quarta-feira, 11 de março de 2009

0879) “Cinema, Aspirina e Urubus” (10.1.2006)




Este filme minimalista, áspero e terno de Marcelo Gomes me atraiu em primeiro lugar pelo título, porque gosto de títulos com uma tríade de elementos aparentemente incompatíveis (Osso, Amor e Papagaios; Malagueta, Perus e Bacanaço, etc.). Tive a experiência (cada vez mais rara, num leitor compulsivo de jornais) de ir ver um filme sem saber nada sobre ele, e recebê-lo em pleno impacto “na caixa dos peitos”: o filme visto pelo que é, sem elogios ou ressalvas prévias. (Um efeito colateral negativo da crítica cinematográfica é esse entulhamento mental que promove. Cinéfilo lê dois ou três artigos antes de decidir-se a comprar o ingresso, e já não vai ver o filme pelo filme em si, mas para compará-lo com o que leu sobre ele).

Tiro o chapéu para a coragem do diretor, dos produtores e de todos os que apostaram na realização de um filme que transcorre o tempo todo nos cafundós dos grotões dos confins de um sertão onde Judas perdeu as meias, ou seja, bem pra lá de onde perdeu as botas. E um filme que, como o palácio do Rei dos Filisteus, repousa seu peso inteiro sobre apenas duas colunas: a parelha de ótimos atores que o carrega do começo ao fim. Os atores são contidos e intensos. Dos filmes que tenho visto, é um dos que sabem usar melhor o silêncio. As longas pausas ajudam a dar peso a diálogos que em si não são excepcionais (no sentido de que não são “literários”, não são “belas frases”), mas que tornam-se densos de significado por uma mera questão de ritmo e de timing.

Quando eu era estudante de cinema, meu colega Lincoln Cunha tinha uma expressão útil para definir certos filmes: “É um filme sobre uma dupla dialética”, dizia ele, referindo-se a uma dupla de personagens que estão o tempo inteiro em situações instáveis, com potencial dramatúrgico. Os exemplos da época eram filmes como Easy Rider e Midnight Cowboy. Eu acrescentaria filmes posteriores como Com o Passar do Tempo de Wim Wenders (aquele dos caras que viajam de caminhão consertando projetores 35mm em cinemas do interior) e este filme brasileiro em que dois sujeitos aparentemente incompatíveis vão reduzindo aos poucos as barreiras culturais e de classe que os separam. É, de certa forma, um faroeste americano, se entendermos esse gênero como “filmes sobre a camaradagem rude de dois homens que se enfrentam mas que conquistam o respeito um do outro ao longo desse enfrentamento”.

Não vou resumir o argumento do filme, porque se resumir não fica nada. Vi nos letreiros finais uma informação de que o roteiro se baseia num relato de “Ranulpho Gomes”, e suspeito que seja o pai do diretor. É uma dessas histórias que o pai da gente nos conta durante a infância (“Na época da Segunda Guerra me aconteceu uma coisa interessante...”). Com a repetição, a história, agüada pela imaginação de um filho, vai sendo depurada, filtrada, concentrada. “Um dia vou filmar essa história de meu pai”. Como um licor que passou 50 anos na prateleira.

0878) “O Barco Ébrio” (8.1.2006)



Li o poema “Le Bateau Ivre” de Arthur Rimbaud aos dezenove anos, e ele continua a ser uma das experiências literárias mais intensas de que me recordo. Tive a sorte, também, de entrar neste grande poema pela mão do melhor dos guias, que visitou comigo cada estrofe, cada frase, cada deslumbrante imagem poética, apontando-a com o dedo, explicando-me seu ritmo, sua musicalidade, sua riqueza de associações visuais, sua fortuna de referências culturais no contexto da França e da Europa no século 19. Augusto Meyer é o nome do mestre, a quem tiro neste momento um chapéu metafórico, pelo muito que aprendi sobre a arte de ler a Grande Poesia ao me deparar, numa biblioteca de Belo Horizonte, com o singelo livrinho Le Bateau Ivre – Análise e Interpretação (Rio: Livraria São José, 1955). São 93 páginas onde o grande poeta traduz e disseca o grande poema: “Tema e Fontes”, “Linguagem”, “Versificação”, “Cromatismo”, “Tema e variações”, “Concordância Psicológica”.

Chamem-me antiquado, mas a minha birra com certas modas acadêmicas de que fui contemporâneo é o seu caráter extremamente redutor, sua mania de reduzir a literatura a um conjunto de cálculos, percentagens: “Este poema usa 23% mais consoantes fricativas do que o restante da obra do poeta. Portanto, bibibi, bobobó...” Excesso de análise faz perder a perspectiva, amigos. Já falei aqui: analisar literatura a este nível de detalhe é perder a literatura de vista, é querer discutir um quadro de Van Gogh a partir da composição química das tintas que ele usou. O significado de um texto não está aí: está um nível mais acima.

