quinta-feira, 30 de março de 2023

4927) Terry Pratchett e a literatura infantil (30.3.2023)



(Terry Pratchett) 

Muita gente diz que literatura infantil é uma mina de ouro, talvez por ser uma espécie de literatura obrigatória, que os professores indicam e os pais têm a obrigação de comprar (quando podem, é claro). 
 
Por outro lado, é uma literatura que arregala os olhos, porque o nível de ilustração e de projeto gráfico, aqui no Brasil, é realmente muito alto. Sempre que levei meus filhos pequenos para a “bibliotequinha” que (felizmente) nossas livrarias insistem em manter, nunca lamentei a meia hora ou uma hora em que fiquei sentado ali junto. Não dava para ler livros inteiros, mas eu fazia um mergulho intensivo na arte da ilustração. 
 
Terry Pratchett não é propriamente um autor infantil, mas sua série de fantasia “Discworld” vendeu dezenas de milhões de livros no mundo inteiro e acabou passando às mãos de milhões de crianças, atraídas pelo seu lado imaginativo, pela fantasia, pelo humor.


Numa entrevista de 2004, ele faz algumas colocações interessantes, e começa por um fato crucial. Geralmente a gente diz que em livro infantil não pode ter sexo, não pode ter palavrão, não pode ter violência excessiva, não pode ter discurso de preconceito... 
 
Tudo isto é uma verdade relativa, claro. Livros para pré-adolescentes podem e devem abordar o sexo, mais cedo ou mais tarde, porque é algo que vai entrar na vida dos jovens, queiramos ou não, e provavelmente algo que eles já conversam na escola ou entre as turminhas de amigos. Os livros não podem fazer vista grossa. (E também ninguém é obrigado a falar disso em todo livro.) 
 
Violência é outro aspecto, porque se tem uma coisa que criança gosta é história de suspense, de perigo, de perseguição, de fuga... Difícil fazer tudo isso sem pelo menos sugestões de violência. Os desenhos animados estão cheios disso, o cinema, a TV, os joguinhos. O livro é a mesma coisa – sempre com o desconfiômetro ligado. (Se eu já antipatizo violência desnecessária em livro adulto, muito mais em livro infantil.) 
 
Mas Terry Pratchett vai mais além dessa vigilância da moral e dos bons costumes. Ele tenta entender a psicologia do leitor infantil, o modo como o garoto ou a garota decifram o livro e interpretam o universo complexo que está sendo mostrado (no caso dele, o universo de Discworld, um mundo meio medieval onde a mágica funciona.)




Uma primeira coisa é: o leitor jovem tem menos informação sobre o mundo. Ele sabe menos coisas sobre o mundo do que o autor do livro, não por ser bobinho, mas por não ter tido tempo de aprender. Pratchett (que morreu em 2015) diz que isso não se dá apenas com crianças. Quando escreve para adultos, ele tem consciência de que os adultos jovens já nasceram em outro mundo, um mundo com outras prioridades e outro ranking de importâncias. 
 
Diz ele, numa entrevista à revista Locus (# 520, maio 2004, trad. BT): 
 
Por exemplo, no meu livro Soul Music (1994) há uma piada que envolve os Blues Brothers, e a esta altura há toda uma geração de leitores jovens que não fazem a menor idéia de quem foram os Blues Brothers, e não estão nem aí para eles. Piadas menores desse tipo perdem a atualidade; as piadas mais profundas são as que perduram. Eu digo: “Não importa em quem você votar, o maldito governo vai acabar mandando nele.” Isso é atual tanto agora quanto daqui a dez anos.
 
Todo tipo de referência excessivamente datada, localizada, tende a envelhecer com rapidez. Muitas vezes o autor quer pegar carona, meio sofregamente, nos assuntos do momento. Cinco anos depois o assunto do momento será outro. Quem vendeu vendeu, quem não vendeu não vende mais – a não ser que o livro tenha outros méritos. 
 
Diz Pratchett:
 
Em geral, os editores de livros para crianças se envolvem muito mais, querem acompanhar o livro desde o começo da escrita, trocar idéias. E o autor precisa saber o que está fazendo. Uma criança não traz para a leitura a mesma bagagem trazida por um adulto qualquer, e talvez não seja capaz de “ligar os pontos” de algo que é narrado. Leitores adultos viveram (em maior ou menor grau) as mesmas experiências que eu vivi, leram os mesmos jornais, ouviram os mesmos noticiários ao longo da vida. Mas o mundo gira, e a cultura se modifica. Quando o autor vai ficando velho, precisa ficar mais atento. O mundo, hoje, está cheio de adultos que não sabem dizer os nomes dos quatro Beatles; mas não é por burrice. Quando a gente escreve para pessoas de outra geração, tem que abrir o olho. 


Pratchett era da minha geração (dois anos mais velho do que eu) e ele deve ter passado em algum momento por aquele instante desacorçoado em que a gente pensa: “Quanto mais eu envelheço, mais desinformados ficam os jovens.” É natural, porque há uma substituição contínua de “tempos presentes”, e os jovens querem se embeber, se ensopar, se encharcar do presente.
  
 
Ele relaciona alguns detalhes que considera importantes no “olho de leitor” infantil.
 
Crianças são leitores muito apegados à lógica. Tudo que eles querem é a explicação, e pode ser em uma frase. Mas eles precisam ver a frase, e saber que você pensou nesse detalhe. Eles fazem perguntas que um adulto não faria – por exemplo, “E o que aconteceu com tal ou tal personagem secundário?...” Eles querem saber se no final tudo ficou resolvido. Gostam das coisas certinhas.    
 
Pratchett fala de sua experiência, é claro. Apesar de ter suas obras traduzidas em mais de 40 países (no Brasil, inclusive), seu feedback mais imediato é com as crianças da Inglaterra, seu país natal, e não por acaso um país com uma literatura infantil de alto nível há no mínimo um século e meio. 
 
Em todo caso, é bom lembrar que Pratchett fez um dia essa distinção:
 
“Um europeu diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado comigo?, enquanto um norte-americano diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado com o autor?”.
 
