domingo, 30 de janeiro de 2022

4789) "Munique - No Limite da Guerra" (30.1.2022)



O portal Netflix acaba de colocar na sua telinha o filme Munique – No Limite da Guerra (“Munich – The Edge of War”, 2021) de Christian Schwochow, uma história de espionagem e diplomacia em torno do famoso Acordo de Munique, assinado em 1938 entre os líderes da Alemanha, Inglaterra, França e Itália, pelo qual a Alemanha ganhou direito de posse sobre a região dos “Sudetos” e a II Guerra Mundial foi adiada para o ano seguinte.
 
Voltarei a falar da política mais abaixo. Por enquanto, prefiro falar de literatura, porque traduzi o livro que deu origem ao filme: Munique (Alfaguara, 2018), de Robert Harris.



Harris é um autor de thrillers muito competentes, e bom narrador. São também dele Enigma (1995), sobre a decifração dos códigos da máquina de criptografia nazista, na II Guerra (filmado por Michael Apted em 2001); Conclave (2016), sobre a polêmica eleição de um Papa no futuro próximo (que também traduzi para a Alfaguara) e vários outros.
 
A adaptação de Ben Power é muito boa; seu roteiro segue passo a passo o enredo original do livro, com a inevitável eliminação de episódios menores. Há pequenas mudanças no enredo que achei inferiores ao livro, mas que não comprometem. (Um exemplo: no livro, o diplomata britânico Hugh Legat tem uma situação conjugal muito mais tensa, e que se resolve se uma maneira mais complexa do que o típico final “welcome home, darling” apresentado no filme.)
 
Hugh Legat (George MacKay) é um diplomata jovem, próximo ao primeiro-ministro inglês, Chamberlain. Em Oxford, ele tornou-se amigo de um alemão, Paul von Hartmann (Jannis Niewohner), e da namorada dele, Lena (Liv Lisa Fries). Eles estudaram juntos na Inglaterra e de volta à Alemanha o casal toma caminhos diferentes – Paul entra para o nazismo (e rompe com Legat), Lena entra para a oposição.


 
Agora, Hitler ameaça invadir a Tchecoslováquia para anexar os Sudetos (região habitada mais por alemães do que por tchecos), e o ministro Chamberlain se desespera.
 
“Mas será possível?!”, pensa, e diz, ele. “A gente acabou de sair de uma Guerra Mundial que estraçalhou uma geração inteira de jovens britânicos, e vamos ter que entrar em outra, para defender um território que os ingleses nem sabem que existe?!”
 
Nesse instante Legat recebe por vias transversas um recado: Von Hartmann se decepcionou com o nazismo e quer passar para a Inglaterra documentos militares confidenciais, mas só o fará para alguém em quem confia. Como seu ex-amigo Hugh Legat.
 
Não é todo dia que a gente vê uma história de espionagem centrada em dois tradutores (porque é nesta função que os dois, fluentes em inglês e alemão, assessoram seus líderes).
 
O filme segue de perto a narrativa do livro, alternando episódios de Legat em Londres e Von Hartmann em Berlim, até que na altura da metade os dois convergem para Munique, onde se dará o encontro de cúpula.


Vale transcrever aqui um trecho do livro em que o Fuhrer, durante um jantar, ironiza os demais negociadores europeus, que se recusaram a jantar com ele e Mussolini, alegando cansaço:
 
Hartmann sentou do lado oposto ao de Hitler, tão longe dele quanto lhe foi possível. (...) Ainda assim, estava perto o bastante do Führer para poder vê-lo com clareza – distraidamente beliscando um bolinho e conversando muito pouco. Parecia estar meditando naquela atitude esnobe da parte dos britânicos e dos franceses. (...)
 
– Duce – disse ele, – não concorda que alguém pode observar o declínio de uma raça nos rostos dos seus líderes? (...) Os franceses estão sem dúvida decadentes: Léger é da Martinica, e claramente de ascendência negroide, mas Daladier tem uma aparência que indica caráter. É um velho soldado, como eu e você, meu caro Duce. Daladier... sim, é possível entender-se bastante bem com ele. Ele vê as coisas como elas são e tira as conclusões adequadas.
 
– Ele queria apenas tomar sua cerveja em paz e deixar que os consultores tocassem o barco – disse Mussolini.
 
Hitler pareceu não tê-lo escutado.
 
– Mas Chamberlain! – Ele pronunciou o nome com um desagrado cheio de sarcasmo, prolongando as vogais de tal maneira que o nome soava como uma obscenidade. – Esse Chamberlain arenga por causa de cada vilarejo e de cada interesse mesquinho como se fosse um barraqueiro de mercado! Os senhores sabem, cavalheiros, que ele queria garantias de que os fazendeiros tchecos expulsos dos Sudetos teriam o direito de levar consigo seus porcos e suas vacas? Podem imaginar a trivialidade burguesa de uma mente capaz de se preocupar com detalhes desse tipo? Ele queria indenizações para cada edifício público!
 
– Eu gostei do aparte de François-Poncet: “O quê?! Até dos banheiros públicos?” – interrompeu Mussolini.
 
Houve gargalhadas em volta da mesa.
 
Hitler não se deixava desviar do seu alvo:
 
– Chamberlain! Ele foi ainda pior do que teriam sido os tchecos. O que tem ele a perder na Boêmia? O que representa tudo aquilo para ele? Ele me perguntou se eu gosto de pescar nos fins de semana. Eu não tenho fins de semana. E eu odeio pesca!
 
