quarta-feira, 31 de maio de 2017

4239) O Desespero Precoce (31.5.2017)



Existe um tipo especial de tragédia que nos faz sofrer ainda mais vividamente, seja uma tragédia da ficção ou uma da vida real. É aquela tragédia que só aconteceu por um triz, que teve tudo (ou pelo menos uma grande possibilidade) de ser evitada, mas que por um pequeno detalhe acabou acontecendo.

Diferentemente daquelas tragédias gregas em que o Universo e o Olimpo em peso parecem conspirar para a infelicidade de um personagem, estas outras tragédias doem ainda mais porque se devem a uma besteira, um detalhe, àquilo que o jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa, chamava “o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos”.

O telefone tocou com a mensagem salvadora, mas não havia ninguém para atender. O socorro chegou, mas não deu mais tempo. Um parafuso qualquer se soltou, e o terrível acidente aconteceu. Uma frase foi ouvida casualmente, e daí em diante vidas foram desgraçadas. A pessoa perdeu um voo por alguns minutos, e foi reencaminhada para o voo fatal. São tantas as possibilidades.

Uma destas, que lembro de vez em quando, é a que chamo de O Desespero Precoce. É quando em função de um problema grave ou de uma catástrofe o personagem se deixa abater por ela, sem saber que ela poderia ser cancelada se ele pelo menos tivesse tido, diante desse problema inicial, um pouco mais de paciência, de serenidade, de cabeça fria.

Um exemplo clássico é o do Romeu e Julieta de Shakespeare. Frei Lourenço, querendo ajudar na fuga dos jovens, sugere a Julieta tomar um narcótico e ser dada como morta, para despertar depois de 24 horas. Fazem isso. Julieta é pranteada, e colocada no sepulcro da família, enquanto Frei Lourenço manda alguém avisar Romeu do plano. O aviso não chega a Romeu: chega a notícia (de conhecimento geral) de que Julieta morreu. Quando ele vai ao sepulcro e a vê em estado meio cataléptico, ele se desespera e se mata.

Esse é o elemento trágico: o Desespero Precoce. Se Romeu tivesse ficado ali se lamentando durante mais umas horinhas, a namorada iria despertar, lépida e fagueira, e os dois seriam felizes para sempre. Mas Romeu reage apressadamente ao primeiro sinal negativo do Destino, e se mata. Fico imaginando um milhão de platéias ansiosas erguendo milhões de braços para o palco e gritando: “Não se mate! Ela está viva!”. O Destino é um dramaturgo cruel.

Há um versinho atribuído a Piet Hein (1905-1996) que diz (o original é em  dinamarquês; achei uma versão em inglês na web):

Losing one glove is certainly painful, 
but nothing compared to the pain 
of losing one, throwing away the other, 
and finding the first one again.

Conheço esta quadra desde pequeno, sob esta forma (muito bem traduzida, aliás):

Perder uma luva é uma dor profunda,
mas não se compara à dor pungente,
de perder essa luva, jogar fora a segunda,
e encontrar a primeira novamente.

É um mito persistente em nossa memória cultural.

Reza outra lenda que quando Teseu partiu para enfrentar o Minotauro no Labirinto de Creta, seu navio usava velas negras; ele prometeu ao seu pai, o rei Egeu, que se voltasse vitorioso as trocaria por velas brancas. Teseu derrotou o Minotauro, mas na comemoração ele e os marinheiros devem ter tomado tanta cerveja que esqueceram de trocar as velas. O rei, ao avistar de longe o navio se aproximando com velas pretas, teve o famoso acesso de Desespero Precoce e jogou-se no mar, morrendo afogado. (Ariano Suassuna usou uma variante deste episódio em seu romance Fernando e Isaura, de 1956).

Penso nessas coisas sempre que leio alguma coisa de ou sobre Walter Benjamin (1892-1940), um filósofo que conheço pouco mas que escreveu textos memoráveis sobre literatura. Benjamin era judeu, e durante a II Guerra tentou fugir da França invadida, para escapar à perseguição nazista. Chegou à Catalunha, de onde esperava seguir para Portugal e dali para os EUA.