É como se as crianças fossem européias, e ao crescer se tornassem norte-americanas.
 





segunda-feira, 27 de março de 2023

4926) O Doutor sem ter doutorado (27.3.2023)




Dr. Valdir não era doutor na origem; era só Valdir, cinco ou seis anos mais velho do que eu, também torcedor do Treze, também apreciador da nobre arte da cerveja gelada e da moela com farinha. Tinha uma lojinha de ferragens agrícolas na Rua João Suassuna, não muito longe da Praça Félix Araújo. Era do sertão, das bandas de Brejo do Cruz. Um daqueles migrantes que nunca voltaram para a cidade natal. Não que queimassem as pontes por onde passaram; as pontes o tempo levou, e eles não tinham como construir outras.
 
Nas noitadas etílico-filosóficas comendo meio-galeto no Bar de Benedito, Valdir dizia, apertando meu ombro, quando o olho já estava penso: 
 
– BT, essa cidade me acolheu como se já me conhecesse. – Ele gostava de uma frase altissonante. – E eu caí nos braços dela como se já a amasse.
 
Ficamos mais amigos ao descobrir que éramos leitores de revistas de contos policiais como Suspense ou X-9, grandes sucessos da Rio Gráfica Editora nos anos 1960. Trocávamos exemplares de vez em quando. Eu gostava mais dos crimes enigmáticos; ele curtia as noveletas de detetives particulares contra mafiosos e contrabandistas de uísque. E nada nos escapava nas Edições de Ouro: Shell Scott, Johnny Liddell, Mike Shayne, Erle Stanley Gardner. 
 
Lembro ainda hoje dos olhos dele, arregalados, quando tirei da pasta um exemplar do Poema Sujo de Ferreira Gullar, recém-lançado, e mostrei os versos imortais, onde o poeta se refere ao pai, encostado no balcão do armazém onde trabalhava:
 
Não seria correto porque
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) – ele meio debruçado
no balcão lendo X-9...
 
– Tás vendo, Valdir? Revista boa todo mundo gosta.
 
– O pai do poeta lia revista policial!  No mundo tem de tudo e mais um pouco.
 
– O negócio é ler o que gosta, rapaz, e não ter preconceito.
 
– Claro. Eu leio, e um cara de vasta cultura como você lê também.
 
Valdir foi criado em roça, acunhando enxada, fincando estaca de cerca, pastorando bezerro. Aprendeu a ler meio na marra, com o que tivesse de coisa escrita por perto. “Eu gostava de ler propaganda de remédio,” disse ele uma vez, morrendo de rir, “porque era um otimismo da porra, tudo acontecia bem, ali!  Eita mundo belo.”
 
Veio pra Campina com uns vinte anos, trabalhou de balconista em várias lojas, até casar com uma filha do dono e acabar herdando a loja. A loja era a vida dele: a loja, a família (com uns filhos que eu mal conhecia), a farra e as leituras.
 
E uma vez ele anunciou, quando o encontrei no São João, numa barraca do Parque do Povo:
 
– Passei no vestibular aos 58 anos, e estou fazendo Direito.
 
– Já era tempo de fazer alguma coisa direito na tua vida.
 
– Estou achando uma beleza. Descobri que minha vocação não é o comércio, é a aplicação da justiça de todos para resolver os problemas de cada um.
 
Ele gostava do fator altissonante, e iria dar um bom advogado.  Era ligado, não comia gato por lebre, não tinha “vasta cultura” mas tinha a inteligência das relações humanas, coisa que sempre me faltou. Ainda penso que o livro policial pesou um pouco nesse seu projeto meio tardio. Ele certamente alimentava uma vaga fantasia de se ver numa sala de júri fazendo com Vital do Rêgo ou Agnelo Amorim o que Perry Mason fazia com o promotor Hamilton Burger.
 
Rimos, farreamos, peguei o trevo rumo a minha vida e ele à dele.  Alguns anos sem nos vermos, mas me chegou aos ouvidos que ele estava formado, e cheio das atividades. E um dia, em nova passagem por Campina Grande, preciso ir ao Forum para assinar alguma coisa, resolver alguma pendenga burocrática. Na saída, ao passar num corredor olho para dentro e vejo uma espécie de ante-sala com sofás majestosos e quadros a óleo na parede. E três caras conferenciando em voz baixa, de pé, no centro da sala: Valdir e mais dois.
 
Cheguei à porta e um rapazote com olhar ansioso de estagiário estendeu o braço:
 
– Um momento, eles estão em reunião agora.
 
– Tudo bem – disse eu. – Quero somente uma palavrinha rápida com Dr. Valdir.
 
– Ele já vai atendê-lo – disse o rapaz, caprichando na ênclise.
 
Deu alguns passos até o grupo, cochichou alguma coisa; quando Valdir ergueu o rosto e me viu na porta, seus olhos brilharam.
 
– Dr. Valdir?... – falei, bem alto. – Passei só para lhe dar um boa-tarde.
 
Não aconteceu o estardalhaço costumeiro. Ele inflou o peito, cerimonioso, pediu licença aos colegas e caminhou compassadamente na minha direção. 
 
– É uma honra a presença do intelectual Braulio Tavares! Colegas, já conhecem?
 
Me abraçou formalmente, mas satisfeitíssimo, me apresentou: Doutor Fulano, Doutor Sicrano... Cumprimentei todos, trocamos amenidades, ele pediu licença aos outros, despedimo-nos e saímos para o corredor.
 
– Obrigado pelo “doutor” – disse. – Lá fora eu dispenso, mas aqui dentro todo mundo sabe que eu vim do grotão, e meu dever é mostrar a eles que o grotão sabe o que faz. 

– O título confere respeitabilidade, não é?

– Eles querem respeitabilidade; eu quero respeito. E título é como revólver, se a gente mostrar que tem, talvez nem precise usar. 
 
– Eu não vejo problema – respondi. – Pra mim é como chamar cafetina de madame.
 
– Mês passado, sabe quem eu encontrei, na porta da sala do júri, cheia de gente? Um primo da minha esposa, que eu não via há anos. E ele gritou de longe: “Diz, cachaceiro!”
 
– Eu dava voz de prisão no ato – comentei.
 
– O sal dele tá se pisando. Soube que a mulher dele quer se separar, e se eu pegar essa causa vou deixar ele sem fogão nem geladeira.
 