Mais gargalhadas. Ciano disse:
 
– Sabe como ele é chamado em Paris? “J’aime Berlin”!
 
Chamberlain é interpretado pelo camaleônico Jeremy Irons, que assume a fisionomia, a postura corporal e a voz errática de um cavalheiro do século 19 perdido na Realpolitik do século 20. O Acordo de Munique não evitou a guerra, apenas a adiou; e isso acabou com ele, politicamente e fisicamente.


 

(Jeremy Irons; Neville Chamberlain)
 
No livro, há uma delegação tcheca que tenta a todo custo participar da reunião onde vai se decidir o destino do seu país, e é impedida pelos nazistas. Os tchecos, coitados, acabaram impedidos de aparecer até no filme.
 
Hitler é interpretado por um ator que parece fadado a um Karma tenebroso. Ulrich Matthes interpretou , com olhos de pesadelo, o ministro Goebbels no conhecido filme alemão A Queda (Oliver Hirschbiegel, 2004). Não se parece muito com o chanceler alemão, mas consegue encarnar o poder cego do psicopata com carisma.


Um aspecto recorrente no livro, e quase ausente no filme, é a divisão social entre os alemães. Von Hartmann representa as famílias germânicas tradicionais, aristocráticas, guerreiras, ansiosas para vingar a humilhação do Tratado de Versalhes após a I Guerra. Ele entra para a conspiração anti-Hitler pelos motivos políticos óbvios, mas também pela repulsa que lhe causam os nazistas, que ele considera uma horda de gangsters e aproveitadores, buscando vantagens pessoais no antissemitismo e na expansão militar pela Europa.
 
Havia lá dentro uma insatisfação surda contra a ascensão dos “plebeus” nacional-socialistas, e entre a oposição clandestina ao Führer havia até oficiais que sonhavam com a recondução do Kaiser ao poder.
 
Numa cena ausente do filme, Von Hartmann tenta entrar num recinto para entregar uma mensagem urgente ao Ministro do Interior, que está com Hitler. É barrado com rudeza por um oficial da SS.
 
Hartmann recorreu a sua altura e aos seus três séculos de antepassados Junker. Deu um passo à frente para ficar bem próximo do ajudante e abaixou a voz.
 
– Escute bem, porque esta é a conversa mais importante da sua vida. Minha missão é entregar uma mensagem pessoal do Primeiro Ministro britânico para o Führer. Você vai me levar imediatamente a Herr von Ribbentrop, ou então posso lhe garantir que ele vai falar com o Reichsführer-SS, e você vai passar o resto da sua vida nas cavalariças, com uma pá na mão, recolhendo merda.
 
Há tensões internas lá e cá: do lado inglês, Churchill (ausente do filme) é uma presença constante nos bastidores, insistindo na necessidade da guerra imediata – o que Chamberlain não achava possível.
 
O livro esmiuça essas questões históricas muito melhor do que o filme. Como a História acabou sendo escrita por Churchill, Chamberlain é visto hoje como um covarde, ou pelo menos um contemporizador. Harris se dispõe a vê-lo por uma luz positiva, até pela epígrafe que colocou no romance: “ ‘Devíamos ter entrado em guerra em 1938... Setembro de 1938 teria sido a data mais favorável.’  Adolf Hitler, fevereiro de 1945”.


Que os historiadores se engalfinhem, and let the games begin. O livro de Harris se estende em longos diálogos, reuniões de gabinete, cenas curtas para “dar clima”, enquanto que o filme de Schwochow precisa ter outro ritmo, omitir, condensar, simplificar muita coisa.
 
Um thriller em forma de romance pode ser saboreado ao longo de dois dias. É rápido.
 
O mesmo thriller em forma de filme tem que durar cerca de duas horas. (Munich – The Edge of War tem 131 minutos.) É mais rápido ainda.
 
Em casos assim, em que a história contada é mais importante do que o estilo literário de um e o estilo visual do outro, minha indicação é: Veja o filme primeiro e, se gostar, leia o livro.



 






quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

4788) Primeiras Estórias: "Nada e a Nossa Condição" (27.1.2022)



 
Esta é a décima-segunda estória do livro de Guimarães Rosa (Primeiras Estórias, 1962), e para mim é ao mesmo tempo uma das mais simples e uma das mais abstratas. Não é um conto com enredo movimentado, mas por outro lado o que acontece nele é descrito com muita clareza. Não aparece aqui o humor rosiano, tão presente em outros itens deste volume. A invenção verbal, aqui, é mais contida. A estória toda é contada meio que à distância.
 
E é muito simples: o tio Manuel Antonio (chamado “Tio Man’Antônio”) é um típico fazendeiro de meia-idade, sisudo, severo, casado e pai de filhas, administrador de terras, servos e gado. Pela descrição do narrador, “podia ter sido o velho rei  ou o príncipe mais moço, nas futuras histórias de fadas”.
 
O detalhe original está neste adjetivo “futuras”, implicando que mesmo neste estágio da História todas as histórias de fadas ainda não foram inventadas; e quem sabe até algumas venham a ser concebidas tendo como heróis as pessoas de hoje, os costumes de hoje. Quem pode enxergar o daqui a mil anos?



Existe algo, nesse patriarca solene, do famoso vaqueiro Manuelzão, e do Iô Liodoro protagonista da noveleta “Buriti” (em Corpo de Baile, 1956), aquele sertanejo sólido, imponente e reservado. Diz o narrador que Tio Man’Antonio “se curvava, de um jeito, para entrar, como se a elevada porta fosse acanhada”.
 
Era um contemplador silente da natureza, desde...
 
