quinta-feira, 21 de julho de 2011

2614) Penelopismo (21.7.2011)



(Penélope desfazendo sua Tapeçaria, por Leandro da Ponte Bassano)

Penélope, esposa de Ulisses na Odisséia. Rodeada de pretendentes. Marido demora anos para voltar da guerra. Viúva bonita e rica. Verdadeiro “chama” para gregos desocupados. Palácio de Ítaca cheio de candidatos ao golpe do baú. Ela insiste: marido vivo, vai voltar cedo ou tarde. Bola uma desculpa: não pode casar porque está bordando tapeçaria. Quando acabar o trabalho, casa. Passa a tecer de dia, destecer de noite.

Tapeçaria de Penélope é todo trabalho que demora a ser concluído, levando a supor que alguém o está desmanchando na calada da noite para evitar que ele um dia chegue ao fim. Virou um clichê da imprensa. O Chinese Democracy do Guns’n’Roses, que as revistas chamavam de “o disco mais caro da história do rock”, passou anos dando despesas (de 1994 a 2007). Lançado em 2008, não sei se compensou a espera, porque ignoro solenemente o Guns’n’Roses. Outro exemplo é a antologia de FC The Last Dangerous Visions, que o organizador Harlan Ellison prometeu para 1973. Reuniu uma porção de contos de autores diversos e até hoje não a publicou. Isto já gerou brigas, processos judiciais e até um livro-libelo do autor Christopher Priest (The Book on the Edge of Forever), descascando Ellison.

O penelopismo pode ter as origens mais variadas. O filme Chatô de Guilherme Fontes nunca ficou pronto (dizem os jornais) por descontrole orçamentário. O “livro novo” de Ariano Suassuna (continuação do Romance da Pedra do Reino) nunca fica pronto porque todo dia Ariano tem uma idéia, faz correções à mão e depois tem que redatilografar as mil páginas do texto (que outro motivo pode haver?). Caso clássico de romance que ficou incompleto e mesmo assim foi publicado é O Processo. Kafka escreveu o começo e o fim, e ficou um tempão trabalhando no meio do livro, sem nunca concluí-lo. Jorge Luís Borges (o primeiro tradutor argentino de Kafka, em 1938) observou, com a perspicácia habitual, que é da própria natureza de um livro labiríntico como O Processo que o autor jamais conclua a sua redação: “A crítica lamenta que nos três romances de Kafka faltem muitos capítulos intermediários, porém reconhece que esses capítulos não são imprescindíveis. Eu tenho para mim que essa queixa indica um desconhecimento essencial da arte de Kafka. O ‘pathos’ desses romances inconclusos nasce precisamente do número infinito de obstáculos que detêm e voltam a deter seus heróis idênticos. Franz Kafka nunca os terminou, porque o primordial era que fossem intermináveis”.

Alguns desses penelopismos são involuntários, ou seja, o autor tem a intenção sincera de finalizar aquele troço algum dia, simplesmente não está conseguindo. Devem ser raros os casos de penelopismo verdadeiro, de alguém que não quer terminar aquilo de jeito nenhum. Por insegurança quanto à recepção dos leitores? Por excesso de perfeccionismo? Porque o prazer de estar fazendo é mais importante do que o alívio por ter feito?