segunda-feira, 12 de julho de 2010

2260) O alvorecer do condenado (5.6.2010)





Durante a Guerra do Paraguai, um batalhão brasileiro tomou, depois de combates encarniçados, a vila de San Isidoro de León, não sem muitas perdas, porque era um casario erguido numa colina de difícil acesso. 

No dia seguinte à invasão, o comandante brasileiro, o Cel. Catanduva, mandou trazer a sua presença o único dos oficiais paraguaios que sobrevivera à batalha. Era um capitão, um homem de barbas brancas, rosto crestado pelo sol, e chamava-se Yacanto. Morava ali nas redondezas, e ele sozinho abatera mais de vinte soldados brasileiros. 

O Coronel leu as acusações feitas contra o prisioneiro (que era um conhecido estrategista de emboscadas), e pronunciou sua sentença: fuzilamento sumário às seis da manhã em ponto. Yacanto foi conduzido a sua cela, um quarto fortemente barricado nos fundos do quartel crivado de balas onde os invasores tinham se instalado. 

Era a tarde de um sábado. Algumas horas depois, chegou ao Cel. Catanduva um chamado do prisioneiro. O Capitão Yacanto pediu-lhe uma mercê. Pediu o direito de passar a sua última noite ao lado da esposa, que morava numa fazenda a quilômetros dali, e que não via há um ano. 

“O sr. conhece a tradição, Coronel”, disse ele. “É a última vontade de um condenado. Se ele pedir uma última noite de liberdade, deve deixar um refém substituindo-o, para ser executado em seu lugar, caso ele não retorne”. 

Catanduva perguntou quem seria esse refém, e Yacanto ofereceu seu filho de dez anos, que estava na vila. 

O acordo foi selado. Às seis daquela tarde, acompanhado por dois praças, Yacanto rumou para a fazenda. No catre da sua cela ficou sentado um garoto pálido, franzino, cujos olhos não tinham medo. Se o Capitão não voltasse até as 6 da manhã, o filho morreria pelo pai. 

Catanduva acordou antes das quatro horas, e começou a inquietar-se. Temeu uma emboscada; temeu a morte, à traição, de seus dois soldados; temeu ainda ter que tomar a decisão de fuzilar um inocente, baseado numa tradição tão literária quanto tola. 

Sua angústia durou até os quinze minutos antes das seis quando o dia já clareava. No pátio do quartel, entrou, sozinho, um homem coberto de lodo e sangue; mal reconheceram o Capitão Yacanto. Ele murmurou algo sobre a queda de uma ponte e estendeu as mãos para serem algemadas. Beijou a cabeça do filho, postou-se ante o pelotão e recebeu com bravura as doze descargas. 

O Coronel Catanduva mandou que lhe dessem sepultura cristã, e foi ele mesmo para a estrada, à frente de um destacamento, para saber o que tinha acontecido. A alguns quilômetros dali, encontraram de fato os destroços de uma ponte velha de madeira, que cedera ao peso de três cavalos. Os cavalos foram encontrados mortos na beira do rio, bem como os corpos dos dois soldados e o do Capitão Yacanto, com a barba cheia de plantas. 

De volta à vila, Catanduva mandou que abrissem a sepultura, em cima da qual tinha sido deixada a espada do Capitão, e não se admirou ao vê-la vazia.


(Este conto foi incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio, Casa da Palavra, 2013)







2259) Como não crer em nada (4.6.2010)



A fé é um impulso emocional, não é um raciocínio. Ninguém chega a acreditar num Deus simplesmente porque leu as discussões, avaliou os argumentos e decidiu que um lado era mais convincente do que o outro, assim como ninguém se apaixona por uma mulher porque viu fotos, tirou medidas, aplicou questionário e ficou satisfeito com o que obteve. Escolhas superficiais, como a do time de futebol por que torcemos, geralmente se devem a um contexto social. Por que este time, e não outro? Ora, porque torcemos pelo time do nosso pai, dos nossos vizinhos mais influentes, dos nossos amigos mais próximos. Crescemos naquele ambiente e quando nos damos conta nossa escolha já foi feita pelo ambiente em que vivemos (e isto inclui também aqueles que, para se rebelar contra essa escolha à revelia, pulam para o lado oposto, como tática de auto-afirmação).

