sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

1416) A dificuldade de escrever (27.9.2005)


“Quais são as principais dificuldades de ser um escritor no Brasil?” Imagino uma cena de filme em que um entrevistado ouve essa pergunta, fica em silêncio durante cinco minutos diante das câmaras, ao vivo, e depois murmura: “São muitas... são muitas... Acho melhor ir ser taxista”. Prefiro focar uma questão básica, que se coloca para muita gente que escreve: 1) Ser um escritor tempo integral, e tentar viver da literatura; 2) Ter outra fonte de renda (um emprego fixo) e escrever nas horas vagas. Cada uma tem vantagens e inconvenientes.

A segunda opção foi adotada pela grande maioria dos nossos grandes autores, que eram funcionários públicos, diplomatas, médicos, professores, jornalistas, etc., e não dependiam da vendagem dos seus livros para sobreviver. Isso dá ao autor uma certa liberdade. Ele escreve exatamente o que quer, e se o livro não vender, o prejuízo é da editora, e a pedra de tempo é do livreiro. O Escritor Nas Horas Vagas é num certo sentido um homem livre, que escreve o que lhe dá na telha; por outro lado, perde um tempo precioso de vida literária útil redigindo ofícios administrativos (como Drummond), demarcando fronteiras no meio da selva (como Guimarães Rosa) ou tratando de doentes (como Moacyr Scliar).

À primeira vista, o ideal seria o escritor viver da literatura e para ela. Já pensou, ter como único ofício o trabalho literário, 24 horas por dia, 365 dias por ano? O problema é quando a vendagem dos livros não cobre as despesas de aluguel, supermercado, contas, colégio das crianças. O escritor começa a folhear os suplementos, olhar a lista dos Mais Vendidos: “Hmmm... Parece que livros sobre os Templários estão tendo boa saída...” E aos poucos ele vai resvalando para a primeira opção de quem vive do ofício: fazer, não o que gostaria de escrever, mas o que o público está gostando de ler.

Como sempre, não é possível juntar o melhor de dois mundos. Já vi alguns autores dizerem que a melhor coisa para um escritor é exercer uma profissão que lhe exija atividade física (piloto de lancha, lenhador, etc.) e escrever nas horas vagas, porque aí a escrita vira um descanso. Para estes, passar o dia dando aulas de literatura (ou ralando numa redação de jornal) e tentar escrever à noite é suicídio.

É difícil viver de literatura no Brasil, portanto a opção de viver de outra coisa é a mais prática e a mais sensata. Para adotá-la, no entanto, é preciso ter disciplina e obrigar-se a escrever com regularidade. Escrever muito, e publicar apenas os 10% que parecerem de melhor qualidade, não importa se são vinte páginas por mês ou por ano. As principais dificuldades de ser escritor não têm nada a ver com o Brasil, ou com a China ou com o Haiti. Os problemas do escritor são parecidos no mundo inteiro e começam todos em casa, ou seja, dentro da cabeça dele. Se um escritor conseguir resolver os problemas que ele próprio se cria, já tem mais de meio caminho andado.

1415) “Elementares” (26.9.2007)


O escritor e crítico Mário Pontes acaba de lançar pela Odisséia Editorial (Rio) uma coletânea de ensaios e resenhas, Elementares – Notas sobre a História da Literatura Policial em que dá um balanço no gênero. Pontes é um dos poucos críticos literários brasileiros que se dá o trabalho de acompanhar e estudar com atenção a literatura policial. A literatura de gênero (policial, terror, ficção científica, fantasia, etc.) é vítima de um ciclo vicioso de ignorância. Gêneros literários são auto-referentes por sua própria natureza. Um gênero é uma linha temática que se prolonga no tempo através de contribuições individuais. Um dos primeiros objetivos de um desses livros é comentar, enriquecer, aprofundar, etc. textos escritos por outros autores. Já foi dito pelos especialistas que o leitor desse tipo de literatura se interessa mais pela obra do que pelo autor, e se interessa mais pelo gênero do que por cada obra individual.

Essa literatura pressupõe o conhecimento de textos anteriores. Pressupõe no leitor e no crítico um mínimo de familiaridade com certas regras básicas. Antigamente tais regras cabiam em breves “decálogos” escritos por especialistas. Hoje em dia, com a proliferação das correntes e sub-correntes, não há quem acompanhe todas. Os próprios leitores se especializam: há quem só goste de espionagem, ou de romance “noir”, ou de mistério detetivesco, ou de investigação forense. O crítico que não foi exposto a esses textos na juventude, e chegando à idade adulta foi exposto aos preconceitos que os cercam, dificilmente vai conseguir, daí em diante, absorver sem culpa a quantidade de textos necessária para poder se pronunciar sobre uma dessas obras. O que ele faz, então? Ou faz de conta que o gênero não existe, ou diz que não presta.

