quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

4541) "Os Dois Papas" (16.1.2020)






Este filme de Fernando Meireles, que está à disposição no Netflix, é uma experiência curiosa de visão romanceada da realidade.

Chamo de visão romanceada aquela narração de fatos reais, ou supostamente reais, em que o autor descreve as coisas como se elas tivessem de fato acontecido, mas está inventando. Com um enorme grau de liberdade para ousar dizer o que Fulano ou Sicrano estavam pensando naquele momento.

Muitas biografias são escritas assim, e fico sempre com um pé atrás em relação ao que está sendo narrado. Na verdade, não me preocupo muito por mim, porque sempre acho (meio irresponsavelmente, talvez) que sei distinguir entre verdade-dos-fatos e invenção literária.

Me preocupo por causa de outro tipo de leitor, o que acredita em tudo que lê, ao pé da letra. Se numa biografia de Cleópatra for descrito um longo diálogo romântico entre ela e Júlio César, esse leitor imagina que esse diálogo aconteceu mesmo, tintim por tintim.

Esse diálogo foi registrado pelos historiadores da época? Está transcrito, ou pelo menos resumido, nas memórias de Júlio César?  Teve testemunhas?  Se não, é um diálogo romanceado e, por mais verossímil que pareça, não pode ser citado como prova ou indicação de coisa alguma. É ficção, mesmo que seja uma ficção plausível.

O roteirista Anthony McCarten tem uma boa experiência da arte de imaginar os pensamentos alheios – entre vários outros filmes ele escreveu Bohemian Rhapsody, a cinebiografia de Freddie Mercury, e A Teoria de Tudo, cinebiografia de Stephen Hawkings. Suas fontes neste filme atual foram vários pronunciamentos de ambos os Papas, publicados em livros e periódicos, mas as conversas pessoais entre os dois, é claro, não foram divulgadas.

Diz o escritor: “A gente especula sempre. Nossa expectativa é de que essa especulação esteja baseada nos fatos e na verdade, e que sua inspiração seja correta”.

Por outro lado, a tradição de encenar encontros históricos (reais ou fictícios) entre personagens famosos serve mais para fantasiar debates filosóficos ou pessoais do que para obedecer ao rigor historiográfico.

Tem o famoso Encontro de Descartes com Pascal (1985) do dramaturgo francês Jean-Claude Brisvile, que vi no Rio anos atrás, com (se não me engana a memória) Rubens Corrêa como Descartes e Daniel Dantas como Pascal. Há uma outra peça famosa (também filmada) envolvendo diálogos entre dois grandes físicos, que imagino serem Erwin Schrodinger e Werner Heisenberg, mas não consegui localizar.

Para ficar perto do Vaticano, temos também a clássica peça de Julio Dantas, A Ceia dos Cardeais (1902) em que três cardeais idosos (um italiano, um francês e um português) se reúnem para cear e relembrar episódios românticos da juventude.

É um gênero teatral acima de tudo, mesmo que tenha um pé firme na literatura – nos séculos 17 e 18 o “Diálogo” era uma das formas literárias mais importantes, tanto quanto o romance, que começava ainda a adquirir a proeminência que tem hoje.

Histórias assim baseiam-se totalmente na substância do que é conversado e no possível carisma dos personagens (e dos atores, claro).

Eu veria com prazer (imagino) uma peça teatral baseada no famoso diálogo entre o conquistador huno Átila, o “Flagelo de Deus”, e o Papa Leão I, no ano 452.  Reza a lenda que os hunos se dispunham a invadir Roma, e o Papa, nesse encontro a dois, perto do acampamento huno, conseguiu dissuadi-lo – não se sabe como.

O filme de Meireles tem claramente uma tremenda limitação criativa, por tratar de indivíduos ainda vivos e em posições de poder. Mesmo com todos os cuidados que o autor tomou, a imprensa comentou várias imprecisões do roteiro. O peso jornalístico, historiográfico, impede que um filme assim tenha liberdade para imaginar, a menos que se trate de detalhes pouco significativos, embora divertidos, como mostrar o argentino ensinando passos de tango ao alemão, ou os dois comendo pizza, ou assistindo juntos a final da Copa de 2014.

A Igreja Católica Romana continua sendo uma fonte permanente de rituais, conspirações, fantasias, enredos melodramáticos.

Traduzi meses atrás o romance Conclave de Robert Harris, a sair pela Editora Intrínseca. É um thriller político ambientado no Vaticano, narrando todo o processo de eleição de um Papa – processo mostrado com rapidez no filme de Meireles. Com maior liberdade de criação, por não usar personagens reais, o livro é um passeio instrutivo pelos “subterrâneos do Vaticano”, suas intrigas, suas máfias, suas armações e traições.

Um Papa honesto teria que ser alguém como o detetive Philip Marlowe, de Raymond Chandler – um indivíduo honesto num mundo corrompido, sabendo que lhe é impossível mudar esse mundo, mas decidido apenas a não se deixar corromper por ele.