...os cimos – onde a montanha abre asas – e as infernas grotas, abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplava-as, feito se, a elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação, sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-Grotas – que de tudo há e tudo a gente encontra?”
 
A vida corre em voz baixa, e acontece uma tragédia.
 
“Sua mulher, Liduína, então morreu, quase de repente, no entrecorte de um suspiro sem ai e uma ave-maria interrupta.”
 
A morte da esposa parece quebrar um encanto na vida de Tio Man’Antonio. Abatido, ele passa a percorrer a casa, verificando cômodo por cômodo, enquanto as filhas preparam a defunta. Manda abrir todas as portas e janelas, fica contemplando a paisagem:
 
“ele pegava a paisagem pelas costas: as sombras das grotas e a montanha prodigiosa, a vanecer-se, sobre asas.”

 
Tem início um afastamento maior de tudo: “Ele, por detrás de si mesmo, pondo-se de parte, em ambíguos âmbitos e momentos, como se a vida fosse ocultável; não o conheceriam através de figuras.” É como se a partir daquele fato a vida deles tivesse dobrado uma esquina, quebrado rumo numa direção inesperada, o que faz uma das filhas perguntar:
 
– Pai, a vida é feita só de traiçoeiros altos-e-baixos? Não haverá, para a gente, algum tempo de felicidade, de verdadeira segurança?
 
E a curiosa resposta do velho lacônica, é apenas: “ – Faz de conta, minha filha... Faz de conta...”
 
Ele dá início então a um vasto projeto de “limpa” da mata que cerca a fazenda. Comendando a multidão de empregados:
 
“ele guiava-os, muito cometido, pelos sabidos melhores meios e fins, engenheiro e fazedor, varão de tantas partes, associava com ele, dava coragem”.
 
Árvores, arbustos, tudo vai caindo e sendo abatido pelas foices e machados.
 
Uma das filhas, vendo aquela devastação, pergunta-lhe se aquilo não era “pecar contra a saudade?” Mas quando a limpa se acaba, ele mostra a elas o resultado: as árvores foram todas tombadas, “mas não mais, no qual lugar, que aquelas que Tia Liduína em vida preferira amar – seus bens de alegria!”
 
É como se o viúvo quisesse manter forte a presença da falecida, poupando as árvores que ela preferia:
 
“a vistosa sapucaia formidável, a sambaíba sertaneja à borda da sorocaba, e, para fevereiro-março e junho-julho, sem folhas, sendo-se só de flores, a barriguda rósea e a paineira purpúrea-quase-rubra, magnificentes, respectivas. Outras, outras.”
 
Há uma espécie de resgate do feminino no ato de poupar essas “árvores fêmeas” mediante o trabalho insano e atiçado de muitos homens no eito.
 
Aí vem, outro golpe do acaso, porque ao ordenar esse processo Tio Man’Antonio
 
“sem querer também profetizara, nos negócios, e fora adivinho. Porque subiu, na ocasião, considerável, de repente, o preço do gado, os fazendeiros todos querendo adquirir mais bois e arrumar e aumentar seus pastos. Tio Man’Antonio, então, daquele solerte jeito, acertara tão em pleno, passando-lhes à frente e sem nenhum alarde.”
 
É o azar dos sortudos, a impossibilidade de perder que persegue os condenados à vitória. Lembra a lenda do rei Polícrates, tão rico que a certa altura começava a temer um castigo do céu e para aplacar os deuses atira ao mar seu anel de diamante mais valioso. No dia seguinte, ao sentar-se para almoçar, abre um peixe e encontra no seu ventre o anel que retorna.
 
Enriquecido, o fazendeiro propõe às filhas uma festança no dia de aniversário da finada Tia Liduína. A festa acontece, rapazes comparecem, as filhas noivam, casam, vão embora, e fica o velho viúvo a sós com sua fortuna, sua fazenda e suas lembranças. Está velho. É cheio de cacoetes; tem um gesto maquinal “que era o de como se largasse tudo de suas mãos, qualquer objeto”.
 
É um gesto simbólico ou profético, porque o que o patriarca faz daí em diante é retalhar as terras que possui e doá-las aos seus empregados, que o narrador descreve como
 
“seus muitos, descalços servos, pretos, brancos, mulatos, pardos, leguelhés prequetés, enxadeiros, vaqueiros e camaradas”.
 
O que move o velho a agir assim? A falta de sentido da vida depois de perder a esposa e de permitir que as filhas seguissem vidas próprias? 

O gesto meio brusco de dar as terras aos trabalhadores lembra a crise final do industrial do filme Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini, que após uma relação sexual com um conhecido doa sua fábrica aos operários, arranca as próprias roupas e sai gritando nu pelo deserto.



("Teorema")
 
Só que ele não está louco ou delirante, pelo contrário, conta para as filhas que vendeu as terras e manda dinheiro farto para todas elas, e ainda por cima deixa documentos justificando juridicamente tudo que fez, para que seus atos não sejam contestados:
 
“parecia adivinhar o de que seus ex-servidores e ora companheiros pudessem ver-se acusados, pelo que, mais tarde, em rubro serão, viria grandemente a suceder, que se verá.”
 
O que vem a suceder é que depois disso Tio Man’Antonio morre quietamente:
 
“Morreu, como se por um furo de agulha um fio. Morreu; fez de conta. Neste ponto, acharam-no, na rede, no quarto menor, sozinho de amigo ou amor – transitoriador – príncipe e só, criatura do mundo”.
 