Stephen Roberts disse certa vez: “Eu proponho a idéia de que todos somos ateus, mas eu acredito em um Deus a menos do que você. Quando você entender por que motivo não crê nos inúmeros outros deuses além do seu, entenderá por que eu não creio nele também”. É fácil para um judeu não crer em Cristo, para um cristão não crer em Alá, e assim por diante. Para estes, os deuses que não são o seu são meras figuras, meras ilustrações de livro. Quando perguntam a Daniel Sottomayor, presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), por que motivo ele não crê em Deus ele sempre responde algo como: “Eu não sinto necessidade de crer nos deuses, porque as respostas da Ciência me parecem satisfatórias”. Colocando a palavra no plural, ele nivela todas as religiões num mesmo limbo de indiferença. Não é que ele não creia no Deus dos cristãos, ele não crê em nenhum.

Já vi muitos crentes dizerem: “Quando não me perguntam o que é Deus, sei; quando me perguntam, não sei”. Isso ocorre com alguém que age baseado em conclusões posteriores, em processos mentais longamente elaborados. Quando lhes pedem para remontar ao primeiro desses processos, eles têm dificuldade, porque já não lidam mais com esse conceito inicial e sim com todos os conceitos éticos, morais, afetivos, etc. que surgiram como consequência daquele. A decisão de crer em Deus foi tomada há muito tempo e se enraizou, faz parte da personalidade, e consequentemente é algo difícil de explicar. Ao ter de responder essa pergunta, o crente se vê forçado a reconstituir processos mentais muito antigos, nos quais não pensava há tempos. É parecido com o que Cecília Meireles disse da liberdade (“Liberdade, essa palavra / que o sonho humano alimenta: / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda!”). Passamos por situação semelhante quando temos filhos pequenos que nos fazem perguntas aparentemente bobas ou simples. Por que a água molha? Por que o céu é azul? Por que as coisas caem para baixo e não para cima? Por que existe Deus? Por que não existe Deus?

2258) O conceito de número (3.6.2010)



(Paul Klee, Runner at the Goal, 1921)

Diz uma piada que um garoto muito burrinho, no primeiro dia de aula, estava dando trabalho à professora de Matemática. Ela lhe pedia para responder cálculos básicos de tabuada, tipo 2x5 ou 10 dividido por 2, e ele não conseguia. Ela perguntou quanto era 2 mais 2... e ele nada. Em desespero, ela disse: “Tá bom, meu filho. Basta responder: quanto é um mais um?” E o garoto: “Quanto é um?”. Eu sou da teoria de que toda piada é uma cápsula filosófica de alto nível (creio que Raymond Roussel, Lewis Carroll, Sigmund Freud e Woody Allen concordariam comigo). Esta aqui, por exemplo, é a base de todo pensamento científico. Descendo ao básico do básico, você só consegue saber quanto é um mais um se tiver uma idéia do que é um.

E não para por aí. Os historiadores da Matemática reconhecem que devem ter se passado milênios até que o líder de alguma cultura começou a pôr ordem na bagunça, chamou os representantes dos clãs para uma reunião à beira da fogueira e disse: “Olha, pessoal, a gente precisa se entender melhor. Pertencemos a uma cultura milenar, somos descendentes do Povo que Descobriu o Um. Mas esse conhecimento está se revelando insuficiente. Por exemplo, eu, Gug, tenho um-um-um filhos e por mim estou satisfeito. Mas meu irmão Wog tem um-um-um-um-um-um-um filhos e acha um saco ficar contando-os, além do mais sendo gago, o que já o fez suspeitar da fidelidade da esposa. Eu sugiro que a gente comece a sofisticar esse conceito”. Um jovem da tribo levantou a mão e sugeriu: “Podíamos dizer que o Um de quem tem mais vacas vale mais do que o Um de quem tem menos, que tal? Matemática Ponderada seria um bom rótulo.”