Não é o caso de Mário Pontes, que reúne aqui artigos saídos na imprensa em que ele avalia com conhecimento de causa desde os clássicos como Conan Doyle, Gaboriau, Raymond Chandler, Maurice Leblanc, Agatha Christie, etc. até autores mais recentes. É sempre bom ver alguém comentar com clareza e percepção autores de quem a gente nunca ouviu falar: é o caso de Didier Lamaison ou Andrea Camilieri, comentados por Pontes. Há um ótimo capítulo sobre George Simenon (um autor que li muito pouco) e seu Comissário Maigret, em que o crítico faz um paralelo entre as novelas que têm Maigret como protagonista e os outros romances de crime de Simenon.

O último capítulo, “O caso da legitimação gradual”, dá um balanço nessa eterna pedra-no-sapato dos aficionados do gênero: o preconceito com que este é visto pelo “establishment” cultural. Pontes cita alguns dos grandes admiradores do romance policial (Walter Benjamin, Ernst Mandel, Antonio Gramsci) e traça esse sofrido percurso do gênero para se impor junto às academias e universidades. Faz a gente se lembrar de séculos remotos em que os únicos escritores de verdade eram os poetas, e a prosa era uma forma bárbara praticada pela plebe.

1414) O drible da foca (25.9.2007)



O futebol, tão propenso a discussões bizantinas, tem um novo tema na berlinda. Trata-se do famoso “drible da foca” que tem sido posto em prática pelo jovem jogador Kelson, do Cruzeiro de Belo Horizonte. O drible consiste em levantar a bola e equilibrá-la na testa enquanto corre, ou então ficar fazendo embaixadinhas de cabeça, à medida que se avança na direção do gol adversário. Dias atrás Kelson fez essa gracinha num jogo contra o Atlético e o jogador adversário Coelho deu-lhe um tranco que quase o arremessa para fora do campo.

Torcida e críticos se dividiram. Para uns, Kelson é um jogador habilidoso, cheio de talento, e Coelho um brucutu que recorreu à violência quando lhe faltou técnica. Para outros, Kelson (cuja equipe estava ganhando o jogo) fez essa gracinha para tripudiar sobre o adversário em desvantagem, zombando dos companheiros de profissão, e Coelho deu-lhe um chega-pra-lá para exigir mais respeito.

O futebol anda tão pobre que um jogador que inventa uma brincadeira nova devia ser condecorado. É o caso de Kelson, e o de Alexandre Pato, que no recente Mundial Interclubes andou correndo e equilibrando a bola com toque de ombro. São jogadores jovens, hábeis, e têm todo o direito de jogar como jogam. O drible da foca incomoda os zagueiros porque é quase impossível tomar a bola do atacante. Tirar com o pé é jogo perigoso, tiro livre indireto. Tirar com a cabeça ainda dá, mas não sem projetar o corpo sobre o corpo do atacante, e aí é falta. Nas vezes em que vi Kelson executar o tal drible, ele estava sempre nas proximidades da área: levantava a bola e partia para dentro da área, para cavar um pênalte. Erro? Menosprezo? De jeito nenhum. Chama-se a isto futebol bem jogado.

Um jogador hábil com a bola nos pés enfrenta um zagueiro truculento com a destreza e a frieza com que um toureiro encara o touro. Em geral, consegue se safar por uma fração de segundo, porque sabe que o outro entra com intenções homicidas. O drible da foca, executado em cima de um time que está perdendo, não é mais ofensivo do que o famigerado “olé” que já virou uma tradição do futebol. Para quem está com placar adverso, qualquer coisa soa como desaforo: embaixadinhas, lençol, passe de calcanhar, linha de passe, goleiro recebendo a bola com o peito...

O futebol está chegando aos próprios limites. A violência de antigamente era praticada por jogadores broncos, limitados, que se apavoravam quando não conseguiam parar um adversário habilidoso. A violência de hoje é uma violência planejada na prancheta, nos vestiários, programada com o auxílio do videotape: “quando ele vier pra cá, você derruba”. Técnicos e dirigentes não querem um Kelson no time: querem um brucutu capaz de parar Kelson com um encontrão, porque sabem que talento é difícil de encontrar e difícil de manter sob controle, e os brucutus sempre se dão bem com os técnicos e com os cartolas. Por que será?