O velho é vagaroso mas implacável em seu propósito, que parece ser o de despir-se das posses, despojar-se dos poderes, largar mão de tudo que fosse material e que o prendesse à vida. Não por desespero, pode-se supor: por algum tipo de convicção íntima de que a vida consiste em acumular e distribuir, em montanhas e vazios.



E assim, diz o narrador,
 
“ele fazia, alta e serena, fortemente, o não-fazer-nada, acertando-se ao vazio, à redesimportância, e pensava o que pensava.”
 
Não acho absurdo ver nisso uma trajetória meio budista, um percurso rumo ao apagamento do ego, da pessoa, da auto-imagem, um esvair-se tranquilo na ausência de si mesmo.

Ou a busca de um equilíbrio entre os extremos da vida, como há os extremos dos espaços, usando as montanhas para preencher as grutas:

"Em termos gerais, haveria uma mor justiça; mister seria. Se o paiol limpo se deve de, para as grandes colheitas: como a metade pede o todo e o vazio chama o cheio."
 
E esse processo culmina quando, na noite em que está sendo velado, “já requiescante”, na sala grande da casa, há choros, velas, toques de sino, mas à noitinha irrompe não se sabe como um incêndio feroz que rapidamente toma conta de tudo, consome a casa e o defunto dentro dela, como numa pira funerária oriental,
 
“derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e vagalhã, sobre asas, a montanha inteira ardesse”.
 
Nesse sacrifício final (o “rubro serão” anunciado), montanha e grotas recebem o fogo, e a montanha é de novo comparada a uma ave que se ergue em “asas” para o céu.
 
“Nada e a Nossa Condição” não guarda as surpresas ou as reviravoltas fantásticas de outros contos da coletânea. É como uma parábola de homem rico que dá tudo aos pobres, um tema tão frequente na literatura popular. E ao mesmo tempo é, bem tipicamente de Rosa, uma narrativa de fatos diáfanos, luminosos, nitidamente compreensíveis – mas que guarda no seu centro um mistério, o mistério de motivação íntima daquele personagem.
 
Ele perde tudo, ele se livra de tudo, ele distribui tudo, e no fim ele destrói tudo, e nunca sabermos o que sentiu nem o que pensou.










segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

4787) "Drive My Car" (24.1.2022)

 
Nunca li nenhum livro da obra de Haruki Murakami, que é bastante grande, e vez por outra roça na ficção científica e no fantástico. Estou me devendo. 

Roça vez por outra também na obra dos Beatles (somos da mesma geração). Ele tem um livro chamado “Norwegian Wood” (título de uma canção de Lennon no LP Rubber Soul, 1965), e tem contos intitulados “Honey Pie”, “Yesterday”, “Drive My Car”.
 
Este último resultou num filme (Drive My Car, 2021, Ryusuke Hamaguchi) que está sendo exibido no Brasil, em salas e via streaming.
 
É um filme longo, com quase três horas de duração, embora eu devesse dizer: “É um filme de duração mediana, no cinema atual.” Os filmes tendem a ficar cada vez mais longos, e quanto começo a ver um deles é como se apertasse o cinto para uma viagem de avião.
 
Drive My Car, apesar de ser um filme introspectivo, com muitos silêncios, e sem muita ação física, não é um filme arrastado, e acaba parecendo mais curto do que é. O diretor alterna cenas com vários personagens cortadas de forma não totalmente consecutiva, produzindo com certa frequência pequenas necessidades de ajuste de interpretação, que não deixam o espectador pegar no sono. E tem planos longos, principalmente em trajetos de automóvel (um elemento essencial ao filme), que nos dão a noção do peso desse “tempo morto”.
 
É a história de um ator e diretor teatral contratado para dirigir, com dois meses de ensaio, uma adaptação do Tio Vânia de Tchecov, para um festival. O elenco tem várias origens: alguns falam japonês, outros mandarim, outros coreano, e há uma atriz que fala linguagem de sinais. Todos esses diálogos serão traduzidos para o japonês, quando for o caso, num telão à vista do público.
 
A proposta, claramente, é de reforçar a idéia do teatro como uma linguagem das emoções, comum a todos, até por se tratar de um texto originalmente em russo.



Kafuku, o diretor da peça, vem de uma tragédia familiar recente, e recebe esse convite como uma chance de ocupar a cabeça com outras questões, mas não é fácil. Pode-se dizer que o filme é a história do lento “descongelamento” desse personagem, que aparenta ser íntegro, ético, compreensivo, mas fechado em si e capaz de uma certa rispidez no trato com outras pessoas.



O filme transcorre na cidade de Hiroshima, uma Hiroshima que só reconhecemos pelo nome, porque no mais é uma cidade moderna como tantas, com belas paisagens litorâneas, viadutos, túneis, enormes arranha-céus, hotéis 5 estrelas. Mas é uma cidade que também vem de uma tragédia, uma tragédia que sempre fará parte dela.
 
Não há como não lembrar de Hiroshima Meu Amor (1959) de Alain Resnais, também a história do encontro entre duas pessoas com tragédias no passado. Ao contar sua história uma para a outra, descongelam-se, humanizam-se, aceitam o sofrimento para poder aceitar a afeição mútua.


A parte mais substancial da história decorre durante os ensaios da peça Tio Vânia e as dificuldades de relacionamento entre o diretor e o elenco. Dado o jeitão lacônico e contido dos japoneses, a gente sente no ar o tempo inteiro uma tensão não expressa, o retesar de uma situação que provavelmente, num grupo brasileiro, desencadearia um tipo diferente de reações. 