Benjamin foi detido na fronteira com um grupo de fugitivos, e ali recebeu a péssima notícia de que o governo espanhol iria repatriar todos eles de volta para a França, para serem entregues aos nazistas. Abatido, exausto, ele se suicidou na noite de 25 de setembro. No dia seguinte, no meio do tumulto da guerra, o grupo de que fazia parte teve seu acesso liberado, e chegou a Lisboa no dia 30.

Romeu só faz falta a Julieta, um rei grego a mais não faz falta a ninguém, mas perder um autor como Walter Benjamin aos 48 anos de idade é algo pra fazer a gente sentir na carne a tragédia do Desespero Precoce. Dá vontade de morrer também.

Existe remédio contra essa síndrome? De que maneira reagir ao primeiro sinal de que não há mais esperanças, de que está tudo acabado? O único contraexemplo que me ocorre é o de Anthony Burgess, o autor de Laranja Mecânica.

O episódio é meio controvertido, porque ele costumava fantasiar muito a própria biografia. Mas consta que Burgess trabalhava no Serviço Colonial inglês na Malásia, e em 1959 foi dispensado, ao receber um diagnóstico de câncer terminal. O escritor ficou apavorado, entre outras coisas pela perspectiva de deixar a família passando necessidades. E danou-se a trabalhar.

Reza a lenda que Burgess escreveu cinco romances ao longo do ano de 1960, e em 1964 tinha concluído um total de onze livros, entre eles o famoso A Clockwork Orange, e enquanto isso nada de câncer. Ele podia ter pulado de um prédio, não é mesmo? Mas ao invés de ceder ao Desespero Precoce o nosso amigo sentou no teclado e mandou brasa. Só foi morrer, coitado, em 1993, mais de trinta anos depois da sentença de morte proferida pela medicina.

Seu caso não é o único, pois grande parte da obra do chileno Roberto Bolaño, o autor de Os Detetives Selvagens e de 2666, foi escrita após o diagnóstico de uma doença grave, da qual acabou morrendo mesmo, mas bem depois do previsto, e não sem produzir uma quantidade enorme de livros para garantir o leite das crianças.

Não sei bem como batizar esse impulso; talvez a gente possa chamá-lo de Teimosia Esperançosa, ou a Persistência Obstinada. Não salva a vida de ninguém, mas dá, para um jogo que parecia perdido, a chance de ir para uma prorrogação. E numa prorrogação tudo pode acontecer, inclusive o jogo não acabar.







domingo, 28 de maio de 2017

4238) O Roteirista do Mundo (28.5.2017)



Uma coincidência pode ser vista como uma rima. A repetição de algo para criar uma harmonia. Isto, no entanto, nos obrigaria a postular a existência de uma intenção por trás do mundo, a presença de uma Inteligência Superior planejando e executando essas rimas.

Se não existe essa tal Inteligência Superior (e esta é minha hipótese-de-trabalho até hoje) então as coincidências são efeitos indesejáveis, são defeitos. Como a repetição de um som numa frase em prosa, tornando-a desgraciosa. (E levando as pessoas pouco inteligentes a fazer aquele mais idiota dos comentários: “Ih, rimou!”).

Se existe aquilo que Rômulo Azevedo chama de O Roteirista do Mundo, ele de vez em quando fica meio preguiçoso (como todo roteirista, aliás) e ao invés de procurar variar o repertório fica repetindo uma coisa que acabou de escrever, por mera preguiça.

Você vai andando na rua e vê uma loja chamada Armarinho Nossa Senhora de Fátima. Esquece logo. Aí, cinco minutos depois, compra um jornal naquela mesma rua, abre, e vê uma notícia sobre o turismo no santuário de Fátima, em Portugal.

É uma informação tão anódina, com um nome tão comum em nossa cultura, que a gente só percebe por causa da proximidade. Se fosse meia hora depois, talvez a gente nem se tocasse que tinha visto a mesma palavra duas vezes num só dia.

Isso acontece muito durante leituras que trazem uma grande carga de informação (muitos nomes, muitos fatos, etc.) e sobre um assunto que nos interessa, ou seja, que marca de maneira mais funda essas informações em nossa memória imediata – e a deixam mais atenta para possíveis repetições desse nome, que se não fosse assim passariam despercebidas.

