quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

4545) Minhas Canções: "A Volta dos Trovões" (30.1.2020)



Esta música foi gravada por Elba Ramalho num dos melhores discos da primeira fase de sua carreira, Coração Brasileiro (1983), o disco que marcou também o seu primeiro grande estouro nos shows ao vivo. Foi a época em que o Canecão mandou ampliar suas arquibancadas laterais (reza a lenda) para comportar o público de Elba, porque os ingressos esgotavam com 15 ou 20 dias de antecedência. Não sei se é verdade; o que posso garantir é que todas as noites o show botava gente pelo ladrão, e todas as noites eu estava lá.

Acho que “A Volta dos Trovões” não estava no roteiro deste show; quem estava era “Nordeste Independente”, cuja história já contei em entrevistas até abusar. Mas “A Volta...” era para mim uma das melhores canções da minha parceria com Fuba, e uma gravação que acabou se tornando uma beleza. Sim, porque não são poucas as vezes em que um compositor vê sua música ser gravada de uma maneira completamente avessa ao que ele tinha em mente. Em casos assim acho que deve prevalecer a vontade do intérprete, que tem o direito a sua própria leitura da música. A qual, idealmente, poderá ser regravada e relida dezenas de outras vezes.

“A Volta dos Trovões” foi composta quando eu e Emilia Veras dividíamos com Fuba uma casa em Santa Teresa, perto do Largo das Neves. Muitas canções foram feitas durante o ano e meio, mais ou menos, em que moramos naquela casa da ladeira, no andar térreo, tendo no andar superior a vizinhança circunspecta e editorial de Jorge Chaves, que trabalhava na livraria Leonardo da Vinci.

A melodia, Fuba extraiu primeiro do violão, e passou meses tocando diariamente e abrindo concorrência para uma letra. É um dos casos em que o compositor faz um “monstro”, uma letra provisória e sem sentido que a gente aconchambra com o único propósito de dar apoio à melodia, para a gente cantar melhor e não ter perigo de esquecer. As frases finais das duas estrofes da música, “armas de estrondo e luz” e “a volta dos trovões” tinham suas seis sílabas cantaroladas por nós como “Gira Cascaviou”, que é do mesmo idioma de “Yolesman Crisbeles” ou de “Klaatu Barada Nitko”.

Lembro que nessa época a gente tinha na parede da sala uma foto do olindense Xirumba, mostrando índios deitados na rede. Muitas vezes as visitas lá na casa, que eram frequentes, comentavam historias de índios. Alguém nos contou que numa certa tribo, que ocupava um território muito valioso, um avião passou certo dia em voo rasante e jogou lá de cima, bem no centro da aldeia, várias sacas de açúcar, que estouraram, é claro, ao se chocar com o chão. Segundo essa versão, índios adoram açúcar, e meia hora depois aquilo estava fervilhando com a presença atarefada de todos os indígenas ao alcance da voz, recolhendo todo o açúcar possível.

E então o avião fez o seu segundo sobrevoo, exatamente na mesma rota, e ao passar sobre a aldeia jogou dinamite.

É interessante o choque entre civilizações quando existe não apenas um desnível tecnológico, mas uma irredutibilidade conceitual. Lembro o exemplo do cacique maia que derrubou em batalha o espanhol Pedro de Alvarado e, tendo abatido o cavalo do conquistador, deu-lhe as costas, imaginando (por não serem os cavalos conhecidos no Peru de então) que os dois eram uma criatura só; Alvarado ergueu-se e o matou.

A guerra dos maias contra a tecnologia armamentista dos brancos equivaleria a que?  Pensei: equivaleria a uma hipotética guerra desses brancos contra alienígenas (em vez de indígenas), uma luta já tantas vezes descrita na ficção científica menos ufanista. Não é muito difícil a um escritor de space opera imaginar “matadeiras” high tech que deixem no chinelo as pretensões  belicosas da Humanidade.

Reconheço que na letra da canção não ficou muito claro, mas a primeira visão da letra foi supor uma lenda cíclica, de algum povo nativo e de baixa tecnologia: uma lenda de que um dia, no futuro, gente armada descerá do céu sobre eles, com armas de estrondo e luz, e os derrotará para sempre, ou os dizimará, ou os escravizará.

Isso acontece, os brancos massacram os índios na parte 1 da música. Na parte 2, que começa com “Onça negra caminhou na trilha... vê-se a ocupação da terra dos índios pelos brancos, que não são muito mais gentis do que os “genocidas” do romance de Thomas M. Disch. E os remanescentes dos índios, escondidos em algum desvão da paisagem agro-terraformada, sonham com o momento em que a morte voltará a descer do céu, com ribombos e ofuscação – sobre os moradores atuais.

Foi, pelo que lembro, uma das faixas mais bem produzidas do disco, que é todo muito bom. O arranjo foi de César Camargo Mariano, que chamou os grupos Boca Livre e Céu da Boca para fazerem um vocal ao estilo de um canto indígena.

Do ponto de vista da técnica empregada, foi um desses casos em que a gente pega uma melodia 100% pronta e vai encaixando as sílabas da letra como quem encaixa ladrilhos num mural: de um em um.


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A VOLTA DOS TROVÕES  (Elba Ramalho)
(Braulio Tavares e Fuba)


Um tambor amedrontou a mata
quando o dia clareou.
Na clareira respondeu a flauta
um aviso de terror.

Um cacique descobriu pegadas
de um estranho caçador.
Uma tribo foi exterminada
onde o rio avermelhou.

Antes das chuvas,
quando um trovão
tombou das estrelas
e a selva escura
viu brilhar nas mãos de um deus
armas de estrondo e luz...
Como avisou a lenda:
armas de estrondo e luz.


2
Onça negra caminhou nas cinzas
da fogueira que passou.
Gavião voando contra a brisa
viu a mancha do trator.

Sobre o chão onde os pajés dançavam
uma vila se formou.
Todo dia longe ressoava
o machado lenhador.

Dentro da selva
pulsam os corações
dos guerreiros,
esperando a noite
em que os astros vão trazer
a volta dos trovões...
Como promete a lenda:
a volta dos trovões.