Gug discordou com veemência. “Eu trouxe aqui uma moção,” disse ele, puxando de baixo da pele de mamute algumas folhas rabiscadas (folhas de bananeira), “e meu assessor aritmético sugeriu um novo conceito, chamado Dois”. Murmúrio de espanto. “É uma divindade?”, perguntou alguém. “Não, é um novo número, vem depois de Um, e na verdade seria o seguinte: todas vez que tivermos um-um diremos Dois”. O grupinho oposicionista sentado do lado esquerdo começou a motejar: “É sempre assim, quando se tem um problema, troca-se o nome do problema e chama-se isso de Solução”. Gug bateu com força com o cajado no chão: “Calem a boca se não deserdo todos três. O Dois é um conceito revolucionário. Um dia e um dia são dois dias. Um braço e um braço são dois braços. Uma vaca e uma vaca são duas vacas...” Alguém o interrompeu: “Eu me recuso a contar os meus braços com o mesmo número com que conto as vacas, sou de uma família importante e acho isso um desaforo”. E instaurou-se a balbúrdia.

Gug abanou a cabeça, desalentado. Como nos custa deixar a pré-história, pensou ele. Já pensou o dia em que tivermos um nome-de-número para exprimir qualquer quantidade, inclusive a de cabelos na cabeça e a de folhas de grama na campina? Seremos iguais aos deuses. O problema é só fazê-los aceitar o Dois. O resto é mera consequência.

2257) O destino de Maiakóvski (2.6.2010)




Vladimir Maiakóvski foi um paradoxo de calças. Tudo nele era extremo, e mais que isto, era extremo em direções opostas. 

Criticado pelos burocratas soviéticos por ser (segundo eles) ininteligível para as massas, foi o contrário do poeta intelectual, instalado em torre de marfim, compondo versos longe do barulho do tráfego. 

Entusiasta da Revolução (e mais tarde destroçado pelo descarrilamento desta), ele fez da poesia um instrumento de luta política – mas não só isto. Dizia: “Comigo a anatomia ficou maluca, sou coração dos pés à cabeça”. Era um emotivo, que acabou se matando por causa de desilusões amorosas (mas não só isto).

Maiakóvski foi endeusado nos anos 1960 quando a palavra Vanguarda era um “abre-te sésamo” e todo jovem queria ser vanguardista. Hoje, a palavra Vanguarda é anátema (e ser intelectual é um um pecado ou um esnobismo) e Maiakóvski acaba pagando por isso, porque imagina-se que sua poesia é de difícil entendimento. Não é. É uma poesia feita com um entusiasmo verbal sem precedentes, uma poesia que realiza aquilo que Guimarães Rosa queria para sua própria prosa quando dizia: 

“Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. (...) O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”.

Edward J. Brown, em sua minuciosa e reflexiva biografia literária Mayakovsky – A Poet in the Revolution (Princeton University, 1973) elogia “seus trocadilhos rimados, suas rimas quebradas com habilidade e espírito lúdico, suas ricas aliterações e assonâncias, seus neologismos felizes e bem-humorados, e o efeito declamatório de seus versos fortemente acentuados”. 

Seu precioso ensaio “Como fazer versos” é uma lição prática de poesia. Seu único defeito é o de todos os manuais: sua leitura não nos ensina a fazer versos, porque fazer versos não é algo que se aprenda teoricamente. É como um manual intitulado “Como nadar”. O sujeito pode lê-lo mil vezes, e de fato entender cada frase que ele diz. Mas continua sem saber nadar.

