(Henry James)
Quando inventaram essa história de “clones” eu já sabia do conceito, que a ficção científica cultiva há muitos anos. Um sósia produzido em laboratório! Um irmão gêmeo artificial! E alguns amigos meus desenvolveram uma teoria. Pra que serve um clone? Diziam eles: “Pra ir ao trabalho, às reuniões, ao batente... enquanto eu fico em casa, dormindo até meio dia.”
Pode parecer uma fantasia de preguiçosos, e é, mas há um
lado que não devemos subestimar: o fato de que muitos de nós desenvolvem um
“clone psicológico” em si mesmos. São indivíduos tímidos, introvertidos, meio
angustiados no que diz respeito à vida social, às interações. O que fazem?
Criam um clone.
Infelizmente, como não se trata de ficção científica, o
clone tem que habitar o mesmo corpo, de modo que o sujeito precisa, sim,
levantar às 7:00, tomar banho sim, tomar café sim, pegar o metrô sim, estar na
reunião de trabalho às 8:30, com a obrigação de ser simpático com todos e de
ter idéias inteligentes.
Pense num suplício.
Não sou só eu. Vejam o caso de Wyslawa Zsymborska, uma
das maiores poetas do século, em cuja cabeça caiu uma bigorna de ouro chamada
Prêmio Nobel de Literatura.
Numa matéria publicada na revista Piauí, ela afirma:
“Estou apavorada, por não saber se vou conseguir enfrentar a cerimônia;
toda a minha disposição é diferente, contrária a esse tipo de contatos, e é
claro que nem sempre poderei recusar. Queria ter uma sósia. A sósia seria uns
vinte anos mais nova do que eu, iria posar para as fotos e teria uma aparência
melhor do que a minha. A sósia viajaria, a sósia daria entrevistas, e eu
ficaria escrevendo.”
É pedir demais? Não creio. Em ocasiões assim, algumas
pessoas estariam felizes como pinto-no-lixo se fossem obrigadas a essa gincana
de coluna social. Conheço uma dúzia de poetas que dariam o braço esquerdo e a
perna direita pela chance de ganhar o prêmio, fazer o discurso, sentar no
banquete, tirar a foto, rabiscar os autógrafos, estender-se nas entrevistas.
Nem todos, contudo.
O tema do “duplo”, do “Doppelgänger” é um dos mais
antigos da literatura fantástica.
Henry James tem um conto fantástico, “The Private Life”
(1892), em que ele contribui com sua variante para este tema antigo e
necessário. Ele fala de um grupo de pessoas ricas que estão a passeio num hotel
chique, nos Alpes. O Narrador explica que eles têm ali a chance rara de
conviver alguns dias com duas personalidades extraordinárias: o dramaturgo
Clare Vawdrey e o aristocrata Lord Millifont. Dois indivíduos fascinantes, adorados
em todos os ambientes sociais londrinos, etc. e tal.
Aconselho a leitura do conto, que é brilhante e cheio de
sutilezas, falando sobre alta sociedade, teatro, a profissão de escritor, o
amor distante de um solteirão por uma mulher casada. O Narrador (cujo nome não
é revelado, e em cuja pessoa é impossível não ver uma projeção de James – inteligente,
travado, punctilioso, gentil) comenta que o dramaturgo Vawdrey é uma das
pessoas mais brilhantes que ele conhece, um conversador notável, inteligente,
encantador. Suas peças teatrais encantam a todos, principalmente uma atriz que
está no grupo, Mrs. Adney, que vive a lhe pedir “um papel”.
O Narrador e a sra. Adney comentam também a personalidade
de Lord Millifont, um desses senhores graves, considerados um pilar da
sociedade: na sua presença, todos se comportam e se distribuem de acordo com a
direção do seu olhar, sua autoridade franca e serena, seu carisma.
História vai, história vem, o Narrador e a sra. Adney
fazem uma descoberta espantosa. O dramaturgo Vawdrey tem duas personalidades, duas projeções físicas. Enquanto um está no
terraço conversando com o grupo e encantando a todos, outro (um “clone”
idêntico) está no quarto do hotel, escrevendo.
Logo em seguida, fazem uma descoberta similar. Lord
Millifont, aquele poço de autoridade e de carisma, simplesmente desaparece quando ninguém está olhando
para ele. Ele é deixado a sós num local e minutos depois uma pessoa, chegando
ali, não o vê em lugar algum, e o chama em voz alta; num segundo o Lord se
materializa a metros de distância, paradão, distraído. Estava ali. Mas se
ninguém o vê... ele some.
O tema de Henry James não é muito distante do conto
clássico de Machado de Assis, “O Espelho” (1882). Henry James é uma espécie de
Machado angloparlante: a literatura dos dois é muito parecida, em vários
aspectos. “O Espelho” conta a história do alferes Jacobina, elogiado por toda a
família, e cujo status depende dessa
patente militar. Ele vem a descobrir que, sozinho na casa, não consegue se ver
no espelho – a não ser que vista a farda. Nesse instante, deixa de ser
invisível.
("O espelho", adaptação para quadrinhos)
Henry James faz essa equação mordaz entre personalidade
interna e persona externa; a pessoa que somos, e a pessoa que aparentamos ser,
quando “em sociedade”. Ele próprio afirma, num prefácio a uma de suas
coletâneas, que a idéia lhe surgiu ao contemplar um indivíduo famoso em seu meio
social mas que, por mais brilhante que fosse, não aparentava ser capaz de
escrever as coisas que escrevia. Diz ele:
Isto explicava, para a minha imaginação, todo o mistério: nossa
celebridade inconcebivelmente agradável era um ser duplo, formado de
dois compartimentos distintos e estanques
– um era representado pelo cavalheiro que sentava-se a sós a uma mesa,
silencioso, longe das vistas de todos, e ali escrevia coisas profundas, intrincadas,
corajosas; enquanto seu complemento era o cavalheiro que regularmente vinha
sentar-se a uma mesa de natureza bem diversa, onde ceava de forma substancial,
promíscua, multitudinária. (trad. BT)
Eu tenho pra mim que este inspirador misterioso era o
próprio James, a quem não era estranho o dilema de escrever coisas geniais em
seu gabinete e de, quando em público, ter que aparentar inteligência, bons
modos, bom humor e paciência para com a parvoíce alheia. Para mim é fora de
dúvida que, quando necessário, também Henry James sabia mandar o clone.