sexta-feira, 20 de março de 2020

4561) Vou mandar o clone (20.3.2020)



(Henry James)

Quando inventaram essa história de “clones” eu já sabia do conceito, que a ficção científica cultiva há muitos anos. Um sósia produzido em laboratório! Um irmão gêmeo artificial! E alguns amigos meus desenvolveram uma teoria. Pra que serve um clone? Diziam eles: “Pra ir ao trabalho, às reuniões, ao batente... enquanto eu fico em casa, dormindo até meio dia.”

Pode parecer uma fantasia de preguiçosos, e é, mas há um lado que não devemos subestimar: o fato de que muitos de nós desenvolvem um “clone psicológico” em si mesmos. São indivíduos tímidos, introvertidos, meio angustiados no que diz respeito à vida social, às interações. O que fazem? Criam um clone.

Infelizmente, como não se trata de ficção científica, o clone tem que habitar o mesmo corpo, de modo que o sujeito precisa, sim, levantar às 7:00, tomar banho sim, tomar café sim, pegar o metrô sim, estar na reunião de trabalho às 8:30, com a obrigação de ser simpático com todos e de ter idéias inteligentes.

Pense num suplício.


(Wyslawa Zsymborska)

Não sou só eu. Vejam o caso de Wyslawa Zsymborska, uma das maiores poetas do século, em cuja cabeça caiu uma bigorna de ouro chamada Prêmio Nobel de Literatura.

Numa matéria publicada na revista Piauí, ela afirma:


“Estou apavorada, por não saber se vou conseguir enfrentar a cerimônia; toda a minha disposição é diferente, contrária a esse tipo de contatos, e é claro que nem sempre poderei recusar. Queria ter uma sósia. A sósia seria uns vinte anos mais nova do que eu, iria posar para as fotos e teria uma aparência melhor do que a minha. A sósia viajaria, a sósia daria entrevistas, e eu ficaria escrevendo.”

É pedir demais? Não creio. Em ocasiões assim, algumas pessoas estariam felizes como pinto-no-lixo se fossem obrigadas a essa gincana de coluna social. Conheço uma dúzia de poetas que dariam o braço esquerdo e a perna direita pela chance de ganhar o prêmio, fazer o discurso, sentar no banquete, tirar a foto, rabiscar os autógrafos, estender-se nas entrevistas.

Nem todos, contudo.

O tema do “duplo”, do “Doppelgänger” é um dos mais antigos da literatura fantástica.



Henry James tem um conto fantástico, “The Private Life” (1892), em que ele contribui com sua variante para este tema antigo e necessário. Ele fala de um grupo de pessoas ricas que estão a passeio num hotel chique, nos Alpes. O Narrador explica que eles têm ali a chance rara de conviver alguns dias com duas personalidades extraordinárias: o dramaturgo Clare Vawdrey e o aristocrata Lord Millifont. Dois indivíduos fascinantes, adorados em todos os ambientes sociais londrinos, etc. e tal.

Aconselho a leitura do conto, que é brilhante e cheio de sutilezas, falando sobre alta sociedade, teatro, a profissão de escritor, o amor distante de um solteirão por uma mulher casada. O Narrador (cujo nome não é revelado, e em cuja pessoa é impossível não ver uma projeção de James – inteligente, travado, punctilioso, gentil) comenta que o dramaturgo Vawdrey é uma das pessoas mais brilhantes que ele conhece, um conversador notável, inteligente, encantador. Suas peças teatrais encantam a todos, principalmente uma atriz que está no grupo, Mrs. Adney, que vive a lhe pedir “um papel”.

O Narrador e a sra. Adney comentam também a personalidade de Lord Millifont, um desses senhores graves, considerados um pilar da sociedade: na sua presença, todos se comportam e se distribuem de acordo com a direção do seu olhar, sua autoridade franca e serena, seu carisma.

História vai, história vem, o Narrador e a sra. Adney fazem uma descoberta espantosa. O dramaturgo Vawdrey tem duas personalidades, duas projeções físicas. Enquanto um está no terraço conversando com o grupo e encantando a todos, outro (um “clone” idêntico) está no quarto do hotel, escrevendo.

Logo em seguida, fazem uma descoberta similar. Lord Millifont, aquele poço de autoridade e de carisma, simplesmente desaparece quando ninguém está olhando para ele. Ele é deixado a sós num local e minutos depois uma pessoa, chegando ali, não o vê em lugar algum, e o chama em voz alta; num segundo o Lord se materializa a metros de distância, paradão, distraído. Estava ali. Mas se ninguém o vê... ele some.

O tema de Henry James não é muito distante do conto clássico de Machado de Assis, “O Espelho” (1882). Henry James é uma espécie de Machado angloparlante: a literatura dos dois é muito parecida, em vários aspectos. “O Espelho” conta a história do alferes Jacobina, elogiado por toda a família, e cujo status depende dessa patente militar. Ele vem a descobrir que, sozinho na casa, não consegue se ver no espelho – a não ser que vista a farda. Nesse instante, deixa de ser invisível.


("O espelho", adaptação para quadrinhos)

Henry James faz essa equação mordaz entre personalidade interna e persona externa; a pessoa que somos, e a pessoa que aparentamos ser, quando “em sociedade”. Ele próprio afirma, num prefácio a uma de suas coletâneas, que a idéia lhe surgiu ao contemplar um indivíduo famoso em seu meio social mas que, por mais brilhante que fosse, não aparentava ser capaz de escrever as coisas que escrevia. Diz ele:

Isto explicava, para a minha imaginação, todo o mistério: nossa celebridade inconcebivelmente agradável era um ser duplo, formado de dois compartimentos distintos e estanques  – um era representado pelo cavalheiro que sentava-se a sós a uma mesa, silencioso, longe das vistas de todos, e ali escrevia coisas profundas, intrincadas, corajosas; enquanto seu complemento era o cavalheiro que regularmente vinha sentar-se a uma mesa de natureza bem diversa, onde ceava de forma substancial, promíscua, multitudinária. (trad. BT)

Eu tenho pra mim que este inspirador misterioso era o próprio James, a quem não era estranho o dilema de escrever coisas geniais em seu gabinete e de, quando em público, ter que aparentar inteligência, bons modos, bom humor e paciência para com a parvoíce alheia. Para mim é fora de dúvida que, quando necessário, também Henry James sabia mandar o clone.