Pegamos o carro dele (era ainda o mesmo carro azul-marinho de anos atrás, com o escudo do Galo no parabrisa.) e fomos tomar uma. Ele disse a certa altura:
 
– Doutor é quem tem doutorado. Não esqueça disso. Mas nesse ninho de cobras, quem facilitar é engolido. Tá cheio de gente boa, mas tem uns caras aí que parece que estão com um sacarrolha enganchado no cu, e só sai se alguém chamar de “doutor”.  
 
 
 
 




sexta-feira, 24 de março de 2023

4925) Sete autores obscuros (24.3.2023)




1
Tomás Carmelo Fiúza (1915-1998), contabilista, paraense de Marabá, casado, três filhos. Dedicou sua vida à criação do volumoso poema épico Tábua Esmeraldina, em doze cantos e cerca de 60 mil versos, contando a criação da floresta amazônica desde os dias do Jardim do Éden até a época atual. O poema usa a Tábua de Logaritmos como guia numérico, num sistema inventado por Tomás na adolescência, e aperfeiçoado durante a vida inteira. Por meio dele, era-lhe possível governar o número (variável)  de estrofes em cada Canto, o número de versos em cada estrofe, e o número de sílabas em cada verso. Após sua morte, os filhos se cotizaram para financiar uma edição eletrônica da obra, cuja publicação em papel foi considerada “inviável” pelas trinta e sete editoras a quem foi submetido o manuscrito. 

 

2
Lauro B. Kronka, 41 anos, funcionário público, ao dirigir consertos no sistema subterrâneo de esgotos de Cracóvia, descobriu uma galeria que dava acesso ao terreno exatamente por baixo do edifício para onde, após a II Guerra Mundial, tinha sido transferido o Banco Estadual, sem levar em conta a rede de galerias já existente naquele subsolo há mais de cem anos. Este fato o levou a escrever e publicar o romance policial O Assalto da Véspera de Natal,  onde descrevia com riqueza de detalhes a ação de um grupo de ladrões que esvaziava o cofre-forte do Banco por aquela via subterrânea. Mal a obra chegou às livrarias, o Banco comprou e incinerou toda a tiragem, reforçou a segurança do cofre, e deu a Lauro B. Kronka um “cala-a-boca” sob a forma de um salário vitalício para que não revelasse a ninguém os aspectos mais peculiares do trajeto que havia descoberto. 



3
Anália Cedro da Costa, bibliotecária, solteira, faleceu aos 68 anos, deixando inédito o livro de memórias que, por ocasião de sua festa dos cinquenta anos, anunciou à família estar escrevendo. De fato, quando os herdeiros tiveram acesso aos seus arquivos pessoais, constataram que durante todo esse tempo ela se limitara a produzir dezenas de versões, muito diferentes entre si, do primeiro (e finalmente único) capítulo, intitulado “Meu Nascimento”, que ela reescreveu obsessivamente, em todos os estilos, todos os pontos de vista, todas as convenções narrativas ao seu alcance, o que resultou num volume com mais de 500 páginas de versões desse capítulo, as quais só tinham em comum entre si a frase inicial: “Nasci numa manhã chuvosa de segunda-feira, e manhã chuvosa de segunda-feira tem sido a minha vida desde então.” 


4
Roberto Espiridião de Lima, mineiro de Juiz de Fora, cresceu colecionando gibis e livrinhos de bolso, até se mudar para o Rio de Janeiro, casar aos 19 anos com a namoradinha grávida, instalar-se vitaliciamente num conjugado na Rua Benjamin Constant, e entrar num parafuso sem fim de trabalhos mal remunerados mas que ele executava com fervor, bendizendo a sorte. Arranjou numerosas tarefas de revisão e “tradução livre” em várias editoras pequenas, onde logo passou a publicar suas próprias aventuras de faroeste, sob pseudônimo; livrinhos de 80-100 páginas que ele começava a escrever numa terça-feira e entregava na segunda-feira seguinte. Ao morrer de enfarte aos 55 anos deixou anotações metódicas comprovando que ao longo de mais de três décadas municiou sem parar editoras como a Monterrey, a Bruguera, a Cedibra, as Edições de Ouro, a Vecchi e a Rio Gráfica Editora, tendo publicado ao todo 238 títulos, sob 203 pseudônimos diferentes. 


5
Lindalva Martins, alagoana de Penedo, prendas domésticas, nunca se casou, e morreu aos 103 anos depois de ter sido cuidada pelos pais, pelos irmãos, e pelos sobrinhos, sucessivamente. Escreveu poemas desde a infância mas nunca se interessou em publicá-los. Diz a família que nunca houve um dia em sua vida em que ela não escrevesse vários poemas, curtos ou longos, geralmente em folhas de caderno espiral que ela depois arrancava e dava de presente a quem estivesse por perto. Quando completou 100 anos, foi visitada por jornalistas e equipes de televisão. Afirmou que esquecia os poemas logo depois de escrevê-los. Perguntada de onde lhe vinha uma inspiração tão incessante, ela estendeu o braço (estava sentada em sua caminha de solteira, no quartinho-dos-fundos onde dormia), pegou uma caneca de lata, enfiou o dedo indicador na asa e fez um movimento ilustrativo, enquanto explicava: “A poesia não pára, é um riachinho que vive passando, dia e noite, aí quando eu tou com sede eu pego minha canequinha, e...” 



6
Harry Greene Holt, 37 anos, natural de Albany (NY), desde os 11 anos estudou a fundo a obra de Quentin Tarantino, tendo composto antes dos 18 anos uma meticulosa tábua cronológica e genealógica relativa a todos os filmes do diretor. Escreveu centenas de cartas e emails para ele, tendo recebido apenas uma resposta, em 2002 – uma foto autografada, sem dedicatória. Isto redobrou suas esperanças e seu otimismo. Em 2016 ele concluiu o seu romance épico, uma saga policial-criminal em 8 volumes, Los Vegas, cujo objetivo era preencher ficcionalmente todas as lacunas existentes entre os filmes do diretor, que, numa atitude incompreensível, sempre se recusou a recebê-lo. 