Não é o caso de Augusto Meyer, que analisa as sonoridades de Rimbaud, o vocabulário de Rimbaud, suas sutilezas métricas – e as ocasionais heresias que o poeta de 19 anos cometia com a cara-de-pau dos jovens de talento. Analisa a riqueza de referências culturais que Rimbaud, ainda tão jovem, conseguia extrair das fontes literárias clássicas (na adolescência foi ótimo aluno de latim e grego) e das revistas ilustradas da época, o equivalente do século 19 a revistas como a atual National Geographic, e cujas gravuras e reportagens deixaram ecos indiretos na “imageria” do poema.

“O Barco Ébrio” tem um conteúdo ominosamente profético: é a história de um barco que, largado à deriva num rio, perde-se pelos oceanos afora, passa por tempestades e visões, e no fim atraca melancolicamente, cansado, desiludido, desejando para si apenas “uma poça escura e fria, onde um menino, em tarde perfumosa, solta, agachado e triste, um batel à ventura, frágil, qual borboleta...” Rimbaud escreveu febrilmente até os 19 anos, passou por crises que quase lhe tiraram a vida e a sanidade mental; queimou seus papéis, fugiu para a África, virou traficante de armas e morreu de gangrena ainda jovem. Existem hoje dezenas de maciças biografias que contam sua vida nos menores detalhes. Nenhuma diz tanto sobre ele quanto estas vinte e cinco estrofes de quatro linhas.

0877) Democracia e relógios-cuco (7.1.2006)




(Orson Welles como Harry Lime)

É um dos diálogos mais citados da história do cinema, e aparece no filme de Carol Reed O Terceiro Homem (1949). Nele, Orson Welles faz o papel de Harry Lime, um criminoso cínico e esperto. A certa altura do filme, Lime está discutindo política com outro personagem, que faz o elogio dos regimes democráticos. Lime dá de ombros e retruca: 

-- A Itália dos Bórgias era cheia de assassinatos, terror, guerra e crime, mas produziu Michelangelo, Leonardo Da Vinci e a Renascença. A Suíça vive na democracia e no amor fraterno há 500 anos, e tudo que produz são relógios-cucos.

Harry Lime parece estar dizendo que uma sociedade extremamente dinâmica, ainda que violenta ou injusta, produz obras de arte mais excepcionais do que as de uma sociedade toda equilibradinha e bem-comportada. 

Mas Michelangelo e Da Vinci não são um sub-produto dos crimes e da corrupção dos Bórgias; são produto de uma conjugação de crescimento econômico e concentração do poder político, num contexto em que as artes (no caso arquitetura, pintura e escultura) estavam intimamente ligadas a este poder. Erigir catedrais, encomendar esculturas ou pinturas era uma forma de arrebatar os corações e mentes da população. Na Itália dos Bórgias, dominar as artes visuais era tão importante quanto, no tempo de hoje, dominar a TV.

Crimes, envenenamentos, guerras entre cidades-estado, eram também conseqüências dessa época marcada pelo excesso, pela concentração, pelo poder gravitacional do dinheiro e da vontade política de grupos totalitários mas de gostos refinados. Deflagrar uma guerra e erigir um palácio eram sintomas diferentes da mesma situação. 

Mas o palácio não existe “por causa” da guerra. Há situações históricas em que guerras, assassinatos e derrame-de-dinheiro não produziram nenhuma obra de arte memorável. Quais as grandes obras resultantes dos governos de Ferdinand Marcos nas Filipinas, de Papa Doc no Haiti, de Saddam Hussein no Iraque?

Por outro lado, não se pode dizer que a democracia na Suíça só produziu relógios-cuco – há também o chocolate e as contas numeradas... Acho meio injusto comparar Florença logo com a Suíça, esse bastião da respeitabilidade, da ordem e do bom comportamento. 

Se Harry Lime queria encontrar um regime democrático para contrapor ao regime autocrático dos Bórgias, poderia muito bem ter recorrido aos Estados Unidos. Gostemos deles ou não, os EUA são um ótimo exemplo de como a liberdade democrática, longe de gerar meros relógios cucos, pode contribuir para gerar arte de primeira. Pode-se não gostar desta ou daquela tendência ou escola, mas ninguém pode negar que a literatura, o teatro, as artes plásticas, o cinema americano produziram ao longo do século 20 uma série ininterrupta de grandes obras. 

Obras que são fruto da vitalidade econômica aliada à vitalidade social, que é o que os EUA e a Itália dos Bórgias têm em comum. A arte nasce da intensidade com que um povo vive, seja na guerra ou na paz.