Ontem à noite eu estava lendo Eyes Wide Open, livro de Frederic Raphael onde ele conta como escreveu com Stanley Kubrick o roteiro do filme Eyes Wide Shut (“De olhos bem fechados”), com Tom Cruise e Nicole Kidman.

No filme tem a cena em que Cruise entra de penetra numa orgia de milionários porque fica sabendo por acaso a palavra-senha de entrada. Na novela original de Arthur Schnitzler (Traumnovelle, “Uma novela de sonho”), essa palavra é “Dinamarca”.

E Frederic Raphael relata um diálogo com Kubrick em que ele aponta isto como uma intencionalidade do autor (ou um deslize freudiano), porque a esposa do personagem do livro tinha confessado ao marido um episódio de quase adultério com um militar da Dinamarca.

No livro, essa senha foi mudada por Kubrick/Raphael para “Fidelio”, e eu pensei que foi sem dúvida como alusão à infidelidade conjugal.

Isso foi ontem. E hoje de manhã eu peguei um livro de Philip K. Dick e cheguei a um trecho onde ele se refere a pessoas que “fingiam ter desprezo por televisão e por qualquer coisa que aparecesse na telinha, desde números de palhaços até a Ópera de Viena apresentando o Fidelio de Beethoven.”

Coincidência? Sim, porque não me lembro de ter ouvido falar nessa ópera (ou nessa palavra, simplesmente) nos últimos seis meses, pelo menos, e agora vêm duas referências em poucas horas, em dois livros totalmente não-relacionados entre si.

É pouco? Tem mais.  Na mesma leitura do livro de Raphael, ontem à noite, li o trecho onde ele comenta que Kubrick, ao convidá-lo para escrever o roteiro, exigiu segredo absoluto, pois não queria que ninguém soubesse que ele estava adaptando o livro de Schnitzler, projeto pessoal que há alguns anos já tinha vazado para a imprensa.

Raphael diz que obedeceu, mas não podia evitar comentários de outras pessoas. Conversando com um amigo seu, chamado Stanley Baron, o amigo perguntou em que projeto ele estava trabalhando no momento. Raphael limitou-se a dizer que era uma história ambientada em Viena. E Baron perguntou: “Será Uma novela de sonho, de Schnitzler?”.

Ele diz que a única outra pessoa que adivinhou a natureza do projeto foi o diretor Stanley Donen (para quem Raphael escrevera o roteiro de Two For the Road), quando soube que Raphael estava trabalhando para Kubrick. Ele sugeriu essa possibilidade porque já sabia há muitos anos – antes mesmo dos dois se conhecerem – que Kubrick tinha interesse por aquele livro.

E Raphael diz:

E assim aconteceu que as únicas pessoas (além da minha esposa Sylvia) que sabiam o segredo também se chamavam Stanley.

Essa repetição de nomes próprios já dá uma boa coincidência, não é mesmo?

Acontece que justamente nesse trecho eu larguei o livro de F. Raphael e peguei, de uma pilha que tinha ao lado, uma coisa completamente não-relacionada para ler. (Eu costumo fazer isso, ler meia hora de cada livro e sair pulando por assuntos completamente diferentes.)

Peguei um volume de contos de Vladimir Nabokov para prosseguir na leitura do conto “The Vane Sisters”, um conto meio fantástico. E a certa altura o narrador do conto relata uma discussão que tem com uma amiga por ter esnobado um conhecido dela, chamado Corcoran, durante uma festa.

Diz Nabokov:

(Ela me disse) que Corcoran tinha salvo de afogamento, em dois oceanos diferentes, dois homens diferentes, que por uma irrelevante coincidência também se chamavam Corcoran.

Ou seja, meia hora depois de ler sobre a coincidência dos três Stanleys, leio em outro livro a coincidência sobre os três Corcorans.

