O filme Tár, de
Todd Field, conta a história da maestrina (ou maestra, já nem sei mais) Lydia
Tár, interpretada por Cate Blanchett. À frente da Filarmônica de Berlim, ela se
prepara para uma histórica gravação ao vivo de uma sinfonia de Mahler.
É uma excelente ilustração de um tema que as pessoas se
matam de discutir: Como é possível que um(a) grande artista seja ao mesmo tempo
uma pessoa de mau caráter, uma pessoa com deformações de personalidade, uma
pessoa com graves defeitos éticos que parecem um desmentido vivo daquilo que
ela produz com sua arte?
Lydia vive entre Nova York e Berlim, pertence a essa
estirpe de cidadãos transnacionais produzidos nos circuitos da arte de elite.
Na primeira sequência do filme, ela é entrevistada,
diante de um teatro à cunha, por um jornalista que faz seu próprio papel (Adam
Gopnik, da revista The New Yorker). Precedida
pela leitura de um currículo impressionante, Lydia fala longamente sobre sua
carreira e sua visão da música. Cate Blanchett deita e rola nessa abertura,
numa mistura de charme e de autoridade intelectual que chega a lembrar figuras
como Denise Stockler e Marília Gabriela, mulheres totalmente à vontade diante
de platéias exigentes.
Toda a entrevista é uma calma demonstração de força,
exibindo uma pessoa capaz de destemor sem destempero, uma artista ambiciosa mas
que parece estar mantendo bem apertados todos os parafusos de sua ambição; sua
máquina não sacoleja.
Na segunda sequência, logo após, ela tem um almoço com
seu amigo e investidor Eliot Kaplan. Na confortável intimidade de quem trabalha
junto há muito tempo, ela lhe comunica algumas medidas que está se preparando
para tomar na orquestra. É o jogo da política de bastidores, o xadrez das
posições e dos cargos em que um maestro precisa também ser craque, pois envolve
projetos de vida, vaidades, sensibilidades, ambições.
Na terceira sequência, Lydia dá uma aula prática a alunos
na Escola Juilliard, famosa escola de música de Nova York. E entra em choque
com um aluno negro e LGBT para quem J. S. Bach não passa de um compositor
branco, careta, conservador, etc. Lydia
trata o rapaz com certo sarcasmo provocativo. Ele abandona a sala em protesto.
De volta a Berlim, ela fica sabendo de sua esposa Sharon
(violinista da Filarmônica) que a filha adotiva está tendo problemas na escola.
Pergunta à garota quem a está incomodando. Deixa a filha na escola, localiza a
garota incômoda, chama-a para uma conversa em voz baixa e diz algo como “Se
você chatear minha filha, eu venho aqui e acabo com você. Entendeu?” A garota entende.
Lydia Tár é assim, uma mulher capaz de floreios
diplomáticos e de defenestrações sumárias, uma artista de enorme sensibilidade
para com as camadas harmônicas de uma sinfonia e capaz de pisar sem pena no pé
que alguém coloque à sua frente. Um
tanque de guerra coberto de graffitti art-nouveau.
Aos poucos vamos percebendo que ela é uma sedutora, uma conquistadora
inveterada, que troca de amores como quem troca de orquestra, e que é do tipo
que numa batalha não volta atrás para recolher feridos. É cruel? Talvez, mas
capaz também de grandes momentos de ternura e de cumplicidade afetiva. Como
todo mundo, aliás.
“Quer saber quem é uma pessoa?”, pergunta a sabedoria
popular.“Dê-lhe poder.” Dizem que o
Poder corrompe, mas dizem também que o Poder apenas revela. Homens ou mulheres
que chegam a uma posição de destaque como a de Lydia Tár aprendem durante a
subida que às vezes basta-lhes apontar um dedo e pronunciar uma frase para que
seus desejos se cumpram. A lâmpada de Aladim, que não existe, empalidece diante
deste poder, que nos rodeia em todos os lugares. Quem não já sofreu na unha de
um gerente sádico, de uma chefe invejosa?
O filme de Todd Field começa com Lydia Tár no ápice de
sua fama e de seu poder, mas daí em diante as coisas começam a degringolar, as
rédeas a fugir-lhe das mãos, como numa orquestra que a cada apresentação
tivesse que incluir mais e mais instrumentos. Chega um instante em que não dá
para manter tudo sob controle.