Maiakóvski falou de tudo, e falou reiteradamente de poesia. Um tema permanente em seus poemas é a importância da poesia, comparada a outros ofícios, a outras atividades humanas, comparada até mesmo à combustão solar em “A Extraordinária Aventura Vivida por Vladimir Maiakóvski no Verão na Datcha”, em que o Sol vem bater papo em sua sala de visitas, os dois queixam-se das dificuldades dos seus respectivos ofícios, e o Sol despede-se dizendo: “Somos amigos pra sempre, eu de você, você de mim. Vamos, poeta, cantar, luzir no lixo cinza do universo. Eu verterei o meu sol e você o seu, com seus versos” (tradução de Augusto de Campos).








2256) O planejamento e a surpresa (1.6.2010)



A maioria das críticas que têm sido feitas a Dunga estão equivocadas. Eu critico a Seleção desde que ele assumiu, condenei o modo de jogar do time dele quando jogou mal ou jogou errado, elogiei quando jogou bem ou jogou como me parecia certo. E não sou do tipo que separa “futebol arte” e “futebol de resultados”. Jogar bem não é o contrário de jogar para ganhar. Toda essa discussão que se arrasta há décadas é uma imensa perda de tempo.

Acusam Dunga de ser teimoso, e ele se defende dizendo que é apenas coerente. Dunga tem razão. Técnico tem que ser teimoso – ou coerente, não importa. Alguns técnicos querem agradar a todo mundo e acabam desagradando ao mundo inteiro. Técnico tem que ter uma idéia de como montar um time, de que maneira jogar com os jogadores disponíveis, e treinar o time para isso. Lembram da fábula “O Velho, o Menino e o Burro”? Pai e filho vão montados no burro. Todo mundo que eles encontram na estrada diz que deviam estar levando o burro de outra maneira, e eles ficam tentando agradar a essas pessoas - que não concordam entre si. Primeiro vão os dois a pé, depois um montado e o outro puxando, depois trocam... Não vai dar certo nunca. Melhor ter opinião própria e esquecer os outros.

Acusam Dunga de não gostar de futebol arte. Se assim fosse ele não teria convocado jogadores como Robinho e Nilmar (que acho tão bom jogador, se bem que num estilo diferente, quanto o Neymar do Santos). Teria chamado (por exemplo) atacantes como Washington e Fernandão. O que Dunga não quer é mexer na mentalidade do grupo. Se aparecesse agora um zagueiro ou um volante defensivo sensacional, craquíssimo, mas com cabeça diferente, também não seria convocado.

A crítica mais precisa que vi ser feita a Dunga foi num artigo de José Miguel Wisnik no “Globo” do dia 15 de maio, quando ele diz sobre a base do trabalho de Dunga: “O fundamento é corporativo: o compromisso integral com o grupo de jogadores testados e aprovados ganha a dimensão de um tabu a não ser quebrado, sob pena de romper-se a relação de confiança que sustenta internamente a autoridade do técnico. (...) Eles não abrem frestas para o inesperado, para aquela aposta incógnita em algo que não está estabelecido, e na qual o futebol brasileiro bebeu tantas vezes do seu melhor. (...) Mas quem não acredita em surpresa não cria alternativas, não promove surpresa, não está pronto para a surpresa.”

Esta última frase é o x da questão, porque existe uma certa mentalidade (não só no futebol) de tentar planejar tudo, tentar prever tudo, tentar eliminar a surpresa, porque se parte do princípio que a surpresa é sempre contra, a surpresa é sempre uma ameaça, a surpresa pertence sempre ao adversário. Isto é típico de jogador bloqueador como foi Dunga, uma vida dedicada a evitar surpresas. É difícil a um jogador assim, quando vira técnico, buscar a surpresa, ser um causador de surpresas. Ele nunca aprendeu a considerar a surpresa como um aliado.