Não, não existe O Roteirista do Mundo: o que existe talvez é O Cordelista do Mundo, e ele repete os efeitos de 3 em 3, como quem está rimando uma sextilha.








quarta-feira, 24 de maio de 2017

4237) "Suje-se gordo!" (24.5.2017)





(Machado, por Fernão Campos)


É um daqueles contos-não-contos de Machado de Assis, onde ele (ou um “eu” pretextual) conta o que lhe foi contado por um amigo, no intervalo de uma peça chamada A Sentença ou o Tribunal do Júri. Esse amigo narrador diz-lhe que já presidiu júris no passado e que não gostou da experiência, citando o preceito do Evangelho: “Não queirais julgar para que não sejais julgados”.

O narrador diz, com saborosos detalhes, o que foi o julgamento de um rapaz, “um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel”. Ele comenta a atuação do advogado, do promotor, lembra que o acusado admitia o crime, apenas atribuía a uma terceira pessoa, que não quis nomear, a iniciativa e o benefício do delito, para “acudir a uma necessidade urgente”.

E conta que no júri havia um sujeito ruivo, chamado Lopes, que “parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente”. O júri condena o rapaz por onze votos contra um, mas mesmo assim o Lopes continua inquieto, “e disse que seria um ato de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos”. Não se corre tal risco, com um placar de 11x1, mas o ruivo Lopes continua indócil, e brada:

– O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!

O rapaz é condenado, o tempo vai se passando, e aquela frase não sai da memória do narrador. Suje-se gordo!  A princípio ele fica embasbacado, mas logo explica a expressão: “era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada”.

E muito tempo depois nosso narrador está de novo num júri, e quem se senta no banco dos réus, agora mais magro, mas igualmente ruivo? O mesmíssimo Lopes de antes, portando o mesmo sobrenome, sendo agora acusado de “uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis”, o que nem um pouco lhe tira o sossego:

Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.

E nesse momento, vendo as esmagadoras provas acumuladas (inclusive “uma carta de Lopes que fazia evidente o crime”) o narrador é assaltado pela lembrança da famosa frase.

“Suje-se gordo!”. Vi que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente a ação. “Suje-se gordo!”. Queria dizer que um homem não se devia levar a um ato daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!

E o narrador machadiano, com a melancolia de sempre, relata que nem todos viram com os olhos dele os autos e os fatos: “Votaram comigo dous jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua”.

Um é condenado por um desfalque de duzentos mil réis, outro é absolvido por um golpe de cento e dez contos. Parece familiar?

A Justiça, ao contrário do que se diz, não é cega: seus olhos são tão sadios e tão afinados com a vontade que só enxergam o que querem enxergar. O próprio narrador do conto reconhece que qualquer coisa pode ser interpretada de modo diferente, dependendo de que lado do muro estejamos.

[O rapaz dos duzentos mil réis] disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena: o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.

(...)

[O Lopes] ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros. Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz de espírito.

De fato, não importa muito o que esteja gravado nos autos ou que seja alegado por um réu. A sentença que proferimos é uma questão de identificação ou repulsa à primeira vista. Lemos ali o que já estávamos prontos para ler.

Nosso atavismo emocional e social nos empurra para o gesto instintivo de condenar uns e absolver outros, e depois dessa decisão tudo se resume a ter alguma retórica inventadora de motivos. O ruivo Lopes estava mais magro, anos depois, mas isso não o impediu de sujar-se gordo, com “a grossura da soma”, e impor respeito ao júri.

Ia esquecendo: o conto é de Relíquias de Casa Velha, de 1906.








domingo, 21 de maio de 2017

4236) "No tempo de Almirante" (21.5.2017)



Poucos caras são tão interessantes na Música Popular Brasileira da primeira metade do século 20 quanto Almirante (1908-1980), que foi cantor, compositor, produtor musical, redator e produtor de programas de rádio, grande pesquisador. Chamava-se Henrique Foreis Domingues; eu sempre pronunciava “Forêis” esse sobrenome dele, mas mudei a pronúncia ao ver esse trecho de uma carta em verso escrita para ele por Aloísio de Oliveira, então (em 1943) morando nos EUA:

(...)
Se eu soubesse mais cedo
que pra você escrever
tivesse que aparecer
um caso de compaixão
que falasse ao coração
do meu amigo Foreis,
eu já teria arranjado
teria falsificado
uma porção de Josués.

