segunda-feira, 18 de junho de 2018

4358) Ariano Suassuna e os cossacos de Kuban (18.6.2018)




Ariano Suassuna era muito escrupuloso em suas declarações, por mais mirabolantes que fossem. E tinha com a mentira uma relação muito curiosa. Dizia: “É um erro muito grave mentir para prejudicar outras pessoas ou para ganhar benefícios para si mesmo. A gente só deve mentir por amor à arte”.

Ele gostava de contar uma recordação de seu tempo de menino, em Taperoá. Estava ele andando por um descampado quando ouviu um tropel de cavalos se aproximando. Quando o grupo de cavaleiros chegou, levantando poeira, e entrou na rua principal, ele não acreditou no que estava vendo.

Era um bando de cavaleiros cossacos, vestindo aquelas roupas tradicionais dos cossacos russos. Ele pensou a princípio que fossem atores fantasiados. Os cavaleiros pararam, e foram cercados pela população. Ele correu pra perto pra ver o que era.

Eram russos de verdade!  Falavam uma mistura de russo e português, e Ariano ficou sabendo que era um grupo chamado “Os Cossacos de Kúban”, ex-soldados russos fugidos da Guerra Civil que varreu o país depois da Revolução Soviética. (Não dou muito tempo para que apareça na Internet alguma versão de que Ariano dizia ter conhecido “cossacos cubanos” em Taperoá.)

Tendo fugido pela Europa e depois pelo mundo, acabaram chegando ao Brasil. Apresentavam-se fazendo aqueles números de acrobacias equestres em que os cavaleiros, em pleno galope, saltam da sela sem largar as rédeas, batem com os pés no chão, pulam de volta para a sela, depois pulam para o lado oposto e assim por diante.

Ariano lembra que o chefe do grupo chamava-se General Ormanov e mancava de uma perna, porque na Guerra Civil fora ferido numa batalha do Exército Branco (contra-revolucionário) contra o Exército Vermelho, comandado por Leon Trotsky.

Esse encontro marcou Ariano para sempre, e é um exemplo daqueles casos em que a realidade é mais estranha do que a ficção, porque a ficção tem uma certa obrigação de ser plausível, e a realidade não, a realidade apenas acontece.

Se alguém escrevesse um romance regional paraibano dizendo que encontrou na rua um grupo de cossacos russos, seria acusado de “falta de autenticidade”. Como o encontro aconteceu de fato, Ariano anos depois o usou para evocar a Estranha Cavalgada do Rapaz do Cavalo Branco, o episódio de abertura da primeira parte do Romance da Pedra do Reino.

Eu passei muitos anos tendo conhecimento dessa história, e não tenho motivos para pensar que fosse invenção dele. Recentemente, encontrei por vias indiretas uma confirmação.

O livro Em Memória de João Guimarães Rosa (Rio: José Olympio, 1968, 256 págs.) é uma publicação organizada logo após a morte do escritor mineiro. Contém seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, uma porção de depoimentos e textos em sua homenagem (Graciliano Ramos, Carlos Drummond, Gulherme de Almeida, etc.) e os discursos da “Sessão da Saudade” com que a ABL o homenageou em 23 de novembro de 1967, poucos dias após seu falecimento.



É um livro precioso, com muitas fotos, fac-símiles de textos e manuscritos, ilustrações de Poty e Aldemir Martins.  A Academia bem poderia promover uma reedição.

Nele, Renard Perez contribui com um “Perfil” do autor mineiro, reconstituindo em traços gerais sua biografia.

Em 1934, Rosa presta concurso para a Força Pública, e fica estacionado em Barbacena (MG), como oficial médico do 9º. Batalhão de Infantaria. Pratica a medicina, e lê muito. E ali se dedica a aprender idiomas estrangeiros, um dos seus estudos preferidos.

Diz Renard Perez:

E através de um russo branco que se encontrava meio perdido por aquelas bandas, como soldado da polícia militar de Minas, pôde confrontar pela primeira vez a sua pronúncia. Depois, por intermédio de cadetes e de antigos oficiais do exército czarista, aparecidos em Barbacena como componentes do Coro dos Cossacos do Juban e do Don, pôde aperfeiçoar seus estudos. (pág. 29)

Ora, em 1934 Ariano tinha 7 anos de idade, e sua família tinha se fixado em Taperoá em 1933. Foi justamente essa a época em que teria acontecido seu encontro em Taperoá com o grupo de Cossacos, que viajava pelo país como uma “trupe andarilha”.

De “Juban” para “Kuban” a diferença reside apenas num detalhe de alfabeto e pronúncia. O Coro dos Cossacos de Kuban foi criado em 1811, e sobre o povo propriamente dito (uma das etnias absorvidas pelo Império Russo e depois pela URSS) há esse descritivo verbete da Wikipedia:


E aqui uma apresentação contemporânea do Coro:


São muitos os laços pessoais e literários entre Ariano Suassuna e Guimarães Rosa, e este episódio ensolarado e cavalariano não é o menor deles.

Quando nós estivermos na guerra
voarei ao encontro das balas no meu cavalo preto;
mas aparentemente a morte não é para mim,
e de novo o meu cavalo preto me traz de volta do fogo.
(Coro dos Cossacos de Kuban)


(Os Cossacos de Kuban, em foto de 1937)