terça-feira, 22 de setembro de 2015

3926) Machado e a ciência (23.9.2015)





(Selton Mello, no filme A Erva do Rato, baseado em "A Causa Secreta")) 


O Alienista (1882) é uma sátira de Machado de Assis à ciência. O dr. Simão Bacamarte decide trancafiar no seu manicômio, a Casa Verde, qualquer indivíduo que exiba comportamento insano de qualquer natureza. Ele constata então que ninguém é normal, e que pelo andar da carruagem a população inteira de Itaguaí terá que ser internada, e poucos são os verdadeiramente sãos encarregados de cuidar do mundo exterior.

De certa forma é uma sátira patafísica avant la lettre, porque naquele momento o futuro inventor da Ciência das Exceções tinha apenas nove anos. Alfred Jarry é o famoso criador do vilão da vanguarda O Rei Ubu, de peças memoráveis. O Colégio de Patafísica, a que ele deu origem, é um divertido grupo de franceses que tem pontos em comum com a OuLiPo, a oficina de literatura potencial, e com o teatro do absurdo, um movimento cosmopolita com peso em Paris. A Patafísica é a ciência que, em vez das regras, cuida das exceções.

Com a amargura compassiva e o veneno bem-humorado do autor, a loucura de Simão Bacamarte é até lírica, comparada a cientistas machadianos como Stroibus e Pítias, os dois filósofos-picarescos do seu “Conto Alexandrino” (1884). Stroibus disseca animais vivos para provar que seu sangue transmite essências: “Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia”. Passam a frio, na lâmina, centenas de ratos, e estabelecem por acúmulo de evidências a cor exata que tinham os olhos dos animais ao morrer.

Bebem o sangue do rato, os dois, num experimento pouco controlado, o que revela seu lado de trapaceiros trapalhões meio marktwainianos. O sangue do rato faz efeito, e danam-se os dois a furtar a torto e a direito, para no fim acabarem eles próprios na mesa de vivissecção. É a mesma impiedade do Fortunato de “A causa secreta” (1885), o homem que pendurava ratos em cima de uma chama e usava uma tesoura neles. Os cientistas alexandrinos são um meio termo entre o cientista maluco dr. Bacamarte, que é até meio julioverniano, e o cruel Fortunato. A ciência acolhe o tresvario conceitual e acolhe também o sadismo. O alienista é o menos ameaçador dos seus filósofos.

O cientista, temia Machado, era o indivíduo que tinha “a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo.” Na verdade nem é bem do cientista em si que Machado fala: esta é a descrição que faz de Fortunato, o cara que queimava o rato vivo. Fiquemos com o doutor Bacamarte, melhor ser palhaço pra rir do que herói pra sofrer.