1413) A rima em ão (23.9.2007)


(Manuel Bandeira)

Escrevi dias atrás, que a rima em “ão” só deve ser utilizada em casos extremos. Um dos muitos critérios pelos quais medimos a qualidade poética de um texto é sua dificuldade de execução. Um poeta, como qualquer outro artista, é um cara que cria problemas para si próprio, e os resolve, quase que num único gesto. Pintar um quadro, tocar uma música, contar uma história, tudo isto envolve problemas de “o que fazer” e de “como fazer”. Muitos destes problemas preexistem à obra, mas alguns são criados pelo próprio autor: “Vou escrever um romance sobre jagunços em que só no final fica-se sabendo que um deles é uma mulher”.

Quando um artista escolhe invariavelmente o caminho mais fácil, menos problemático, mais comodista, sentimos um desprezozinho por ele e pela obra. Temos a sensação de que lhe faltaram ousadia, coragem, capacidade técnica; enfim, faltou-lhe talento. “Talento” pode ser descrito como uma fração ordinária onde o denominador são os problemas a resolver e o numerador as soluções que o artista encontra.

A rima em “ão” é uma das mais freqüentes e mais banais da língua portuguesa, e talvez só seja superada pelas rimas dos verbos no infinitivo (andar, beber, sorrir, compor) ou por sufixos de uso constante (-dade, -mente, etc.). Isto ocorre porque esse som, “ão”, que só existe no português, é um som no qual desagüam palavras com várias terminações diferentes. Do espanhol, por exemplo, vêm as palavras terminados em “ano” (hermano/irmão), “ón” (león/leão), “án” (alemán/alemão), etc.

O fato é que “ão” é uma peculiaridade de nossa língua, mas uma peculiaridade abundante. A rima em “ão” é vista pelos artesãos mais sutis como uma rima primitiva, banal, rima invariavelmente pobre e que denota um poeta de poucos recursos. Há um poema muito curioso de Manuel Bandeira, “Cantadores do Nordeste”, em que ele diz: “Anteontem, minha gente / fui juiz numa função / de violeiros do Nordeste / cantando em competição. / Vi cantar Dimas Batista / e Otacílio, seu irmão...” E por aí vai. São 38 linhas, e dezenove delas (as linhas pares) rimam em “ão”.

Ora, Manuel Bandeira foi talvez o poeta brasileiro mais consciente das sutilezas métricas e sonoras de nossa língua (leiam Itinerário de Pasárgada, e tirem-lhe o chapéu). Ao tentar reproduzir as cadências e sonoridades da poesia dos cantadores, ele adotou um tom artificialmente primitivo e num certo sentido preconceituoso, como se achasse que repentistas só usam rimas pobres. Posso estar sendo injusto com Manuel, que afinal estava apenas produzindo um poemazinho casual, verso de circunstância; mas a impressão que me dá seu “samba de uma rima só” é de que ele via o “ão” como um sinônimo de primitivismo.

Nos tempos da revista Garatuja, o poeta Antonio Cardoso tinha um texto onde falava de um padre estrangeiro que se encantava com o “ão” e o “inho”, sons que só existem no português. São sons raríssimos, e belos. Não devemos desvalorizá-los pelo excesso de uso.

1412) A sensação do impossível (22.9.2007)




Nunca tive experiência alguma com o sobrenatural, mas nenhum indivíduo, mesmo o mais cético, pode viver a vida inteira sem experimentar a sensação do Fantástico, do Impossível. 

No prefácio ao livro O Despertar dos Mágicos, Louis Pauwels cita um episódio narrado pelo cientista Loren Eiseley. Diz ele que certo dia de neblina muito cerrada ia andando pelo campo quando surgiu de repente à sua frente um corvo voando baixo. Ao vê-lo, o corvo soltou um grito agudo de terror, e bateu asas atabalhoadamente, afastando-se. 

Eiseley logo percebeu por quê: atrapalhado pela neblina, o corvo julgava que estava voando a dezenas de metros de altura, e o que viu de repente foi (pelo seu ponto de vista) um homem caminhando pelo espaço, numa altitude que só as aves alcançam! Aterrorizou-se, e, diz Eiseley “nunca mais será como os outros corvos”.

Eu já tive uma experiência semelhante num vôo noturno do Nordeste para o Rio. Após uma escala em Salvador, dei um rápido cochilo, e quando acordei sabia que faltava mais de uma hora para chegarmos ao Galeão. De repente, olhei pela janela, onde teoricamente devia haver apenas a escuridão, e percebi uma cidade gigantesca cujas luzes, avenidas e edifícios cobriam todo o chão, de horizonte a horizonte. 

Claro – era o Rio, e meu cochilo me fizera perder a noção do tempo. Mas o surgimento daquela cidade fantasmagórica e real me produziu um espasmo de terror que não esqueço até hoje.