O fato do diretor usar os longos trajetos de automóvel para ouvir as fitas com o diálogo produz o inevitável (e proposital) contraponto entre os fatos e sentimentos de sua própria vida e as falas da peça, que ele ouve recursivamente no som do carro. A peça comenta a vida, e a vida comenta a peça.
 
O automóvel, o uso do automóvel, o modo de dirigir, é um elemento importante no filme. O cigarro também. Nos filmes, as pessoas acendem cigarros para terem algo que fazer com as mãos; por sua vez, os diretores e os cinegrafistas gostam do modo como as baforadas de fumaça produzem um efeito visual infinitamente renovado.
 
No filme de Hamaguchi, não se explora aquele plano aproximado em que alguém acende o cigarro de alguém, que fecha os olhos enquanto aspira a fumaça e solta uma baforada prazerosa. O equivalente na literatura é sempre algo como :”Fulana acendeu o cigarro e aspirou profundamente o aroma agradável do fumo, que lhe encheu os pulmões...”
 
Esse estilo meio porn de descrever está geralmente ausente em Drive My Car. As pessoas pedem para ir fumar lá fora. Vemos à distância como acendem o cigarro, fumam sem dar atenção. Mas depois, já na reta final do final, o ritual de fumar e mesmo de segurar o cigarro aceso ganha um contexto ao mesmo tempo corriqueiro e simbólico.


Hamaguchi gosta (e explora bem) cenas longas em que os atores contam narrativas pouco a pouco, fala por fala, tijolo por tijolo. A cena inicial, do casal na cama, lembra uma cena famosa do Week End (1967) de Jean-Luc Godard, com Mireille Darc contando uma pequena aventura sexual, numa sala à meia luz, enquanto a câmara avança milímetro por milímetro em sua direção.
 
Cena que Godard afirmou depois ter pegado de Bergman, em Persona, dizendo: “O primeiro plano de [Week End] nasceu de uma revisão de Persona. Pensei: é preciso que haja um plano fixo de pessoas falando de seu sexo. (...)”. Hamaguchi alterna seus planos, mas o efeito cumulativo é o mesmo nas duas cenas de cama em que ele mostra a personagem criando em voz alta os argumentos de suas histórias, durante o ato sexual.
 
Drive My Car é um filme observador, sem pressa, construindo aos pouquinhos a trama que aperta os personagens uns na direção dos outros. É uma reflexão sobre o ato da criação teatral. Temos a roteirista que imagina histórias trepando. E temos a mulher que, depois de castigar a filha, assume, de modo meio esquizofrênico, uma segunda personalidade, uma menina, que passa a brincar com a filha ressentida.
 
Não é bem um filme sobre o teatro, é um filme sobre o modo como os fios do teatro e os fios da vida se entrelaçam, porque no fim das contas são uma coisa só. E evita o melodrama com uma simplicidade bem oriental, em sua última cena, uma cena totalmente banal e totalmente carregada de significado.
 
 
 





sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

4786) Elza Soares, 1930-2022 (21.1.2022)

 

Quando eu tinha por volta de 10 ou 11 anos passava boa parte do meu dia ouvindo a Rádio Borborema, que na época era a rádio mais importante de Campina Grande, e onde meu pai tinha trabalhado por uns tempos como redator. 

Os programas geralmente tinham uma hora de duração, e durante aquela hora o locutor/disc-jockey (eu ainda não conhecia este termo) escolhia as músicas, tocava, às vezes fazia comentários.
 
Havia um programa chamado “Ele, Ela e a Canção”. Era um cantor e uma cantora cujas faixas se sucediam alternadamente. Num dia eram Cauby Peixoto e Leny Eversong... no outro eram Ataulfo Alves e Nora Ney... E por aí, ia. E eu me lembro que um dia eu falei para minha mãe: “Se alguém me mandasse fazer esse programa por um dia, eu fazia com Nelson Gonçalves e Elza Soares”.
 
Conto esse episódio bobo porque é a recordação mais antiga que tenho de Elza, e por ela deduzo que eu já era fã, e era mesmo, porque fiquei comportadamente sentado ao pé do rádio quando ela veio a Campina Grande e fez um programa inteiro cantando no auditório da mesma Radio Borborema, com transmissão ao vivo.
 
“Beija-me”:
https://www.youtube.com/watch?v=k4deIBUviT8
 
Lembro que nesse tempo já ouvia falar nela como a maior sambista brasileira, não como um “novo talento que desponta”. E os improvisos em voz rouca, estrídula, suingada, chamavam a atenção. Era coisa para a gente parar o que estava fazendo e ficar à escuta. Era diferente.
 
“Se acaso você chegasse”:
https://www.youtube.com/watch?v=xp72C7IIuLA&list=OLAK5uy_kuEV1LHg15pJgSQKg9_O0_Ak8thZ4RoJs
 
A rasgada rouca da voz de Elza era algo que ia além da música, era como se fosse uma ilustração na página impressa de um livro, algo que ia além do texto, trazia uma dimensão a mais, algo completamente diferente mas que fazia parte.
 
Na época eu percebia esses “efeitos especiais” aqui e acolá em diferentes artistas. Via algo parecido nos “cans-ganscans-gansculans” dos Demônios da Garoa, cujas canções não eram apenas ilustradas por efeitos vocais desse tipo, mas mostravam, apitos de trem ou de guarda, vozerio de botequim, e em canções como “Cidade do Barulho” tinha todo tipo de efeito sonoro. Tinha também Moreira da Silva, onde “O Último dos Moicanos” mostrava não apenas disparos de revólver *”Cuidado Moreira!...”), como galinhas cacarejando, índios ululando e tudo o mais.
 
