O websaite Belas Artes À La Carte está exibindo há algum
tempo um clássico que eu nunca tinha visto: La
Grande Illusion (1937) de Jean Renoir.
O diretor, que era filho do pintor Auguste Renoir, é um
dos grandes mestres de sua geração de cineastas. Alguns filmes dele tornam-se
melhores a cada revisão, como A Regra do
Jogo (1939), O Crime de Monsieur Lange
(1936), A Carruagem de Ouro (1952).
A Grande Ilusão
é um filme de guerra que deixou uma marca considerável no gênero. Roger Ebert
observou que elementos do filme de Renoir foram copiados em Fugindo do Inferno (os prisioneiros
escondendo a terra da escavação do túnel) e em Casablanca (os franceses cantando a Marselhesa, desafiadoramente,
na cara dos oficiais alemães).
(Pierre Fresnay, como o oficial francês, e Erich von Stroheim, como o alemão)
O filme compartilha, com certa nostalgia e perplexidade, aquela
noção antiga de que a guerra é uma espécie de esporte entre cavalheiros. É uma das
noções mais contraditórias e absurdas que existem, no meu entender das coisas
(que é um entender muito pessimista, reconheço).
A I Guerra Mundial, época em que A Grande Ilusão está ambientado, era uma dessas guerras que
herdaram o espírito esportivo e cavalheiresco da época medieval. Uma época em
que duques, barões, príncipes, viscondes se encontravam num banquete, comiam,
bebiam, cantavam juntos, faziam ameaças mútuas repletas de gargalhadas – e no
dia seguinte vestiam a armadura e destroçavam-se uns aos outros.
O primeiro episódio desse tipo que me desconcertou, em
plena adolescência, foi um capítulo de Conan Doyle, “De como os Trinta de
Josselin enfrentaram os Trinta de Ploermel”, em seu magnífico O Escudeiro Heróico (“Sir Nigel”, 1906).
O livro é ambientado durante a Guerra dos Cem Anos. Nesse
trecho, Doyle descreve os desafios entre os cavaleiros aquartelados nesses dois
castelos (os ingleses em Ploermel, os franceses em Josselin).
Acontece que, justo nesse momento, os reis da Inglaterra
e da França acertam uma trégua provisória. A partir dessa data é proibido guerrear. Decepcionados, os cavaleiros se reúnem para
beber juntos (mais ou menos no clima entre oficiais alemães e prisioneiros
franceses do A Grande Ilusão), mas
começam as provocações de parte a parte e eles resolvem driblar a trégua
promovendo um “mero” torneio de armas, com 30 guerreiros de cada lado.
Ou seja – não será um ato de guerra, será um torneio
esportivo.
(O Combate dos Trinta)
O encontro se torna uma verdadeira carnificina. Doyle se
baseou num episódio histórico, o “Combate dos Trinta”, ocorrido em 26 de março
de 1351, quando os nobres guerreiros dos dois países, segundo um cronista da
época, “comportaram-se tão valentemente como se fossem os próprios Roldão e
Oliveiros” – o que mostra o quanto a valentia da literatura de cordel já vem de
longe.
Diz Conan Doyle em 1906, na introdução de Sir Nigel, defendendo esta mistura
surrealista de brutalidade guerreira e refinamento aristocrático:
Sei que alguns destes incidentes podem parecer repulsivos e brutais ao
leitor moderno. É inútil, contudo, desenhar o Século Vinte dizendo que é o
Catorze. Aquela foi uma época mais severa, e os códigos de moral, especialmente
no que tange à crueldade, eram muito diferentes. Não há no presente texto
nenhum incidente que não tenha confirmação nos fatos concretos. O encanto da
Cavalaria reside na superfície da vida, mas por baixo dela havia uma população
semi-selvagem, feroz e animalesca, pouco afeita à piedade e à misericórdia. Era
uma Inglaterra crua, rude, cheia de paixões elementares, e redimida apenas por
virtudes elementares. E foi como tal que me dispus a retratá-la. (trad. BT)
Mais de cinco séculos transcorrem entre a guerra descrita
por Conan Doyle (século 14) e a guerra descrita por Jean Renoir (a I Guerra
Mundial). Durante todo esse período, não sei se aumentou ou diminuiu o controle
da ética sobre a necessidade de matar e destruir. Toda guerra tem “códigos de
conduta”: em tais circunstâncias o conflito deve ser suspenso; tais e tais
armas não podem ser usadas; tais e tais comportamentos não serão tolerados; os
conflitos devem ocorrer dentro de regras aceitas de parte a parte; e assim por
diante.
Pelo que me lembro (não tenho mais o livro) Johann
Huizinga explora com detalhes este tema no capítulo “O Jogo e a Guerra” do
clássico Homo Ludens (1938).
Uma cena de A
Grande Ilusão é bem típica desse conceito cavalheiresco de guerra. Os
prisioneiros (oficiais franceses) estão preparando uma comprida corda para
fugir pelo muro. Aproximam-se os alemães encarregados da revista. O francês
agarra a longuíssima corda e a pendura do lado de fora da janela. O oficial
alemão pergunta: “Dá sua palavra de honra de que aqui nesta cela não há nenhum
instrumento de fuga?”, o francês diz: “Sim” – com um leve sorriso. Ele está
sendo honesto – o instrumento de fuga não está na cela, está pendurado do lado
de fora.
Esse conceito da guerra como um esporte entre cavalheiros
é, pelo que se percebe, a “grande ilusão” mencionada no título.
Nos conflitos recentes entre Israel e o grupo libanês
Hezbollah, o Mossad e o Exército israelense (segundo o New York Times) foram os
responsáveis pela explosão de milhares de pagers
(ou bips) e de walkie-talkies, meios de comunicação um tanto antiquados que o
Hezbollah usava para evitar o rastreamento via celular, internet, etc.
O Alto Comissário das Nações Unidas Para os Direitos
Humanos, Volker Turk, declarou à imprensa:
Usar milhares de indivíduos simultaneamente como alvos, sejam eles
civis ou membros de grupos armados, sem ter uma idéia de quem está de posse dos
aparelhos manipulados, nem de sua localização ou do seu entorno no momento do
ataque, viola as leis internacionais dos direitos humanos, e, na medida em que
se aplica, a legislação humanitária internacional.
Ou seja: mesmo que não estejamos mais na Idade Média com
seus salamaleques cavalheirescos, a guerra não é um vale-tudo. A guerra tem
limites.
La Grande Illusion
lembra em muitos momentos outro filme clássico de Jean Renoir: La Règle du Jeu, uma história em que ele compara o comportamento amoroso
de patrões e empregados, num fim-de-semana festivo numa mansão. Aristocratas
daquele tempo se divertiam caçando perdizes ou caçando raposas. Na caçada
esportiva, havia regras, e não há como não pensar que a guerra para eles não
era uma atividade muito diferente.
No fim das contas, a grande ilusão de todos é tentar
manter a guerra – a matança deliberada de pessoas – como uma espécie de jogo, com regras, como se
fosse um passatempo, ou no máximo como aqueles duelos de espada onde bastava um
arranhão para que “a honra estivesse satisfeita”.