7
Coriolano Bernardes, nascido em 1868, carioca, comerciante, charadista, estreou na poesia em 1891 com o volume de sonetos Versos Versáteis, que teve acolhida morna por parte da crítica, e cujo título foi na época considerado uma imitação dos Versos e Versões (1887) de Raimundo Correia. Três anos depois veio à luz sua segunda obra, Versos Perversos, que desta vez foi negativamente comparada aos Versos Diversos (1890) de Antonio Sales. O desgosto e o ressentimento produziram um longo hiato na carreira do autor, que parou de publicar, mas não de escrever, tanto que deixou pronta e revisada, ao morrer em 1917, a obra póstuma O Holocausto dos Leopardos Verdes no Castelo Ateu de Zanzibar. 
 
 


terça-feira, 21 de março de 2023

4924) "Os Falsários" (21.3.2023)




Este ótimo filme alemão-austríaco (está no streaming do Belas Artes À La Carte) é mais um filme sobre a dura sobrevivência nos campos de concentração, mas desta vez com um ingrediente novo. Ganhou um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 2008.
 
Os Falsários (“Die Fälscher”, 2007), de Stefan Ruzowitzky, conta a história (verídica) da Operação Bernhard, baseada nas memórias de Adolf Burger, um dos participantes. Com as inevitáveis dramatizações e simplificações, por certo.
 
Aqui:
https://www.belasartesalacarte.com.br/browse
 
Parece que a certa altura da II Guerra, os nazistas perceberam que entre os judeus presos nos variados campos de concentração encontravam-se desenhistas, tipógrafos, gravadores, técnicos e especialistas em tintas e papéis... Além de falsificadores de dinheiro.


Surgiu então a idéia de usar esses técnicos (quase todos judeus) para falsificar moeda estrangeira (libras inglesas, dólares, etc.) e jogar esse dinheiro no mercado internacional. Com isso, os alemães teriam um lucro duplicado: pagariam as próprias despesas de guerra, que eram colossais, e por outro lado inflacionariam o mercado internacional com dinheiro falsos dos Aliados, gerando uma crise financeira para os inimigos.
 
Adolf Burger é um dos principais personagens do filme, interpretado por August Diehl (de O Jovem Karl Marx). Mas o protagonista, um “mix” de alguns personagens reais, é Solomon Sorowitz, um exímio falsário que antes da guerra vivia dos pequenos golpes habituais da profissão, mas que depois de prisioneiro é encarregado pelos nazistas de supervisionar a operação. 
 
A aliança com os nazistas leva esses prisioneiros para um campo mais “light”, onde têm direito a refeições melhores, algum tratamento médico, camas com lençóis e travesseiros limpos, etc. Para quem está naquela situação, é uma chance de sobrevivência. Ao mesmo tempo, provoca nos presos uma crise ética. É certo colaborar com os inimigos? Ajudar as finanças de Hitler? Ficar ali no bem-bom, trabalhando para os alemães, enquanto no campo ao lado outros presos são torturados, espancados, mortos a tiros por passatempo? 
 
Os nazistas colocam uma opção muito clara. Se vocês fizerem, vão ter direito a banho, sopa, cama limpa, sobreviver. Se não fizerem, vão ser levados para o pátio, forçados a se ajoelhar, e abatidos com um tiro na têmpora. (Vemos várias cenas assim.) 



Uma das questões mais delicadas das ditaduras e das invasões é a dos chamados “colaboracionistas”, as pessoas que em vez de pegar em armas contra o invasor ou o governo criminoso decide apenas evitá-lo, desviar-se, sobreviver, mesmo ao preço de ajudá-lo aqui e ali e, como regra geral, não bater de frente com ele. Em situações dessa natureza, existem os que dão murro em ponta de faca, e os que tentam apenas desviar-se da faca.
 
As duas atitudes geram um dos conflitos principais em Os Falsários, entre o esquerdista Burger (autor do livro original), que grita: “Não podemos trabalhar pela continuidade do nazismo!”, e o falsário Sorowitz, que diz: “Rapaz, primeiro vamos tratar de sobreviver, a gente não pode ganhar a guerra daqui de dentro deste campo.”



(Karl Markovics (Sorowitz) e August Diehl (Burger)
 
Um importante ponto de inflexão no filme é no seu terço final, quando a maré do conflito bélico começa a virar. Até então, a guerra na Europa acontece à distância; volta e meia os prisioneiros do campo ouvem algum comentário, ou espreitam à distância os nazistas amontoados em torno de um rádio, fazendo comentários arrogantes e, depois, preocupados.
 
Solomon Sorowitz começa a perceber essa virada quando o oficial Herzog, o comandante da operação falsificadora, passa a tratá-lo com mais jovialidade, num tom amistoso, e chega a levá-lo para almoçar em sua casa e conhecer sua família – uma cena banal, mas, no contexto, absurdamente cruel.
 
A certa altura, na reta final, o oficial começa a soltar frases tipo: “Olha, eu nem acredito muito nessa ideologia...” – “Sabia que eu já fui comunista, na juventude?...” - “Você sabe que eu estou aqui apenas fazendo o meu trabalho...” e isso nos mostra indiretamente a derrocada do regime.



Todo regime de força tem um núcleo de fanáticos ideológicos e uma massa-de-manobra heterogênea de desorientados, oportunistas, conformistas, aproveitadores, indiferentes. A ponta da lança são os ideológicos, que produzem as rupturas sociais e instituem o regime do terror e da pressão. Quem dá sustentação e continuidade ao regime são pessoas em busca de segurança, de chances de ascensão social e de enriquecimento; e pessoas que seguem a boiada por medo de represálias ou de discriminação. Fariam o mesmo por qualquer ideologia.  
 
Esse é o alicerce de qualquer movimento político avassalador e brutal. A ideologia pesa, mas pesa menos do que a simples ambição do poder. E esta pesa (em termos quantitativos, na população) menos do que a ansiedade pela segurança, pelo emprego garantido, pelo sustento da família. Para ter isto, milhões de indivíduos farão vista grossa a campos de extermínio, a bombas atômicas, ao trabalho escravo, à tortura de pessoas desconhecidas. 
 