O filme começa a introduzir esse ominoso tema secundário
de forma discreta mas crescente. A vida caseira de Lydia não é tão harmoniosa
como deve ter sido algum tempo atrás. Ela acorda de noite. Que barulho é
aquele? Sua alucinação é auditiva, um
som incessante e longínquo que crava nela a agulha da insônia e a deixa
remexendo-se na cama. Ela levanta, olha por toda parte. E nós, aqui fora,
julgamos ouvir o que ela julga que ouve, como um diapasão desafinado soando
dentro de um buraco negro. Ou um metrônomo tentando pedir socorro.
Uma nova paixão aparece, uma cellista russa que parece
mais interessada na vaga da orquestra do que em Lydia, que mesmo assim a cerca
com o semi-sorriso de quem dá a coisa como favas contadas. E vem outro episódio
insólito, quando ela tenta seguir a moça no interior de um prédio velho,
aparentemente abandonado, e se vê à mercê de algo que parece um cão de
pesadelo.
Decisões irrefletidas vão comprometendo sua posição, e
tudo explode com o suicídio de uma ex-discípula e ex-namorada, que a joga na
berlinda, e fornece uma excelente chance para seus desafetos botarem as unhas
de fora. Tár não é um filme sobre
música, é um filme sobre política musical, o jogo de poder que envolve a
criação musical (maestros, artistas, produtores, gravadoras, imprensa,
patrocinadores, público, etc.).
Uma coisa é a literatura, e outra é a política literária
– tem gente que é excelente numa e péssima na outra, ou vice-versa. A política teatral, dos grupos, diretores,
estrelas, novatos com metas a bater, veteranos tentando manter-se à tona. A
política cinematográfica, a política jornalística, a política das artes
plásticas, a política da Cantoria de Viola...
Onde há poder, há política. E se numa guerra a
primeira vítima é a Verdade, numa carreira artística em ascensão uma das
primeiras vítimas é a Palavra Dada, é a lealdade aos companheiros de ontem
diante das oportunidades de hoje, a fidelidade a afetos que infelizmente ressecaram,
a paciência dos velozes quando há lerdos atrapalhando um avanço.
É essa política que parte a coluna vertebral
aparentemente tão sólida da carreira de Lydia Tár, porque em questão de minutos
(dentro do filme) ela começa a ver que todo mundo que estava tão de-bem com ela
afinal não estava tão de-bem assim, todo mundo tem uma conta para lhe cobrar, e
vêm todas ao mesmo tempo.
O diretor Todd Field criou neste filme uma estrutura
dramática curiosa (e que, pelo que vi, não funcionou com muitos espectadores) em
que os acontecimentos finais se precipitam de maneira desconjuntada, elíptica.
Se a maior parte do filme tem uma narrativa rigorosamente medida e pesada, os
15 ou 20 minutos finais mostram fragmentos, saltos bruscos, non-sequiturs, cenas que dão a impressão
de que vão marchar para um clímax dramatúrgico qualquer mas são cortadas ao
meio e na imagem seguinte já estamos dias depois, mergulhando em outra
situação.
A sabedoria popular costuma dizer também que “a subida é
vagarosa mas a queda é num instante”. É mais ou menos o que acontece com Lydia
Tár nesse trecho final – cada nova cena bate mais um prego no caixão, e isso
nos entristeceria se não soubéssemos que foi ela mesma quem
forneceu prego e martelo aos seus coveiros.
Espero não ter dado muitos spoilers, até porque as
propagandas do filme falam sempre coisas como “a ascensão e a queda de uma
grande regente de orquestra”. E na verdade o filme não guarda muitas surpresas
– é como uma peça musical que se inicia com um tema dominante, digamos que seja
O Sucesso, e ele desde logo vai se misturando a um sub-tema, O Fracasso, que
acaba por predominar, triunfal.
O diretor Todd Field é mais conhecido do grande público
como ator. Em Eyes Wide Shut (1999) de
Stanley Kubrick ele faz o papel de Nick Nightingale, o pianista amigo de Tom
Cruise que acaba induzindo este a entrar “de penetra” naquela orgia gregoriana
numa mansão. Como diretor, a narrativa segura e a direção de atores em Tár não me surpreendeu: Field dirigiu o
excelente In the Bedroom (2001), uma tensa narrativa de crime e
justiçamento, com Tom Wilkinson e Sissy Spacek.