Aloísio fazia parte do Bando da Lua e estava nos EUA acompanhando Carmen Miranda, uma das grandes amigas e parceiras musicais de Almirante. Pouca coisa que aconteceu de importante na música radiofônica das décadas de 1930 em diante não teve Almirante por perto. Foi também grande parceiro (e depois biógrafo) de Noel Rosa, seu companheiro do famoso “Bando de Tangarás”.

Em 1930 Almirante compôs (com Homero Dornelas) e gravou o samba “Na Pavuna” – uma gravação histórica. Ao que se diz, foi a primeira música gravada no Brasil utilizando as percussões típicas do samba (tamborim, surdo, pandeiro, cuíca, etc.).  Nenhum produtor musical ou técnico de som da época admitia que esses instrumentos fizessem acompanhamento – era só orquestra ou instrumentação “delicada”. “Na Pavuna” foi um sucesso fenomenal, tão importante quanto o primeiro samba gravado, o “Pelo telefone” de Donga e outros.

“Na Pavuna” (gravação original):

Outros sucessos gravados por Almirante fazem parte de qualquer antologia do samba ou da marchinha brasileira:

“O Orvalho Vem Caindo” (Noel Rosa e Kid Pepe)

“Touradas em Madri” (Braguinha e Alberto Ribeiro):

Gavião Calçudo” (Pixinguinha e Cícero de Almeida):

Sem falar nesta marchinha, que todo torcedor do Treze já cantou:

Marcha do Grande Galo” (Lamartine Babo e Paulo Barbosa):

A biografia No tempo de Almirante – uma história do Rádio e da MPB, de Sérgio Cabral, Pai (Ed. Francisco Alves, 1990) me chegou pelas mãos do parceiro musical Alfredo Del-Penho. Traz em 400 páginas um imenso material sobre esse personagem bem humorado, humano, incansável, que era chamado “A Mais Alta Patente do Rádio Brasileiro”. Almirante surgiu e cresceu com o rádio, e a ele, talvez mais do que à música, dedicou sua vida inteira, trabalhando em todas as grandes emissoras da época.

Interatividade é uma palavra que muita gente conheceu depois da Internet, mas era uma das grandes armas do rádio, que pedia insistentemente colaborações, críticas, informações, participação de todo tipo dos seus ouvintes, através do correio. Ouvintes enviavam letras, partituras musicais, recortes de jornais e revistas, para terem seus nomes citados nos programas que acompanhavam fielmente.

Almirante reuniu um espantoso arquivo de informações mandadas do Brasil inteiro para seus programas de variedades, como “Curiosidades Musicais”. Ainda em vida, ele repassou esse arquivo para o Governo Estadual, que criou com este material o atual Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro.

Numa carta de 1940 a Celestino Silveira (pág. 192-193 do livro), Almirante explica essas suas décadas de atividade:

(...) Comecei, então, a fazer o programa sobre todos os assuntos. O título a tudo permitia. Como a Nacional é uma estação de grande penetração  no nosso interior, passei a pedir colaborações dos ouvintes. Graças a isso, pude mostrar pelo Rádio belezas musicais do Brasil inteiramente desconhecidas, coisas que ninguém até hoje teve a iniciativa de fazer com a insistência com que eu faço. Foi assim que consegui fazer irradiar temas folclóricos que nunca tinham sido mostrados pelo Rádio. Cito, como exemplo, as cantigas de roda dos estados, pregões do Rio e dos estados, melodias de trabalho, cantigas e rezas para defuntos, rezas para chamar chuva, melodias de Natal e de Reis, cantigas de cegos e muitas outras. (...) Todos os meus colaboradores, desde o que me enviou a cantiga mais valiosa, até o que me informou o fato mais insignificante, sempre tiveram os seus nomes citados no programa.

