(Sinedei Moura)
Tenho postado comentários sobre minhas canções gravadas, mais ou menos por ordem cronológica. Ocorre aqui um fato curioso: uma das minhas primeiras canções em parceria foi feita em 1978, foi cantada milhares de vezes em palcos e em mesas de bar, mas só foi gravada mais de vinte anos depois, quando o meu parceiro, Sinédei Moura (que não é cantor profissional, é professor universitário), gravou seu primeiro CD, Cena de Perigo (2002).
Eu e Sinédei (o nome dele não tem acento, mas a gente usa, para
marcar a pronúncia, que muita gente confunde) passamos em 1973 no
vestibular da FACE (Faculdade de Ciências Econômicas) da Universidade Federal
da Paraíba, Campus II, em Campina Grande. Ele entrou para Economia e eu para
Ciências Sociais, com meu plano meio utópico de estudar Antropologia Urbana (o
que venho fazendo por conta própria desde então).
Ele vinha de Fortaleza, e logo passou a fazer parte da
turma que se reunia na “casa de Son”, dos irmãos Jakson e Marcos Agra. Com Son,
que era um letrista transbordante, compôs dezenas de canções; quando me mudei
para a Bahia, mandei-lhe uma letra, a de “Sendo amor”, que acabou se tornando a
minha primeira música feita propriamente em parceria.
Eu tenho facilidade, talvez excessiva, para escrever
letras com estrofes fechadas e rimadas, no estilo de Bob Dylan ou dos
cantadores de viola. Algumas letras minhas que as pessoas acham quilométricas,
e pensam que exigiram semanas de trabalho, foram rabiscadas ao longo de uma única
tarde. Mas para fazer letras mais elaboradas (e num tom mais sentimental, mais
introspectivo) eu nunca tive facilidade.
Esta canção surgiu numa época em que a gente escutava
“até furar o disco” o álbum Minas, que
Milton Nascimento tinha lançado poucos anos antes, e eu botei no juízo que iria
escrever uma letra de amor tão séria (longe do tom satírico, que me sai tão
natural quanto a respiração) quanto a de “Beijo Partido” de Toninho Horta, uma
música que me fascinava pela tortuosidade da melodia e pelo peso misterioso de
versos como “hoje não passa de um vaso quebrado no peito” ou “onde estará a
rainha que a lucidez escondeu?”.
É sempre interessante a gente reavaliar uma canção, anos
depois, tentando localizar de onde veio o primeiro impulso de fazê-la. Para mim,
pelo menos, nasce muitas vezes disso: de ouvir uma canção impactante feita por
alguém e pensar, “preciso fazer uma coisa assim”, ou seja, uma coisa que
produza um impacto parecido. Seja na levada, no ritmo, no estado de espírito,
na textura poética.
Geralmente, o resultado final fica a anos-luz de
distância, como se pode ver aqui. Minha letra (pra variar) não tem nada a ver
com a canção de Toninho Horta: é uma letra parnasiana, simétrica, toda
medidinha. E meio de paletó-e-gravata pro meu gosto; mas é valorizada pela
melodia de Sinédei, e foi a primeira vez na vida em que eu tive essa revelação estranha
de ver alguém extrair, de uma penca de versos escritos “em branco”, uma melodia
que, em retrospecto, já parecia estar contida neles.
Eu e Sinédei fizemos outras canções depois, mas esta
ficou como um marco. É uma música que cantei pouco em meus shows, porque minha
“persona” no palco sempre foi meio galhofeira, uma mistura de Raul Seixas e
Jorge Mautner, ou seja, de um cara que não está nem um pouco preocupado em “cantar
bem”, mas em dar uma sacudida no juízo de quem escuta.
Sinédei também não é um grande cantor – seria, se a Universidade não tivesse atrapalhado. Mas é um músico aplicado e cheio de sutilezas. Aqui no YouTube tem
uma gravação com banda desta nossa primeira música, e que foi a primeira minha
em mais de um critério. E é a cara de um tempo.
Sendo Amor
(BT / Sinédei Moura)
Seja o que for, que
seja tudo
e seja até o fim;
e sendo amor, saiba
que eu não me iludo
e não se iluda
quanto a mim.
Que novamente
dancem
nas velhas cordas
fatigadas
as canções
desenterradas
de dentro de mim;
que novamente
cansem
os corpos
extraviados
nos seus trajetos
cruzados
que fogem do fim.
Até que se faça o
silêncio de aço
que sempre coloca
de novo seu braço em meus ombros,
e depois, sem que
eu nem sequer acredite,
outro olhar
desgarrado apareça e habite
meus escombros.