Elza era também perita nos duetos de estúdio com outros artistas, e para mim suas gravações com Miltinho, um dos maiores sambistas de todos os tempos, são um documento da liberdade e da alegria de cantar, de dividir, de atrasar, de correr pra pegar lá na frente, de cair na nota certa e ainda dar um floreado a mais.

Elza e Miltinho:
https://www.youtube.com/watch?v=9bTk4OsU_r4
 
É o que chamamos de suingue, de jogo de cintura, de flexibilidade, de domínio total de uma forma, de uma segurança estabelecida a tal ponto que permite o luxo de se divertir de graça.
 
Os obituários que rolam desde ontem falam inevitavelmente na relação de Elza com Garrincha, e na época, para um garoto adolescente que era doido por futebol, nada parecia mais correto, porque Elza era o Garrincha da música e Garrincha era a Elza do gramado. Era o encontro de duas almas autênticas, como diria o poeta.

O mundo gira, a Lusitana roda, o tempo vai passando e Elza desaparece do mapa, não por defeito dela, mas porque os anos 1970 foram (pelo menos na minha percepção) uma explosão da música brasileira em todos os gêneros, em todos os estilos. Mas foi, por essa mesma explosão, um período difícil para quem conheceu o sucesso na década anterior; basta lembrar os casos, tão próximos de nós, de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro.
 
“Língua”:
https://www.youtube.com/watch?v=fsqoCBfucYo
 
E de repente apareceu Caetano Veloso em 1984 com um dos primeiros raps brasileiros, “Língua” (em Velô), uma espécie de manifesto em defesa dos nossos jeitos brasileiros de falar, e a certa altura ele gritava: “Fala Mangueira!...”, e surgia aquela voz:
 
Flor do Lácio, sambódromo,
lusamérica, latim em pó...
O que quer, o que pode essa língua?
 
Era a voz rascante de Elza Soares, e mais uma vez eu parei o que estava fazendo, para prestar atenção. Os tropicalistas, que cronologicamente estão um degrau mais alto do que eu (estão se aproximando todos da reta dos 80) mais uma vez traziam do fundo do baú os meus cantores de infância, como Gil e Caetano já haviam trazido Luiz Gonzaga (“17 Légua e Meia”, “Asa Branca”) e Gal trouxera Jackson (“Sebastiana”). Agora era Elza.
 
E me parece que desde então ela voltou a gravar e a fazer shows “com força”, ou quem sabe ela nunca parou; eu é que estava distraído escutando Rita Lee. Não importa: Elza voltou a estar por toda parte, num pique assombroso, gravando discos onde não tinha mais a potência original da voz cheia, de notas longas e flexíveis, mas aperfeiçoou a habilidade na divisão, e principalmente passou a cantar um repertório cujas letras iam muito além das letras alegres e juvenis falando de amor e sensualidade.
 
A Elza do século 21 foi uma cantora que largou a pele antiga e se exibiu nova e reluzente, igual e diferente, e abriu um aposento novo na obra que já era imensa.
 
“Mulher do Fim do Mundo”:
https://www.youtube.com/watch?v=6SWIwW9mg8s&list=OLAK5uy_ljuTdv2L0hDvvE28v5LPbwI80H9LlbiH0&index=2
 
A esta altura, todo profissional da música tem uma história com Elza, não é mesmo? Eu também tenho a minha. 

Por volta de 2002, Ivaldo Bertazzo me chamou para escrever o texto de um espetáculo de dança, Folias Guanabaras, a ser encenado pelo Corpo de Dança da Maré (66 garotos e garotas que dançam pra caramba), com DJ Dolores na trilha sonora, e no elenco Rosi Campos, Seu Jorge e a própria Elza. E eu dei um jeito para que a narrativa incluísse uma das minhas músicas preferidas de quando eu tinha 11 anos, “Eu e o Rio”, composição de Luís Antonio que ela tinha gravado naquele tempo.
 
“Eu e o Rio”:
https://www.youtube.com/watch?v=AG7NishmSxw

Elza é Spartacus. Uma prova disso é o musical Elza de Duda Maia, com texto de Vinicius Calderoni, direção musical de Pedro Luís, produzido pela “Sarau” de Andrea Alves, onde Elza era interpretada por Verônica Bonfim, Khrystal, Julia Tizumba, Larissa Luz, Janamô, Késia Estácio e Laís Lacorte.









terça-feira, 18 de janeiro de 2022

4785) A síndrome do impostor (18.1.2022)

 

(Jack Nicholson em O Iluminado)
 
Dizem que todo escritor de verdade sofre em algum momento dessa Síndrome. Ela se tornou “sinônima” da profissão literária, e um escritor que nunca tenha sofrido dela provavelmente é, ele sim, um impostor autêntico.
 
É aquela sensação agoniante, desesperada, de: “Eu não sou esse escritor talentoso e inteligente que todo mundo vê em mim!... Eu sou uma fraude, uma mentira! Sou um idiota e eles não percebem, estou aqui mentindo e não sei por que razão ganho prêmios e faturo milhões de dólares!...”.
 
Nada mais natural, não é mesmo? E aqui pra nós, nem precisa ser premiado e milionário. Qualquer poeta de 20+ anos lança seu primeiro livro de 40 páginas, dá autógrafos para uma fila composta por primos, ex-namoradas e colegas de faculdade, comemora no bar mais próximo, mas quando apaga a luz e bota a cabeça no travesseiro os calafrios o acometem. “Por que eles acreditam que eu sou poeta? Não sou poeta coisa nenhuma! Sou um fingidor!”.
 