O nazismo está sendo comido pelas beiradas; o oficial Herzog se acovarda, sorri, dá tapinhas nos ombros dos prisioneiros, lembra a eles o quanto os tratou bem... Tudo isto, por mais que seja patético e desprezível, é humano. Não porque seja um modelo para a humanidade, mas porque, para quem observa de fora, é exatamente assim que os humanos muitas vezes se comportam.  





sábado, 18 de março de 2023

4923) Começos de livros (18.3.2023)




Qualquer enumeração de “grandes começos literários” acaba sempre citando os habituais suspeitos: Fahrenheit 451, Cem Anos de Solidão, Anna Karenina, Moby Dick, A Metamorfose, The Go-Between, Neuromancer, Grande Sertão: Veredas... São os melhores começos da literatura universal? Não, não são, são apenas começos excelentes e que nossa cultura decidiu erigir como exemplos obrigatórios.
 
São o troco-de-algibeira de professores, estudantes, jornalistas, blogueiros, críticos literários. São citados, referenciados, imitados, plagiados, parodiados, pastichados por todo pretendente a escritor que deseja mostrar, logo de cara, que já leu “os clássicos modernos”.
 
Um bom começo não tem necessariamente que estar atrelado a um clássico da literatura. Às vezes, nem sequer a um livro muito bom. É frequente um livro começar bem, e depois desandar. E às vezes o autor, que tem lá seus talentos e habilidades, dedicou ao primeiro parágrafo um esforço e uma lucidez que não teve paciência de aplicar no livro inteiro. Acontece.
 
Vou lembrar aqui alguns começos (de romances e de contos) que acho eficientes. Não, não são “Os Melhores De Todos Os Tempos”. São apenas exemplos de começos bem escritos, coisa que nem todos nós conseguimos produzir. (Os exemplos estrangeiros vão traduzidos por mim.) 



O particular e o universal
 
Em termos de ficção científica, por exemplo gosto muito desse primeiro parágrafo de Robert Charles Wilson, em Spin (2005). É o começo do primeiro capítulo pra-valer da história (o livro abre com um episódio que se refere a outro momento do tempo. 
 
Eu tinha doze anos, e os gêmeos treze, na noite em que as estrelas desapareceram do céu.
 
“Num cápsula” temos os três personagens principais da narrativa e o grande problema cósmico envolvido (a Terra fica misteriosamente isolada do Universo). E ilustra a grande qualidade de Wilson: narrar eventos cataclísmicos de grandes proporções e colocar na frente os dramas pessoais dos personagens, que poucos na FC exploram tão bem quanto ele. (O livro é a história de um rapaz pobre que tem um casal de amigos ricos, irmãos gêmeos, e se apaixona pela garota.)  
 

O protagonista (modo indireto)
 
Mostrar o protagonista em poucas linhas é uma maneira forte de começar. Eu não esqueço as linhas iniciais com que Robert Heinlein em The Green Hills of Earth (1947) quando ele criou o maior poeta da FC, o bardo cego Rhysling: 
 
Esta é a história de Rhysling, o Cantador Cego do Espaço; mas não é a versão oficial. Vocês cantaram os versos dele na escola:

 

Eu rezo para aterrissar mais uma vez
no planeta onde nasci:
pousar de novo meus olhos nas nuvens brancas
e nas verdes e suaves colinas da Terra.

 

Ou talvez os tenham cantado em francês, ou em alemão. Talvez até em esperanto, enquanto a bandeira de arco-íris da Terra tremulava sobre sua cabeça.
 
Rhysling foi uma espécie de Cego Aderaldo ou Patativa do Assaré do futuro, viajando de planeta em planeta e compondo versos; e em poucas linhas Heinlein mostra sua importância nessa Terra, inclusive com o detalhe do uso do Esperanto e da “rainbow banner”.
 
 
O protagonista (modo direto)
 
Outra maneira de abrir o conto mostrando sua figura principal é entrar “de cara”, com uma descrição inequívoca, precisa, memorável. Poucos exemplos serão tão vigorosos quanto o início do conto “A caolha” de Julia Lopes de Almeida (em Ânsia Eterna, 1903): 
 
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados. O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante. 
 
É um retrato brutal, que lembra aqueles desenhos em preto-e-branco, filigranados a carvão ou a bico-de-pena, como que na intenção de nada deixar de fora, nenhuma verruga, nenhuma ruga, nenhum poro. 

 

A estranheza - I
 
Há muitas maneiras de começar um livro produzindo uma quebra de realidade, puxando o leitor, logo na primeira frase, para um mundo estranho. Uma das melhores sacadas, a meu ver, é o começo de George Orwell para 1984
 
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas.
 
Um antigo ditado inglês refere-se à “décima-terceira badalada” de um relógio como uma indicação de que o relógio está com defeito, ou de que alguma coisa está fora dos eixos. No caso de Orwell, a crítica costuma apontar o fato de que são todos os relógios da cidade que batem assim ao mesmo tempo. Em tradução, isto se perde um pouco, porque “treze horas” é uma expressão que passa despercebida aqui no Brasil; e em geral as 13:00 são assinalados com uma batida única.   
 
 
A estranheza – II
 
Outro exemplo de estranheza, neste caso estranheza sintática, é o começo de Le Dimanche de la Vie (1952) de Raymond Queneau, uma história corriqueira de amor onde Queneau infiltra, subversivamente, as críticas que fazia ao seu idioma:
 
Ele não duvidava de que todas as vezes que passava diante da sua loja, ela o observava, a comerciante, o soldado Brû. (trad. BT) 
 
Tem um solavanco aí na ordem natural das palavras, mas um leitor que não esteja mal-humorado aceita e entende. Queneau havia publicado um artigo intitulado “Connaissez-vous le chinook?” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1950) onde comparava o francês coloquial, da rua, com o chinook (língua do oeste da América do Norte). Dizia ele que os franceses estavam organizando a frase do mesmo jeito que os falantes do chinook quando diziam: “Ela ainda não viajou, tua prima, à África”, ao invés do francês formal, que diria: “Tua prima ainda não viajou à África”. 
 
Queneau escreveu mais de vinte livros, mas esta é a sua frase inicial mais citada, depois (é claro) da palavra-inventada com que ele abre Zazie no Metrô: “Doukipudonktan?”.
 



O choque
 
Produzir um choque nas primeiras linhas é sempre um “gancho” eficaz para agarrar a atenção do leitor, principalmente se o choque, ao invés de se esvair por si só, desencadeia um mistério, uma necessidade de continuar lendo para saber que diabo significa aquilo. 
 
