segunda-feira, 23 de março de 2020

4562) A quarentena do planeta Terra (23.3.2020)




Quarentenas? A ficção científica tem algumas, talvez até mais interessantes do que A Peste do grande Albert Camus.

Vou pegar um exemplo apenas, um romance de um dos meus escritores preferidos de FC hard, Greg Egan. Quarantine (1999) foi o seu primeiro romance, depois de vários contos surgidos nas principais revistas de FC. 

O enredo de Quarantine começa de maneira simples.

Nick Stavrianos é uma espécie de detetive particular, no ano de 2067, em Perth, na Austrália (a cidade onde vive o autor). Ser detetive nessa época é uma atividade interessante, porque o desenvolvimento da nanotecnologia criou implementos chamados de mods, que são implantados no cérebro e funcionam mais ou menos como o que hoje chamamos de apps – aplicativos que executam funções específicas.

Isso possibilita a Nick ativar, apenas pela vontade, qualquer um desses aplicativos, como por exemplo o “... CypherClerk (Neuro Comm, $ 5.999)” que atende chamadas telefônicas, projetando-as diretamente no cérebro. Combinado com o “... The Night Switchboard (Axon, $ 17.999)”, espécie de secretária eletrônica que atende durante o sono, ele nem sequer precisa “escutar” o que diz o interlocutor do outro lado: ele já acorda sabendo do que se trata.

E assim Nick desperta, na primeira página, para investigar o desaparecimento misterioso de Laura Andrews, trinta e dois anos, paciente de uma clínica de reabilitação. Laura nasceu com uma grave deficiência cerebral e tem a capacidade mental de uma criança de seis meses. A família a internou ali para ser cuidada, e ela viveu a vida inteira numa pequena cela, sendo alimentada, medicada, etc., como qualquer paciente semi-inválido, de família rica.

Só que Laura desapareceu dias atrás dessa cela hermeticamente fechada, vigiada 24 horas por câmeras e enfermeiros. Todo mundo está perplexo. E lá vai Nick Stavrianos, ajudado pelos seus mods, investigar o caso.


Um desses mods, curiosamente, é um aplicativo que produz no cérebro de Nick a sensação da presença de sua esposa Karen, que morreu tragicamente. Quando o mod está ativado, ele vê “Karen” ao seu lado, conversa com ela, consegue tocá-la. “Karen” se manifesta de modo autônomo, recorrendo ao banco-de-dados das lembranças dele, mas usando algoritmos próprios, de modo que na “companhia” dessa projeção mental ele se sente como se a mulher estivessse viva ao seu lado.

E a quarentena?

Bem, todo esse enredo iniciado acima ocorre no contexto de um fenômeno cosmológico espantoso, chamado A Bolha. No dia 15 de novembro de 2034 (portanto, trinta e três anos antes da ação do livro) o nosso sistema solar foi, em questão de minutos, envolvido por uma gigantesca bolha de escuridão, como uma esfera opaca, apagando todas as estrelas do céu. A Terra foi trancada numa quarentena cósmica. Por quê? Por quem?  Ninguém sabe.


Aconteceu e ficou por isso mesmo, com as previsíveis consequências: pânico, destruição, crise universal da ciência, proliferação desordenada de seitas místicas e de profetas do apocalipse. Durante vários anos, o caos. Depois, a poeira foi baixando. Todo mundo precisava comer, viver, trabalhar. A materialidade de vida cotidiana se impôs. E em última análise, o Sol, a Lua e todos os planetas continuavam se movendo como sempre – só as estrelas (todas as estrelas) tinham sumido. E Nick filosofa:

Quanto às estrelas... nunca tinham sido nossas, de modo que não as perdemos. Na verdade, perdemos somente a ilusão de que elas estavam próximas.

Uma das seitas religiosas mais atuantes nesse mundo futuro é a das Crianças do Abismo, formada apenas por pessoas nascidas após o aparecimento da Bolha. (Lembra um pouco o tema de Midnight Children, de Salman Rushdie, o romance sobre as crianças nascidas exatamente na virada do Dia da Independência da Índia.) A seita tem propósitos nebulosos, que não excluem o assassinato em massa.

