quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

3988) Os Depravados e os Puritanos (4.12.2015)




(ilustração: flickrhivemind.net)


Um Depravado é um cara para quem a humanidade se divide em dois grupos: os normais (como ele) e os puritanos.  Um Puritano é um cara que acha que ela se divide em normais (como ele) e depravados. 

Esta fórmula serve para a maioria das oposições desse tipo, desde que os indivíduos em questão sejam do tipo que consideram a si próprios o zero-cartesiano do mundo. É um pessoal numeroso, infelizmente. Tudo que pensam está contaminado por essa força muda que os encarcera em uma única dimensão mental.  Dentro do escaninho estreito dessa idéia fundadora devem caber todas as suas idéias, seus raciocínios, suas justificações, suas concepções abstratas sobre o bom e o ruim, o certo e o errado, o permissível e o intolerável, o que deve ser proibido e o que deve ser obrigatório.

Não me refiro aos sujeitos que pensam e agem de má fé, aos crápulas, aos espertalhões. Estes, geralmente, sabem que estão errados, mas como o erro ético lhes traz benefícios materiais a curto prazo, então o mundo que se dane.  As pessoas a que me refiro são, muitas vezes, gente bem intencionada, mas que desde cedo foi condicionada a ver as coisas apenas de um ponto-de-vista. E não admite a possibilidade de que haja pontos-de-vista diferentes do seu.

São pessoas sofridas; sua vida é uma sucessão de erros, de fracassos, de catástrofes que não podem ser explicadas senão pela existência de uma maneira de ver as coisas diferente da deles. E isto eles não admitem. O que existe (dizem) é uma maneira certa de fazer as coisas, e alguns desses detalhes não estão sendo cumpridos direito. Quando isso acontecer, tudo se encaixa. São aquelas pessoas capazes de passar duzentos anos batendo com a cabeça numa parede de mármore, acreditando que com isso acabarão por abrir uma passagem no meio dela.

Um rótulo é como um crachá. Desde que nos dê acesso, pouco importa a função que está anunciada nele. Compromisso zero. Problema é que acabamos sendo fotografados com um deles (“Apologista da Cultura Popular”) e termos que explicar o por quê disso tudo. Os armoriais e os tropicalistas têm sem dúvida numerosas e importantes diferenças entre si, mas para um admirador distante, um islandês, digamos, os dois talvez não passem de fases ou faces diferentes de um mesmo movimento. Talvez fossem os dois um só movimento do comportamento e das idéias de seu tempo.

Para o Puritano, quem não concorda com seu modo de ser é depravado, reacionário, e é por isso que o chamam de puritano, logo ele, um sujeito absolutamente normal. E assim por diante. Existe algo de errado com uma pessoa que pensa: “O mundo seria um lugar perfeito se todo mundo pensasse igual a mim”.




3987) A civilização do olho (3.12.2015)




Num artigo de 1931 sobre fotografia, Walter Benjamin dizia: 

“Sob o efeito dos deslocamentos de poder, como os que hoje estão iminentes, aperfeiçoar e tornar mais exato o processo de captar traços fisionômicos pode converter-se numa necessidade vital. Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. Por outro lado, temos também que olhar os outros”. 

É de certa forma a extrapolação sensata dos esboços de “Big Brother” que já surgiam na época do texto. 

É a época da foto, do documento, do passaporte, do salvo-conduto, do nada consta. E a das impressões digitais, e depois a do chip biométrico, do exame de fundo de retina, do DNA.

Isto é surpreendente? Não para quem se torna capaz de extrapolar situações sociais futuras com alguma verossimilhança, como alguns escritores conseguem. A Benjamin basta observar meia dúzia de elos de uma corrente para intuir até onde essa corrente pode se estender no futuro. 

Com a fotografia, não só a arte avançava, mas também a ciência. No mesmo espírito estava o físico Arago, citado pelo próprio Benjamin, que discursava assim em 1839: 

“Quando os inventores de um novo instrumento o aplicam à observação da natureza, o que eles esperavam da descoberta é sempre uma pequena fração das descobertas sucessivas, em cuja origem está o instrumento.”

A frase de Benjamin sobre ser visto e olhar os outros lembra esses quarteirões residenciais onde praticamente toda a calçada e todo o asfalto estão na área de cobertura de alguma câmara em algum ponto dali. 

Não sei se é ballardiano demais imaginar um condomínio onde qualquer morador, da TV de sua sala, pudesse sintonizar o que estava sendo transmitido por todas as câmeras de segurança do seu prédio, ou da vizinhança (com autorização). 

Daria um bom gancho para um romance policial, se todos os suspeitos dispusessem desse acesso; para checar álibis, etc.

Uma reação “romântica” a essa vigilância dos flashes é o filme “noir”, onde os rostos estão sempre semiocultos e os ambientes sempre na penumbra ou então são uma treva cortada por uma lâmina de luz. Ninguém vê nada com clareza. 

Falei no cinema mas o romance policial equivalente também tem esse clima meio expressionista, de coisas vistas apenas pela metade, ou pela sombra, ou pelo reflexo. Cornell Woolrich tem uma série de romances com as palavras “Black” ou “Dark”. Um levantamento das descrições dos personagens dos romances “noir” talvez revelasse a incidência reiterada de expressões como “com o rosto oculto pela sombra”, etc. 

Um mundo de incerteza e de matéria escura, o contrário do mundo de hoje, berrante, narcísico, escrachado, e onde todos querem ser reconhecidos.