O elusivo e cruel Jonathan Carroll começa assim seu romance A Child Across The Sky (1989): 
 
Uma hora antes de se suicidar com um tiro, meu melhor amigo, Philip Strayhorn, me telefonou para conversar a respeito de polegares.
– Já percebeu que quando você lava as mãos você na verdade não lava os seus polegares?
 
Essa mistura do macabro e do cotidiano perpassa o livro inteiro; aliás, a obra inteira de Carroll.
 
 
 
A presença ominosa
 
Iniciar uma narrativa anunciando a existência de um fenômeno fora do comum e descrevendo-o aos poucos, de maneira indireta, com alusões, como que preparando o terreno. É um recurso habitual em histórias de terror ou narrativas fantásticas em geral. É o abrir gradual de uma cortina, revelando pouco a pouco uma realidade estranha. É importante para o autor fazer vibrar o diapasão do livro logo no primeiro parágrafo. 
 
Não preciso exemplificar aqui as histórias de Shirley Jackson, H. P. Lovecraft, Conan Doyle ou Edgar Allan Poe que utilizam essa forma insidiosa de introduzir o insólito. Mas ainda pretendo imitar o primeiro parágrafo de A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre (o início do texto propriamente dito; há um prólogo): 
 
Segunda-feira, 29 de janeiro de 1932. Alguma coisa aconteceu comigo, não posso mais duvidar. Veio como uma doença vem; não como uma certeza banal, não como uma coisa evidente. Veio ardilosamente, pouco a pouco; comecei a me sentir meio estranho, meio inquieto, e isto é tudo. Uma vez que aquilo se instalou, não se afastou mais, ficou ali sem fazer bulha, e assim eu pude até me convencer de que não havia nada de errado comigo, que tinha sido um falso alarme. E agora, aquilo está desabrochando. 
 
É apenas o começo. E quantos começos, de tantas coisas em nossa vida, não acontecem exatamente assim?





 



quarta-feira, 15 de março de 2023

4922) O barco de Teseu (15.3.2023)



 
O dilema filosófico do “barco de Teseu” serve de ilustração, e de ponto de partida, para uma boa discussão sobre o lado material e o lado imaterial de um ser, uma pessoa, um objeto.
 
A lenda explica que o barco que serviu ao herói Teseu em sua expedição para matar o Minotauro, no Labirinto de Creta, foi preservado por muitos séculos, e de vez em quando era levado em peregrinação de uma cidade para outra. 

Acontece que o navio era de madeira; algumas partes se quebravam, outras sofriam com o cupim, e aos poucos cada parte do navio foi sendo substituída.  A questão é: depois que trocaram todas as tábuas do casco e do convés, todos os mastros, todos os bancos, todas as velas... aquele ainda era o barco de Teseu?




O escritor Douglas Adams, criador da série de romances O Mochileiro das Galáxias, passou por uma experiência curiosa no Japão, que ele mesmo descreve:
 
Lembro que certa vez, no Japão, fui visitar o Templo do Pavilhão Dourado, em Kyoto, e fiquei um tanto surpreso com o bom estado de conservação do tempo, já que ele foi construído no século 14. O guia me explicou que ele não estava tão bem conservado assim, e que na verdade tinha se incendiado duas vezes só neste século.
– Então, este não é o templo original? – perguntei.
– Claro que é – disse ele, surpreso com a minha pergunta.
– Mas ele foi todo queimado no incêndio?
– Sim.
– Duas vezes?
– Várias vezes.
– E reconstruido?
– Mas, claro. É um edifício importante, de grande valor histórico.
– Usando materais completamente novos.
– Claro que sim. O material antigo queimou no incêndio.
– Nesse caso, como pode ser o mesmo edifício?
– É sempre o mesmo edifício.
Tive que admitir, comigo mesmo, que era um ponto de vista perfeitamente racional, apenas partia de uma premissa diferente. A idéia do edifício, sua intenção, seu design, tudo isto é imutável e constitui a essência do edifício. O que sobrevive é a intenção dos que o construíram pela primeira vez. A madeira que foi usada para isto se deteriora, e precisa ser substituída. Dar importância excessiva ao material original, que é apenas uma lembrança sentimental do passado, desvia a nossa visão do edifício propriamente dito, que continua existindo.
(“Last Chance to See”, trad. BT)
 
Um navio e um templo são objetos físicos tão imponentes que tendemos a dar um valor excessivo ao que eles têm de propriamente material. 

Esse tema foi trazido novamente à discussão poucos anos atrás, quando a Catedral de Notre Dame sofreu um incêndio e ficou parcialmente destruída. Houve uma lamentação generalizada pela destruição de certos aspectos da catedral, mas na época transcrevi esta citação de Sara L. Uckelman, estudiosa da Idade Média (Durham Centre for Ancient and Medieval Philosophy), comentando no Facebook:
 
Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas, são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam porque a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem novas ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem verdadeira importância



Acho que detalhe crucial nesse contexto é o conceito de “presença constante”: a continuidade através do tempo tem tanta importância quanto a presença no espaço, e talvez mais. No caso de Notre Dame, alguns vitrais eram preciosos porque tinham duzentos anos; mas eles próprios já estavam ali substituindo vitrais ainda mais antigos, que foram destruídos dois séculos atrás por algum outro acidente.  E la nave va. 
 
É diferente o caso da destruição, por exemplo, da Biblioteca de Alexandria ou do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Porque em casos assim não se trata da destruição de um objeto que pode ser substituído, mas de milhares ou milhões de objetos únicos (livros, artefatos, manuscritos, etc.) – e quem vai produzir substitutos, ou seja, continuidade temporal, para tudo isto? 
 
No caso de um livro, é preciso distinguir a obra literária  e o objeto-livro.  O livro de Victor Hugo O Corcunda de Notre Dame, por exemplo, tem incontáveis edições e traduções mundo afora. Mesmo se pensarmos apenas na língua original, o francês, não importa quantos exemplares sejam destruídos, basta que se preserve pelo menos um para que a “presença constante” do livro tenha continuidade. 
 
É a premissa do clássico Fahrenheit 451 (livro de Ray Bradbury, filme de François Truffaut), em que os livros são preservados oralmente, na memória de pessoas capazes de recitá-los do começo ao fim.
 