Seguindo uma pista possível do desaparecimento de Laura (como é possível uma pessoa comum, tida inclusive como retardada mental, desaparecer de um quarto trancado e vigiado?), Nick vai parar em New Hong Kong, uma região da Austrália que hospedou a migração em massa de habitantes de Hong Kong, após uma violenta crise desta com a China, a partir de 2029.

E é lá que Nick está expandindo suas investigações, acompanhado por “Karen”, o cyberghost de sua mulher, quando eles param numa tenda num mercado ao ar livre. Uma moça está redigindo horóscopos por um preço módico. “Karen” sugere a Nick que encomende um. Ele ri e diz que nenhum deles dois acredita naquilo, e além do mais...

– Horóscopo, quando nem existem mais estrelas?!

 Ela insiste. Ele diz à moça:

– 10 de abril.

– Não é o meu horóscopo, idiota. O de Laura.

Ele pede o horóscopo para o dia 3 de agosto de 2035, dia do nascimento da mulher desaparecida. Lê as previsões, que são banais, e volta para o hotel. Mas aquilo não sai de sua cabeça. Ele sabe que “Karen” é apenas um algoritmo que mexe em suas lembranças inconscientes – e está querendo lhe dizer alguma coisa.

Ele lembra que, no prontuário médico de Laura, na clínica, ele soube que o nascimento dela foi levemente prematuro. Gestação de trinta e cinco ou trinta e oito semanas, mais ou menos. Portanto... O momento da concepção de Laura teria sido num período de uma semana em torno do dia 15 de novembro de 2034. O Dia da Bolha.

E ele pensa: "Bem, que importância tem para mim o fato de que Laura pode ter sido concebida no momento exato em que a Bolha cercou o Sistema Solar?" 

E pensa em seguida: “Para mim, não. Mas para a Seita das Crianças do Abismo, pode ter uma importância enorme”.




Acreditem: não estou dando spoiler nenhum. O resumo acima se refere às primeiras 50 páginas de Quarantine, que tem 280. Nick Stavrianos avança muito mais em suas investigações, por entre perseguições, fugas, sequestros, lavagens cerebrais, violências individuais e coletivas.

O segredo que envolve A Bolha e o desaparecimento de Laura tem a ver com o modo como a mente humana faz “colapsar” um conjunto de futuros possíveis num único presente concreto. O exemplo clássico disto é o famoso “Gato de Schrodinger” – o gato que pode estar vivo ou morto até o momento em que o cientista abre a caixa onde ele está trancado. A mente humana tem o poder de destruir universos no instante mesmo em que toma uma decisão, optando por apenas um deles.

Quarantine é uma história de aventuras, um thriller tecnológico e uma meditação cosmológica sobre os perigos da existência humana. E se a nossa espécie fosse um risco não apenas para o planeta Terra, mas para o Universo inteiro?

Greg Egan é um personagem meio low profile na FC. Já ganhou inúmeros prêmios, publicou cerca de 20 livros, eu acompanho sua carreira há mais de duas décadas, e nunca vi uma foto dele. Consta que mora em Perth (Austrália) e trabalha com informática.



Egan é um desses escritores obsessivos, que pegam uma idéia e a examinam por todos os lados, avaliam todas as consequências possíveis, as dúvidas, as objeções de alguém, respondem a essas objeções... e escrevem essa idéia num parágrafo de oito ou dez linhas, numa prosa clara e direta, condensando ali informações que dão o que pensar por uma hora inteira.

Já publiquei dois contos dele em minhas antologias, aqui no Brasil: “Mais perto” (“Closer”, trad. BT), em Contos Fantásticos de Amor e Sexo (Rio: Ímã Editorial, 2011) e “A Carícia” (“The Caress”, trad. Fábio Fernandes) em Detetives do Sobrenatural (Rio: Casa da Palavra, 2014).





Websaite sobre o livro:
http://www.gregegan.net/QUARANTINE/Quarantine.html