0876) Traduções (6.1.2006)



Um velho provérbio italiano diz: “Traduttore, tradittore”. Tradutor, traidor. É um desses casos em que a semelhança abstrata das idéias é avalizada pela semelhança sonora das palavras. Ainda assim, a expressão italiana tem uma perfeição que nenhuma de suas possíveis traduções atinge. Em português, por exemplo, conseguimos conservar o começo e o fim, mas no meio da palavra o paralelismo se esvai, perde-se aquela seqüência implacável de consoantes. Em inglês dá-se algo parecido: “Translator, traitor”. Em francês, pior ainda: “Traducteur, traître”. Nenhuma delas tem a simetria de cadência do original. É verdade que se equivalem; mas sempre há uma perda.

Fala-se muito hoje em dia na utilidade dos softwares de tradução linguística, que às vezes quebram um galho. Se eu passar num deles um parágrafo inteiro em alemão, pelo menos fico sabendo se aquilo é uma propaganda de detergente ou um trecho da Bíblia, mas não posso considerar que tenho nas mãos uma tradução propriamente dita. Traduzir é acima de tudo entender abstratamente o contexto de origem (o que é difícil) e encontrar um contexto verbal equivalente na língua de destino (o que é mais difícil ainda).

Eu estava vendo na TV um filme legendado. Dois ladrões, à noite, estão arrombando um cofre dum escritório deserto, quando ouve-se uma sirene. Um deles resmunga, irritado: “Christ! The cops are coming!”. E o tradutor das legendas reproduziu, com fidelidade digna de um software: “Cristo! Os tiras estão vindo!”. Seria preciso traduzir, além das palavras, o tom coloquial que uma tal frase necessariamente tem, o que nos daria algo como “Meu Deus, lá vem a polícia!” Se o tradutor for desses bem realistas, e ainda por cima um leitor de Rubem Fonseca ou João Ubaldo, talvez ousasse mais: “Agora fudeu, chegaro os home!”.

Estou canso de ver as pessoas traduzirem “baby” (uma forma de tratamento multiuso em inglês) como “bebê”. Vamos devagar. O “Baby, you’re a rich man” dos Beatles quer dizer “Rapaz, você é um cara rico”. O “It ain’t me, babe” de Bob Dylan pode ser vertido como “Não sou eu, garota”. Um cara ao volante do carrão que diz “This baby cost me one hundred grand” está dizendo “Essa coisinha aqui me custou cem mil”. É um termo coloquial, íntimo, carinhoso ou desdenhoso de acordo com o contexto, e que só pode ser traduzido entendendo-se o contexto do personagem, da situação, do livro e do autor. Fazemos isso inconscientemente o tempo todo, em nossa própria língua, quando dialogamos com gente de contexto cultural diferente do nosso (um repórter entrevistando um favelado, por exemplo, ou um técnico da Embrapa trocando idéias com um lavrador).

Ferreira Gullar queixava-se uma vez de que um verso seu, algo como “Eu te vi na rua, cara”, foi traduzido em espanhol como “Te he visto en la calle, rostro de hombre”. São catástrofes a que nenhum tradutor está imune, mas é preciso evitá-las, porque toda tradução implica em perda; traduzir é reduzir.

0875) O desvio criativo (5.1.2006)




Às vezes interpretamos erradamente uma frase ou uma imagem, e essa interpretação errada gera uma idéia diversa da idéia verdadeira. 

Uma vez eu estava tentando copiar de ouvido uma letra dos Rolling Stones, e copiei o refrão assim: “What a trek in his care hall!...” Fui ao dicionário, o qual me informou que “trek” era “passeio de carro-de-bois”, “care” era “inquietação”, e “hall” era “sala”. 

O verso, portanto, dizia: “Que passeio de carro-de-bois em sua sala de inquietação!...” Eu pensei cá com meus botões: “Eita, isso só pode ser efeito da maconha no juízo desses caras!”

Quando percebemos que nossa interpretação foi errada, e percebemos o que era aquilo de verdade, ficamos com aquela idéia maluca nas mãos, sem saber direito o que fazer com ela. Talvez a melhor solução seja usá-la criativamente. 

Foi o que fez José Saramago, que um dia vinha andando pela rua, passou por uma banca de revista, e, naquela olhada de relance que a gente dá para aquela profusão de capas de revistas e manchetes de jornal, leu: “O evangelho segundo Jesus Cristo”. 

Achou estranho, voltou atrás, releu: não era nada daquilo. Ele tinha lido palavras que estavam em frases diferentes, e, sem querer, montou aquele título. Saiu dali ruminando: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo... Está aí uma idéia interessante...” E escreveu um livro inteiro tendo este título como ponto de partida.