Outra é a situação do manuscrito original de Victor Hugo, as folhas onde ele escreveu, com sua mão e sua caneta, a história original. Este não pode ser substituído – ganha um valor histórico de objeto único, valor que não se reduz se ele for xerografado, digitalizado e reproduzido. É a materialidade daquelas folhas, que foram tocadas e manuseadas pelo artista, que estamos reverenciando quando criamos bibliotecas destinadas à preservação de manuscrios. A obra literária está viva como nunca, reproduzindo-se lá fora – mas o objeto precioso, reverenciado pela nossa cultura enquanto existe, pertence a outra ordem de valores.



(manuscrito de Victor Hugo)
 




domingo, 12 de março de 2023

4921) Pensar numa língua estrangeira (12.3.2023)



Os professores dos cursos de idiomas costumam nos dizer que falar numa língua estrangeira não quer dizer que a gente já a “aprendeu”. Isso só acontece (dizem) quando a gente está pensando nessa língua, e sem ser provocado. 
 
Ou seja – quando a pessoa espontaneamente constrói uma frase em inglês ou espanhol, mesmo estando sozinha em casa. Porque se está no país estrangeiro, é claro que o “aplicativo idiomático mental” fica rodando 24 horas por dia.
 
Ou então quando sonha na outra língua, dizem outras pessoas. Este é mais um sinal de aplicativo rodando. Você sonha que está na Inglaterra falando o maior inglês, ou em Buenos Aires gastando o espanhol com um transeunte qualquer. 
 
Ou, e isso é mais sutil ainda, você sonha que está sozinho numa casa, aí começa a procurar o relógio perguntando a si mesmo “what time is it?”.
 
Isto tem interesse científico porque parece que o aprendizado de línguas estrangeiras se espalha por partes diferentes do cérebro.
 
A medicina tem casos clássicos. Um oficial inglês, na I Guerra Mundial, foi atingido por uma explosão e perdeu parte do cérebro. Recuperou a consciência, mas parecia ter perdido a capacidade de comunicar-se verbalmente. Um dia, médicos falaram em francês diante dele... e ele deu um pulo! E começou a se comunicar em francês, fluentemente. E explicou que o inglês (sua língua natal) era agora incompreensível, mas seu francês estava “normal, normal, normal”. 



Isso me lembra Joaquim Nabuco, um dos nossos grandes intelectuais do Império e da Primeira República. Ele reconhece, com candura e nonchalance, que sua educação cosmopolita o deixou muito mais à vontade no idioma de Renan do que no de Machado:
 
[E] dava-se um fato singular,resultado desses anos de leituras francesas: - eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês e desaprendera o alemão de Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira mágoa do meu mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês. (...) [C]om efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede.
(Minha Formação, cap. VII)
 
Jorge Luís Borges é outro de formação multi-idiomática. Descendente de ingleses (avó paterna inglesa), acostumou-se a ler inglês desde cedo.
 
Em casa, tanto o inglês como o espanhol eram comumente usados. (...) Todos os livros precedentes [Mark Twain, H. G. Wells, R. L. Stevenson, Lewis Carroll, Charles Dickens, etc.] eu os li em inglês. Quando mais tarde li o Don Quixote no original, soou-me como uma tradução mal feita.
(“Perfis”, Ed. Globo, trad. Maria da Glória Bordini)
 
Parece esnobismo, e de certo modo talvez seja – exibicionismo de gente com acesso a bens culturais. Em todo caso... existem populações pobres e multi-idiomáticas em muitos lugares, lugares cheios de mistura transnacional, como cais do porto, zona de guerra, etc. Garotos que vivem como engraxates ou meninos-de-recados, e são capazes de conversar em 3 ou 4 línguas antes dos dez anos.
 
Todas essas circunstâncias nos ajudam a desenvolver reações verbais instintivas em diferentes idiomas. Uma pessoa martela o dedão e solta uma praga numa língua que não fala há anos; é instintivo, corresponde a um comando mental específico, que não passa pela alfândega da racionalidade e da intenção. 



O sonho é a mesma coisa. Borges diz, no mesmo livro, referindo-se aos tempos em que ele e sua irmã Norah, adolescentes, estudavam em francês, morando com os pais em Genebra:
 
Tornei-me um bom latinista, ao mesmo tempo que fazia em inglês a maior parte de minhas leituras particulares. Em casa falávamos o espanhol, mas logo o francês de minha irmã ficou tão bom que ela até sonhava nessa língua.
 
Algo parecido deve acontecer com crianças e jovens que falam línguas diferentes em casa e na escola. Fernando Pessoa estudou em Durban, e seus primeiros poemas publicados não foram em português, foram em inglês. É legítimo supor que muitos impulsos poéticos seus surgiam primeiramente em inglês e talvez fossem depois adaptados para a língua onde seria mais fácil divulgá-los.


 
Um caso notório de bilinguismo literário é o do polonês Joseph Conrad, que escreveu toda sua obra de ficção em inglês. Conrad era de uma família aristocrática da Polônia, estudou francês e outras línguas, mas consta que só se tornou fluente em inglês após os doze anos. Sempre falou o inglês com forte sotaque e um certo artificialismo, embora de maneira escrupulosamente correta.
 
Livros como Lord Jim, O Coração das Trevas e outros mostram um domínio admirável de uma língua que não era a sua; e na qual ele certamente aprendeu a sonhar.
 
Na nota introdutória a seu livro de memórias A Personal Record, ele comenta (trad. BT):
 
O fato é que a minha aptidão para escrever em inglês é tão natural quanto qualquer outra com que eu tenha nascido. Tenho a sensação estranha e esmagadora de que ela foi sempre uma parte integrante de minha pessoa. O inglês, para mim, nunca foi uma questão de escolha ou de adoção. A mera idéia de escolha nunca me passou pela cabeça. (...) Foi uma ação muito íntima e por isto mesmo muito misteriosa para explicar. Seria tão difícil quanto explicar um amor à primeira vista. (...) Se eu não tivesse escrito em inglês, não teria escrito absolutamente nada. 
 
