novos territórios, mas a narração de uma aventura geográfica com ressonância mais profundas – ressonâncias simbólicas onde as terras e as ilhas desconhecidas são as partes inexploradas da alma humana. 



Como René Daumal e seu famoso Mount Analogue (que tem como subtítulo “Romance de aventuras alpinistas, não-euclidianas, e simbolicamente autênticas”), em que um grupo de exploradores é arregimentado por um cientista com a finalidade de descobrir uma ilha misteriosa no Pacífico Sul, tornada invisível por uma anomalia gravitacional. 
 
Ou as excursões insólitas dos romances de Georges Perec (W, ou a Memória da Infância; A Vida, Modo de Usar) e Harry Matthews (Conversions), em busca de objetivos ligeiramente absurdos, demandas sem  utilidade aparente, em que o explorador sente-se como que obedecendo a uma força superior.
 
É um gesto aventureiro diferente do gesto de Verne com seu Capitão Nemo:
 
Verne não procurava de modo algum distender o mundo conforme as vias românticas da evasão ou de planos místicos de infinito: procurava incessantemente retraí-lo, reduzindo-o a um espaço conhecido e fechado, que o homem poderia em seguida habitar confortavelmente. (p. 119)
 
O que torna fascinante a obra do criador de Phileas Fogg é justamente a possibilidade de ver nela este duplo impulso. 
 
Por um lado, um impulso para fora, de aventura, descoberta e conquista, característico da literatura do século 19, de um colonialismo triunfante decidido a ocupar e mapear os menores recantos do mundo. E ao mesmo tempo a recusa a uma expansão infinita; o comodismo de dizer “pronto, game over,já conquistamos o mundo, agora vamos ignorar o resto”. 
 
Culturas como a Europa e os Estados Unidos de hoje se parecem com o “Nautilus” de Nemo, um imenso repositório de riquezas culturais arrecadadas por todos os cantos do mundo e remetidas para a capital do império. Um imenso Louvre ou Museu Britânico obtido através das conquistas militares, econômicas e políticas. 
 
E ao mesmo tempo um Louvre que está sendo remetido para dentro de um Titanic, de um receptáculo que mesmo gigantesco parece destinado ao naufrágio, fadado a suicidar-se pelo seu próprio peso. 
 
O gesto profundo de Júlio Verne é portanto, incontestavelmente, o da apropriação. A viagem do barco, tão importante na mitologia de Verne, não contradiz este gesto, muito pelo contrário: o barco pode ser o símbolo da partida; mais profundamente, é o sinal da clausura. O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. 
(p. 121)