Os programas sobre assuntos como o dos instrumentos exóticos (já feito) e o de pios de caça e o da música dos ruídos (ambos ainda por acabar) me fazem perder um tempo inacreditável. Basta que eu diga que o dos instrumentos rústicos tomou-me o ano inteiro. Um ano a fio reunindo elementos, um ano convocando instrumentistas curiosos, tocadores de violino de uma corda só, de flautas e clarinetas de bambu, de folhas de árvore, de lápis nos dentes e os legítimos berimbaus de cuia.

Dessa curiosidade, aliada à possibilidade de recolher e de divulgar, surgiu uma das mais interessantes amizades e parcerias de Almirante – com Luís da Câmara Cascudo, o grande folclorista natalense. À primeira vista parece uma dupla improvável, o cantor de sambas e o etnólogo livresco. Mas os dois pertenciam à mesma espécie, a do pesquisador autodidata, que recolhe informações, estuda, vasculha, pergunta, assedia, junta material, enche estantes e mais estantes de informações que não interessam a ninguém da sua época.

Cascudo, em suas raras idas ao Rio, ia ver no auditório os programas de Almirante. De volta a Natal, mandava-lhe cartas como esta, de 1964 (pág. 338-339):

(...) Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras:
a)      Uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários jagunços do meu tope e feição provinciana.
b)      Uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. 
Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha?
Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil.

O rádio o tornou uma figura íntima do Brasil inteiro, uma referência de cultura popular como a televisão transformou, décadas depois, figuras como Rolando Boldrin ou Téo Azevedo. Estudiosos como Renato Almeida escreviam para consultá-lo, como nesta carta de 1940 (pág. 196):

Uma coisa que quero lhe perguntar: o que se chama ‘samba de partido alto’? E, mais uma pergunta: o choro tem três partes, quais são elas? Desculpe essas caceteações, mas você é uma das raras pessoas a quem a gente pode se dirigir no Brasil. E um pedido final: você pode mandar-me aquele sambinha da Penha, que cantou no programa de ontem? E, com os votos de um felicíssimo 1940, lhe mando um abraço muito agradecido e afetuoso.

E até um romancista do porte de Érico Verissimo, fazendo pesquisa para um romance de época, lhe escrevia em 1950 (pág. 258-259):

Tomo a liberdade de pedir-lhe uma série de informações de que estou necessitado para o segundo volume do meu romance O Tempo e o Vento – “O Retrato” – e que cobrirá o período entre 1909 e 1945.
a)      Pode dar-me o nome de algumas músicas de dança mais populares entre 1910 e 1915?
b)      E das modinhas, lundus, etc. do mesmo período?
c)       Quais os discos mais populares da famosa Casa Édison, do Rio de Janeiro?
d)      Pode fornecer-me a letra da canção “Talento e formosura”?
e)      E da cançoneta cujo estribilho é “Varre varre, minha vassourinha”?
f)       Quando começou a voga de “O luar do Sertão”?
g)      E a de “Caraboo”?

Como você compreenderá, essas coisas – danças, canções, etc. – ajudam a criar atmosfera e a marcar o tempo. Como um pobre pagamento por essa sua colaboração, estou lhe remetendo um exemplar do primeiro volume de O Tempo e o Vento – com um abraço do seu fã Érico Verissimo.

Almirante entrou na minha vida quando eu tinha cerca de 8 anos, mas não foi através da música. Foi através do seu programa radiofônico de histórias de assombração, “Incrível! Fantástico! Extraordinário!” – mas este é um assunto ao qual voltarei noutro dia.








quarta-feira, 17 de maio de 2017

4235) As invenções de Kafka (17.5.2017)



Uma biografia recente de Franz Kafka, escrita por Reiner Stach, tem o interessante título de Isto é Kafka? 99 Descobertas. Quando parecia que tudo já havia sido escrito sobre o profeta do mundo irracional do século 20, parece que Stach conseguiu desencavar um número respeitável de fatos a seu respeito.

Não devemos esquecer, também, que por motivos burocráticos e jurídicos uma parte considerável do que Kafka escreveu continua (pasmem!) inédita até hoje. Papéis que ele deixou a cargo de seu amigo Max Brod não foram publicados porque há uma kafkeana batalha judicial em torno deles. Já escrevi a respeito aqui, em “O moído de Kafka”:


Um artigo em The Paris Review sobre a biografia de Stach traz um comentário interessante. O biógrafo teria levantado informações sobre duas “invenções” de Kafka, duas idéias que ele teve para ganhar dinheiro, que explorou em conversas e cartas com amigos, mas que, por um motivo ou outro, não prosperaram.