Fico imaginando se na Polônia, um país tantas vezes invadido, retalhado, repartido, despojado de sua identidade histórica e geográfica – se num país assim os seus nacionalistas mais ferrenhos veem a opção anglófona de Conrad como um sinal de entreguismo, como uma rendição humilhante a um poder colonial mais forte (neste caso, no campo da língua e da cultura).  


quinta-feira, 9 de março de 2023

4920) A arte está no detalhe (9.3.2023)



(Daniel Day-Lewis, em Lincoln)

 
Dizem que quando Steven Spielberg filmou a sua cine-biografia de Abraham Lincoln, o tique-taque de relógio que ouvimos no filme é de um relógio que de fato pertenceu a Lincoln.
 
Dizem que quando Luchino Visconti, em Morte em Veneza (1971) mostra Dirk Bogarde lendo um jornal, trata-se de um exemplar autêntico de um jornal local, da época em que transcorre o filme (1911). 
 
Esses detalhes têm importância? Um espectador comum jamais vai perceber a diferença. Mesmo um crítico de cinema ou um historiador precisariam de alguma informação prévia para reparar em tais detalhes. 
 
Na verdade, esse exibicionismo de perfeição acontece para as pessoas que fazem o filme, não para as que o assistem. Não faz parte do filme (ou só o faz muito pouco): faz parte da vida deles, da semana de trabalho deles. 
 
Para conseguir o tal relógio e o tal jornal foi preciso que pessoas da equipe de produção entrassem em contato com a instituição (museu, biblioteca, etc.) que tinha a guarda dos objetos, enviasse um pedido formal, negociasse a abertura de um seguro contra perdas e danos, etc.
 
O objeto provavelmente foi conduzido, vigiado e levado de volta por pessoas com essa única tarefa para executar.
 
Inumeras vezes alguém perguntou no set: “Quem é esse pessoal de fora? O que estão fazendo aqui?”, e alguém respondeu: “É o pessoal que está cuidando do relógio raro”, ou algo assim.
 
Claro que nem sempre tudo corre bem. No filme de Quentin Tarantino Os Oito Odiados (2015), o ator Kurt Russell despedaçou um violão de 1870, uma raridade insubstituível, cedido pelo Martin Museum. Havia réplicas, feitas com essa finalidade, mas na hora da cena alguém não fez a troca, e o ator pensou que estava tudo pronto. O violão de 145 anos virou estilhaços.
 
“Coisas da vida; paciência,” diria Alec Baldwin com estoicismo.


 
(O Martin Museum)

A primeira crítica que se faz é, inevitavelmente: “Pra que usar um instrumento tão raro e correr esse risco? Por que não fizeram simplesmente uma imitação bem feita, ou mais de uma, e devolveram logo o original?”. 
 
E mais uma vez volta a possível explicação: porque quando o elenco e a equipe sabem que estão lidando com material raro e verdadeiro, aquilo impõe um pouco de respeito no espírito desses profissionais que precisam lidar diariamente, na sua profissão, com a encenação, a rua “cenográfica”, o figurino fake
 
Conta-se que um diretor de Hollywood, antes de filmar a cena da atriz principal descendo uma escadaria para um baile, exigiu um colar de diamantes verdadeiros, coisa para mais de 100 mil dólares. O assistente propôs uma imitação de 200 dólares. O diretor disse: “Uma mulher tem outra postura quado ela sabe que está trazendo cem mil dólares ao pescoço.”



( John Wayne, em Red River
 
Não é muito diferente da lenda que se conta sobre John Wayne. Quando ele filmou Rio Vermelho, uma das suas melhores atuações da vida inteira, o diretor Howard Hawks mandou confeccionar presentes para pessoas especiais da equipe: cinturões com fivela de prata e as iniciais do dono gravadas. Hawks e Wayne trocaram, depois, os respectivos cinturões, e Wayne usou o cinto com as iniciais de Hawks em vários clássicos que filmou nos anos seguintes, como Eldorado, Hatari, O Homem que Matou o Facínora e Rio Bravo. Como um talismã de qualidade. 
 
Não é ao público que esses detalhes se destinam, é à equipe. É para a fantasia íntima de quem está filmando, e não é só das estrelas. É também de gente que chega no set às 4 da manhã para começar a preparar o equipamento dos que chegarão às 6.
 
Trabalho profissional em equipe exige disposição, seriedade, profissionalismo, todo esse vocabulário motivatório que os coaches usam à mancheia. Mas exige também dois dedos de fantasia, três dedos de simbolismo e quatro de fetiche, para que todos acreditem que estão criando juntos uma coisa de verdade, uma coisa importante, e que essa coisa faz parte da vida deles, de segunda a sexta-feira. 
 
Se contarem a algum desses profissionais o detalhe do relógio, do jornal ou do colar, ele vai assentir, e dizer (lá com suas palavras) que sente orgulho de estar participando de uma coisa bem feita. Ele sabe que o público não vai saber disso, e de certa forma esse detalhe torna ainda mais valiosa a presença desse objeto. Ele sabe que a equipe teve em mãos algo precioso.
 
Porque esta é uma condição peculiar dos artistas, e quando digo artistas me refiro a todo mundo que trabalha na criação de uma obra de arte: eletricistas, marceneiros, maquiadoras, cantoras, roteiristas, assistentes, cenógrafas, diretores de fotografia...  “Um filme”, “uma peça de teatro”, “um balé”, tudo isto tem dentro de si duas coisas. Uma, é o produto que o público vê. Outra, é a aventura de fazê-lo, e isso o público não fica sabendo. 
 
A criação do mercado de filmes em DVD, com sua abundância de “extras” e “bônus”, gerou alguns sub-produtos interessantes.
 
O “Making Of” (com um F só, revisor) dá ao público uma vaga idéia do trabalho insano que é a realização de um filme, a ralação diária de centenas de pessoas para colocar na tela uma história que foi imaginada por meia dúzia. 
 
Outro bônus da era DVD são as “versões comentadas” do filme. Alguém, geralmente o diretor, vai assistindo o filme em tempo real e fazendo comentários sobre cada coisa que aparece. Explica detalhes técnicos, compara uma cena com outra, relata episódios pitorescos ou assustadores, chama a atenção para um objeto... Num mundo ideal, todo filme teria uma versão assim. Os bons filmes ganhariam em riqueza psicológica, em verossimilhança, teriam quem sabe algumas surpresas para o público. Até os maus filmes ficariam mais interessantes.