Todo poeta é um fingidor, e o mais sincero deles deve ter sido Raul Seixas quando dizia: “Eu não sou cantor coisa nenhuma! Sou o maior ator brasileiro, porque finjo que sou cantor e todo mundo acredita!”.
 
Quem nunca fingiu que era cantor e fez alguém acreditar, que atire a primeira pedra rolante.


(Bob Dylan e Mick Jagger)
 
 
A Síndrome do Impostor é uma versão especializada de um problema mais amplo: a má-fé existencialista. A consciência pesada do sujeito que sabe estar fazendo uma coisa falsa, mas faz assim mesmo. Num caso extremo, o indivíduo finge que é ele mesmo. Finge que é o Doutor Bouville, formado em Ciências Jurídicas, pai de família, cidadão respeitável... Ele é isso tudo, mas ele principalmente representa esse papel; ele representa, teatralmente, o personagem que um dia será homenageado com estátua em praça pública.
 
É como aqueles bonecos gigantes do carnaval de Olinda. Cada escritor vai pela vida afora carregando um boneco-gigante de si mesmo.



(foto: Ivanildo Machado) 


No caso de Jean-Paul Sartre, ser escritor era uma culpa menor do que a de ser homem, de ser humano. O impostor não é quem escreve, é quem meramente existe. E ele dava o pulo-do-gato de usar os livros como desculpa, como justificativa. Comparava o ser humano no planeta Terra a um sujeito que está viajando num trem sem ter comprado passagem. Ele sabe que está fazendo algo errado, algo desonesto. De repente, aparece o condutor do trem e lhe pede o bilhete. Diz Sartre: “Eu lhe mostraria os meus livros, e diria: Sou escritor, estou na Terra com esta função.”
 
Talvez a angústia impostorial venha do fato de que todo escritor, quando jovem, descobriu a própria vocação, ou julgou descobri-la, quando estava lendo os primeiros autores que o impressionaram profundamente. Grande parte do impulso de escrever vem do desejo de produzir em outras pessoas o efeito que nos produziram as primeiras surpresas de Agatha Christie, as primeiras iluminações de Rimbaud, os primeiros vislumbres cósmicos de Augusto dos Anjos, os primeiros furacões épicos de Victor Hugo...
 
Foi deles que captamos a fagulha criadora, e é a eles que tentamos emular quando escrevemos. A sensação de impostor nos vem justamente naquele numerosos instantes em que percebemos que não somos nem de longe tão bons quanto eles. A fagulha nos veio intacta mas, quando a passamos adiante, ela é como um pisca-pisca de laser, que brilha mas não incendeia. Somos um fracasso. Somos uma impostura.
 
Essa situação comporta dois lados. Em certa medida, todo mundo tem consciência de que projeta imagens quebradas, incompletas, inexatas de si mesmo. Ninguém conhece ninguém. Sendo assim, ninguém sabe como nós somos de verdade. Quando alguém nos insulta, nos chama de canalha, otário, fracassado, sacana, tudo-que-não-presta, sempre nos resta o consolo de dizer: “Eu não sou isso aí!”, e sabemos que não somos.
 
O lado B dessa moeda é que quando nos chamam de gênio, talentoso, íntegro, charmoso, etc., a vozinha surge do mesmo jeito, lá no sótão do nosso juízo. “Eu não sou isso aí!”  E sabemos que não somos. A voz é a mesma, e a verdade é uma só.


(Fernando Pessoa) 

Para mim, uma das grandes descobertas literárias do século 20 foi a de Fernando Pessoa ao criar seus “heterônimos” e teorizá-los extensamente, brilhantemente. Produzindo o que ele em alguma parte chama de poesia dramática, ou dramatúrgica: uma poesia onde o poeta, em vez de glosar seus próprios sentimentos, imagina um segundo poeta, imagina os sentimentos desse segundo poeta, e escreve versos em nome dele – e quando mais diferentes dos SEUS próprios poemas, melhor.
 
Fernando Pessoa, ao invés de ficar nervoso com a impostura, assumiu-a e chamou-a de criação. Modesto, ele nem se arvorou originalidade alguma, pois lembra que todos os grandes ficcionistas e dramaturgos nunca fizeram outra coisa senão isto. Flaubert dizia: “Madame Bovary sou eu”, e Shakespeare poderia dizer o mesmo de Lady Macbeth.
 
Sempre – sempre – haverá um vácuo enorme entre a imagem positiva que os outros têm de nós e a pobreza existencial do que efetivamente somos e sabemos. Todo sucesso é um mal-entendido.  Todo fracasso também; mas o mal-entendido do sucesso é mais doloroso, porque quando eu o compreendo, me desvalorizo.



 
 
 
 




sábado, 15 de janeiro de 2022

4784) Minhas Canções: "O Dia Em Que Faremos Contato" (15.1.2022)



 
Publiquei certa vez um artigo sobre “A ficção científica na música popular brasileira”, na saudosa revista Isaac Asimov Magazine (Ed. Record), onde fazia um balanço das temáticas da FC (alienígenas, viagens espaciais, computadores, astronautas, etc.) nas letras de nossa música. Lembro que Gilberto Gil era o compositor com mais exemplos.
 
Era uma questão que já nessa época eu conversava muito com Lenine, também fã de FC, e tínhamos a toda hora uma idéia de como usar a FC numa letra de canção.
 