Já experimentei rupturas com a realidade em escala menos inquietante. Uma vez liguei a TV para ver o videoteipe de um jogo Flamengo x América que eu sabia ter terminado 0x0. Fiquei tomando café e vendo o jogo, quando de repente, o jogador do América entra de área adentro e estufa a rede. “Impedimento”, pensei. Mas nada do juiz marcar o impedimento! Os caras se abraçaram, a bola foi levada ao centro. “O bandeirinha vai interferir,” pensei. Que nada. O bandeirinha lá, na dele, e o Flamengo deu a saída, e o jogo prosseguiu. 

Claro – quem me deu a informação sobre o placar tinha errado, o jogo foi 1x0 para o América. Mas é muito incômodo para o intelecto ver um gol num jogo no qual sabemos não ter ocorrido gol algum.

Quando fui ver o filme O Feitiço de Áquila, eu sabia apenas que era a história de um cara que se transformava em lobo. O filme era com Matthew Broderick, e fiquei o tempo todo esperando que acontecesse a transformação. Lá pelas tantas, tinha uma cena com Rutger Hauer, que faz o papel de um cavaleiro. Pois não é que de repente o cara começa a se transformar em lobo?! 

Mais uma vez, tudo se originou de um erro de informação. Como eu esperava que a transformação ocorresse no outro personagem, houve uma sensação incomodamente real e impossível em ver aquilo acontecer com o personagem que eu não esperava. 

Ainda existem possibilidades de contato com o Fantástico, mesmo num mundo cartesiano e cabralino como o de alguns sujeitos.




1411) O carro na piscina (21.9.2007)



Vi um comercial ótimo na TV. Nem me lembro qual era o produto anunciado, mas a história era mais ou menos assim. 

O pai chega para o filho e diz: “Me devolva a chave do carro. Vou sair”. O rapaz: “O carro está com problema”. O pai: “Problema? Que problema?” O filho: “Entrou água no carburador”. O pai retruca: “Tá maluco, rapaz. Água no carburador! Essa é boa. Como é que você sabe?” O filho: “Porque o carro caiu dentro da piscina”. O pai se desespera, e sai correndo para a porta da frente, e o filho completa: “Na piscina do vizinho!” 

Parece um pouco com aquela história do cara que está viajando, liga para casa para pedir notícias, pergunta como vai o jardim, aí a empregada diz: “Os bombeiros pisaram ele todo...” “Que bombeiros?” “Os que vieram apagar o incêndio.” “Que incêndio?” “O incêndio que destruiu a casa.” “E como começou?” “Quando uma das velas do caixão caiu em cima da cortina.” “Que caixão?” “O de sua mãe...” 

E por aí vai, uma catástrofe emendada na outra, e todas reveladas em doses homeopáticas. 

Uma coisa recente (o comercial) é adaptada de outra coisa mais antiga (a anedota), embora as histórias que contam sejam completamente diversas. O que é adaptado – e nisto consiste A Grande Arte – é a mecânica narrativa, a utilização de uma técnica visando um efeito. O efeito é um suspense cômico. A técnica é a revelação gradual de uma situação a partir de um detalhe, cujo esclarecimento conduz à revelação de detalhes mais comprometedores, até chegar numa situação catastrófica. (Há maneiras mais simples de dizer isto, mas estou improvisando, vai esta mesmo.) 

Esta mesma mecânica está por trás de muitas narrativas de mistério e suspense, os chamados “thrillers”. Um belo dia, um sujeito comum se vê diante de uma situação inusitada. Ao tentar lidar com ela, surge um problema. Para solucioná-lo, ele se envolve noutra situação, que o conduz a um problema ainda mais grave, e assim por diante. Ele não tem idéia do que está lhe acontecendo, mas em geral resulta que ele interferiu sem querer nas atividades de um grupo de traficantes, espiões, agentes secretos, etc. 

Muitos filmes de Hitchcock seguem essa mecânica do desvelamento gradual de uma situação complexa através da ação de um personagem que é nosso “guia” no filme: vemos tudo através dele, suas perplexidades são as nossas, e as descobertas que faz revelam também para nós a história que está acontecendo. 

Episódios de uma história são como palavras: de nada valem se não estiverem na ordem certa. Contar uma história nos obriga muitas vezes a fazer um movimento como o de uma câmara que mostra uma pintura a partir de um detalhe e daí vai se afastando, revelando uma extensão do quadro cada vez maior, e mantendo em vista o detalhe inicial. Não se deve, e na verdade nunca se pode, dizer tudo de uma vez só. Tem que dizer aos poucos, e para isto a sucessão certa de detalhes é fundamental.