A primeira dessas idéias ocorreu a Kafka e seu amigo Max Brod entre agosto e setembro de 1911, quando os dois viajavam pela Europa. Kafka pensou em criar um guia de viagem intitulado Billig (“Barato”), dando dicas aos viajantes a respeito de hotéis, transportes, restaurantes, pontos turísticos, etc., que era possível percorrer sem gastar muito dinheiro.

Magino eu que em 1911 fazer turismo na Europa era coisa de rico, aqueles ingleses ou alemães que viajavam de trem ou de navio levando quinze malas de roupas, como a gente vê em Morte em Veneza, nos filmes de James Ivory ou nos livros de Henry James. A idéia dos dois amigos era estender esse privilégio aos menos abonados.

Há um documento, quase todo na caligrafia de Brod, mas com a colaboração de Kafka, em papel timbrado de um hotel em Lugano (Suíça), escrito em setembro de 1911, e diz:

(...) Nossa era tão democrática já proporciona todas as condições para viagens fáceis para qualquer lugar, mas isto é algo que passa praticamente despercebido. Nossa tarefa é coletar estas informações a torná-las conhecidas de modo sistemático. (...)  Muito pouco disto aparece nos guias de viagens. (...) Nós nos dirigimos àqueles que consideram viajar algo muito caro, seja por equívoco, seja por má informação, e que se mantêm em regiões próximas de suas próprias cidades (que têm a sua beleza, mas já são demasiado conhecidas). Queremos fornecer informações sobre outros destinos que custam o mesmo que essas estações de verão, possivelmente incluindo também custos de transporte.

Eles dão algumas dicas sobre a organização dos seus possíveis Guias:

Nada de geografia minuciosa; apenas as rotas. (...) Indicamos apenas um hotel, e outros em ordem descendente, para o caso de aquele estar lotado. (...) [Na caligrafia de Kafka:] Não é para viajantes nem muito rápidos nem muito lentos, mas para um grupo mediano. Desvios são mais fáceis, uma vez que é sempre possível fazer adições num plano bastante preciso. (...)

Outrs dicas registradas pelos dois, em anotações rápidas:

Não temer a moeda errada. Concertos gratuitos. Dias mais baratos (p. ex., galerias de arte) no fim de viagens mais caras. Onde conseguir ingressos grátis como as pessoas locais. Navios a vapor, segunda classe. Não temer a terceira classe na Itália. Cor local. Reforma dos mapas do país e da cidade?

Era um projeto embrionário, ainda na fase de rascunho, como se vê – aquelas páginas em que a gente vai anotando tudo que se conversa, todas as pequenas idéias nascidas da troca de impressões, e que podem depois ser desenvolvidas ou não.

Infelizmente, o projeto de Brod e Kafka – que seria algo como um Europa a 10 dólares por dia daquela época – nunca se concretizou.

A segunda invenção não chega a ser invenção, apenas a anotação rápida de uma idéia; mas seu interesse é por ser algo um pouco mais ficção científica. Em 1913, Kafka teve a idéia da criação de um mecanismo reunindo duas tecnologias que bem ou mal já existiam: o telefone e a máquina de ditar (uma espécie de gravador), também chamada “parlógrafo”.

O escritor certamente teve sua curiosidade despertada devido ao fato de sua noiva na época, Felicia Bauer, trabalhar na filial de Berlim da empresa Carl Lindstrom AG, “onde ela estava encarregada da divulgação do parlógrafo, uma máquina de ditar. Bauer inclusive apareceu num filme de propaganda que Lindstrom produziu e distribuiu.”  No filme, ela é vista durante alguns segundos manipulando um parlógrafo e uma máquina de escrever.

Dizia Franz, escrevendo par a noiva:

A invenção de um cruzamento entre o telefone e o parlógrafo certamente não deve ser difícil. Tenho certeza que depois de amanhã você vai me comunicar que o projeto já alcançou sucesso. Claro que isto teria um impacto enorme nos escritórios editoriais, agências de notícias, etc.