Pelo que me lembro, estávamos falando alguma vez sobre os morros cariocas, o fato do samba vir do morro e não “do asfalto”, a alegria espontânea de quem tem uma vida difícil... Pensando nisso, agora, me vem à mente um trecho de Avram Davidson, num dos seus contos de folk-FC:
 
Raramente vi uma mulher das classes altas, ou classes médias altas, que não trouxesse linhas de desagrado em volta da boca, e raramente vi uma mulher das classes trabalhadoras que não parecesse estar feliz e sorrindo e dando gargalhadas.
(“El Vilvoy de Las Islas”, Isaac Asimov SF Magazine, agosto 1988, trad. BT)
 
Uma simplificação, certamente, mas corresponde a tipos que facilmente encontramos em nossa própria experiência. O que faz essas pessoas de vida tão sacrificada terem uma tamanha alegria de viver? Me veio à mente o verso famoso de Herivelto Martins em “Ave Maria do Morro”, gravada indelevelmente por Dalva de Oliveira:
 
https://www.youtube.com/watch?v=NS8Yl8HMStA&list=PLA4VX07pqX-a5wJ1HwpA1lHjJzQnhTTPv&index=9


(Dalva de Oliveira)
 
Barracão de zinco, sem telhado, sem pintura...
Lá no morro, barracão é bangalô.
Lá não existe felicidade de arranha-céu;
pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu...
 
Daí foi um passo para a faísca inicial da canção:
 
Pois quem mora lá no morro
já vive perto do espaço sideral.
 
E a idéia foi imaginar alienígenas que, ao descerem na Terra, desciam no morro – e se deixavam contagiar por essa alegria que nós mesmos, aqui da Terra, achávamos fascinante e não sabíamos direito como explicar.
 
Isto vinha também ao encontro de muitas antigas mangações nossas (e não só nossas) sobre os filmes norte-americanos que fazem as naves alienígenas desceram sempre nos EUA, e mais do que isto, em Washington, e mais do que isto, em frente à Casa Branca.


("A Invasão dos Discos Voadores", 1956)


("O Dia em que a Terra Parou", 1951) 
 
De acordo com a nossa premissa, então, os alienígenas não desembarcariam em São Paulo (sede do poder econômico), em Brasília (sede do poder político) ou em Natal (referência à Barreira do Inferno). Desceriam nos morros do Rio de Janeiro, porque é lá que estaria o que eles vêm buscar.
 
E aí encaramos outro clichê da ficção científica de língua inglesa: a Terra como um planeta militarizado, belicoso. Não são poucas as histórias da pulp fiction norte-americana em que o Primeiro Contato com outras civilizações nos revela que somos uma espécie de párias do universo, por causa da guerra, da bomba atômica, etc., e que por isso a Terra está excluída das “federações galácticas”, ou coisa parecida.
 
É a má fé, a consciência pesada dos EUA, não é mesmo? O maior orçamento militar do mundo sabe o quando deve a Deus e ao mundo.
 
Nossa premissa foi o inverso disto: a galáxia inteira estaria em guerra, as diferentes raças não saberiam mais o que fazer para interromper esse ciclo de destruição... E de repente encontram um planeta onde há guerra, sim, como em todo lugar – mas existe paz, existe festa, existe alegria, existe carnaval...


("Ziriguidum 2001")
 
 
Não deve ter passado despercebida a muita gente a nossa citação do “Ziriguidum 2001”. Foi este o enredo criado pelo carnavalesco Fernando Pinto (com quem eu havia trabalhado em shows de Elba Ramalho, no Canecão), e que deu à Mocidade Independente de Padre Miguel o troféu do carnaval de 1985.



(Fernando Pinto)
 
Fernando era um leitor de FC; talvez não fosse um fã-colecionador como eu ou Lenine, mas era antenado com a época, e depois da vitória na Sapucaí publicou na revista Veja um artigo justificando brilhantemente seu enredo, com as baianas vestidas de extraterrestre.
 
“O Dia Em Que Faremos Contato” tem outra curiosidade, que é uma capa pescada por Lenine num volume da antiga Coleção Futurâmica, das Edições de Ouro. É do livro O Homem Eterno (“Bang!”), de F. Richard-Bessière, uma das divertidas aventuras transtemporais do repórter Sidney Gordon. É uma capa rara (eu tenho o livro, mas com a capa mais comum). Ao que parece, veio da versão original francesa, da Éditions Fleuve Noir.



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O Dia em Que Faremos Contato
(Lenine & BT)
 
A nave quando desceu, desceu no morro.
Ficou da meia-noite ao meio-dia.
Saiu deixou uma gente tão igual e diferente:
falava e todo mundo entendia.
 
Os homens se perguntaram:
por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou em Natal?
Vieram pedir socorro, pois quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
 
Pois em toda a Via Látea não existe um só planeta
Igual a esse daqui...
A galáxia tá em guerra; paz só existe na Terra,
a paz começou aqui...
 
Sete artes e dez mandamentos – só tem aqui...
Cinco sentidos, terra, mar, firmamento – só tem aqui...
Essa coisa de riso e de festa – só tem aqui...
Baticum, ziriguidum 2001... – só tem aqui...
A nave estremeceu, subiu de novo
Deixou um rastro de luz no meio dia
Entrou de volta nas trevas, foi buscar futuras levas
pra conhecer o amor e a alegria.
 
A nave quando desceu, desceu no morro
cheia de ET vestido de orixá...
Vieram pedir socorro, e se derem vez ao morro
todo o universo vai sambar.
 
Quando derem vez ao morro
todo o universo vai sambar...