O crítico Jonathan Rosenbaum usa um termo interessante, “creative indirection”, “desvio criativo”, para designar esse tipo de associação involuntária de idéias que acaba tendo um papel inspirador. 

Talvez o que nos fascina nessas idéias seja o fato de que, tendo sido geradas pelo Acaso, elas tenham aos nossos olhos uma cor de novidade, de originalidade. Nunca teríamos chegado a elas pelos caminhos naturais do nosso raciocínio. Quando caem do céu no nosso colo, elas nos fascinam, e parecem conter em si um significado cabalístico, misterioso. Excitam a nossa curiosidade, a qual é sempre um ótimo detonador para a criatividade. 

Artes coletivas como o cinema e o teatro também estão cheias de situações inesperadas cujo potencial criativo é percebido pela intuição de um diretor, que agradece ao Acaso e incorpora o desvio.

Grande parte da criação do Surrealismo seguiu percursos dessa natureza, produzindo choques aleatórios entre imagens ou palavras, para daí extrair uma nova sensibilidade poética. 

O movimento surrealista foi uma espécie de culto ao erro, uma embriaguez de erros voluntários que revelavam, com sua sintaxe selvagem, caminhos inesperados para a poesia. 

O Surrealismo “tout court” ficou meio isolado nas vitrines da História, mas ninguém pode negar a vantagem de sua influência libertadora em poetas como Garcia Lorca, Neruda, Jorge de Lima, etc.

Quanto ao verso dos Rolling Stones, quando vi a letra impressa constatei que era: “What a drag it is getting old!...” Que saco é ficar velho! Mas eu tinha dezoito anos, não podia mesmo ter entendido.





0874) Os últimos dias de Hitler (4.1.2006)


Foi um dos filmes mais notáveis de 2005, esta reconstituição dos dias finais do III Reich. Sobre a tão falada “humanização” de Hitler já me referi nesta coluna (“A volta de Hitler”, 27 de maio, “Hitler e o Barba Azul”, 28 de maio). Baseado nas memórias da secretária pessoal de Hitler e num livro do historiador Joachim Fest, este é um filme que estilisticamente poderia ter sido feito décadas atrás. Sem “modernismos”, sem efeitos de câmera ou picotes de edição, é um filme cuja narrativa convencional, quase anacrônica, tem o poder de nos transportar para a época narrada. Como linguagem de cinema, parece, sim, um filme feito no ano em que a ação transcorre. Isto certamente é proposital, e é uma das muitas qualidades do filme.

Seu tratamento do espaço dramático é notável, porque quase todo ele acontece no ambiente claustrofóbico do “bunker” onde Hitler, seus generais e algumas dezenas de pessoas mais próximas estão encurralados pelo avanço dos russos sobre Berlim. Ali, o máximo de espaço que se vê é de oito ou dez metros em qualquer direção, sendo que quando vemos um longo corredor temos uma sensação subconsciente de alívio. E, o tempo inteiro, as caixas de som do cinema, à nossa volta, reproduzem o soturno bombardeio que faz estremecer sem parar aquela mistura de necrotério e hospício. Há um belo plano das bombas fazendo balançar a água em um copo na mesa de cabeceira, e esse repisar contínuo da morte que se aproxima contamina personagens e platéia.

Bruno Ganz faz um Hitler notável, estranhamento parecido com o Jânio Quadros dos derradeiros anos, até a voz empostada, os cacoetes nervosos, “o olho rútilo e o lábio trêmulo”. Seus generais, desnorteados e contrafeitos, parecem recusar-se a acreditar que desta vez o seu chefe não tem uma solução milagrosa na manga. Pior do que constatar que “o Rei está nu” é constatar que o Führer estava louco, e o desespero de muitos deles mostra o quanto Hitler foi capaz de hipnotizá-los durante tantos anos, com seus monstruoso carisma. É o filme com mais suicídios que assisti em minha vida.

O elenco é ótimo, e espero que com o passar do tempo eu consiga esquecer o rosto de rapina e os olhos encatitados de Ulrich Matthes, que interpreta Goebbels (cuja família é o centro do mais arrepiante episódio do filme). Em Os Deuses Malditos, Visconti mostrou o lado decadentista do nazismo, as perversões sexuais, as drogas, a orgia do poder. Em Der Untergang, Olivier Hirschbiegel mostra a rebordosa, o momento em que passa o efeito da bebedeira e o sujeito se dá conta da enormidade da loucura que fez. “Ser nazista”, disse Jorge Luís Borges em “Outras Inquisições”, “é, no final das contas, uma impossibilidade mental e moral. O nazismo sofre de irrealidade, como os infernos de Erígena. É inabitável: os homens podem apenas morrer por ele, mentir por ele, matar e ensangüentar por ele. Ninguém, na solidão central de seu eu, pode desejar que triunfe”.