Mais difícil, mas também possível, sem dúvida, seria uma combinação entre o gramofone e o telefone. Mais difícil porque a gente não entende direito o que diz um gramofone, e um parlógrafo não pode pedir a ele que fale com mais clareza. Uma combinação entre o gramofone e o telefone também não teria grande significação de um modo geral, mas para pessoas como eu, que receiam o telefone, seria um alívio. O problema é que pessoas como eu temem também o gramofone, de modo que não seria uma grande ajuda.

A propósito, seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si. Mas, minha querida, a combinação do parlógrafo com o telefone tem absolutamente que ser inventada.

O artigo informa que isto de fato já tinha acontecido, com o “Telefonógrafo” patenteado por Ernest O. Kumberg em 1900, invenção que não foi pra frente por ser cara e trabalhosa.

Aqui, o artigo da Paris Review:


Mas para quem lê Kafka fica uma pequena nostalgia de imaginar como ele poderia ter explorado literariamente, num dos seus microcontos de página e meia, esta preciosa idéia como ponto de partida:


(...) seria uma ótima idéia se um parlógrafo pudesse ir ao telefone em Berlim, ligar para um gramofone em Praga, e os dois tivessem uma pequena conversa entre si.







sábado, 13 de maio de 2017

4234) Ser mãe (13.5.2017)



(Ela, "a Marquesa")

Ser mãe é ter na parede um quadro com a foto do Padre Cícero e enfiar na moldura, num ritual protetor, dezenas de retratos 3x4 de pessoas conhecidas, parentes ou não, crentes ou não.

Ser mãe é gostar de escutar Agostinho dos Santos, Capiba, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Roberto Carlos, Gal Costa, Altemar Dutra.

Ser mãe é botar água-pra-café no fogo às duas da manhã.

Ser mãe é ler escondido as cartas que o filho recebe das namoradas e dias depois abordar um assunto qualquer como se aquilo tivesse caído do céu no seu colo.

Ser mãe é dizer pro malcriado: “Ah, tá prendendo o choro? Pois vai apanhar até chorar”, e dizer depois: “Agora vai apanhar até parar”.

Ser mãe é contar a história de quando era garota na fazenda, e a porteira do curral caiu por cima dela enterrando-a na lama, e as vacas passaram por cima, e quando arrancaram a porteira e a tiraram dali ela estava inteira e viva, mas passou uma semana tirando terra do caroço do olho.

Ser mãe é receber um poema pelo correio e responder em versos.

Ser mãe é gostar de ler romances de capa-e-espada de Michel Zevaco, e livros sobre discos voadores, os Exilados de Capela e a vida no planeta Marte.

Ser mãe é iniciar a noite com um olho na novela e outro na sopa no fogão.

Ser mãe é passar alguns anos da vida rodando de ônibus por cidades pequenas do Nordeste vendendo e doando botijões de uma infusão vegetal que é tiro-e-queda contra o câncer.

Ser mãe é perder uma hora antes de ir dormir amarrando um pano com Neocid no cabelo de um sujeito que se recusa a cortá-lo porque o cabelo faz parte da revolução mundial.

Ser mãe é ganhar de presente uma garrafa de Ballantine, agradecer, guardar no armário de bebidas, e ir lá dentro tomar uma dose de Natu Nobilis.

Ser mãe é repetir uma recomendação qualquer nunca menos de três ou quatro vezes, não importa quantas vezes o resignado interlocutor diga: “Sim, eu já sei”.

Ser mãe é saber preparar orelha-de-pau, doce de leite com cravo, imbuzada, gemada com farinha e açúcar, pão torrado com nata.

Ser mãe é ir pro Céu e não voltar pra puxar o pé do filho ateu durante o sono (conforme ameaçado), porque o bichinho está tão cansado, passou a noite escrevendo aquelas coisas que só ele entende.







terça-feira, 9 de maio de 2017

4233) O Mote Flutuante no repente cubano (9.5.2017)




Poucas coisas são tão universais na poesia popular das Américas quanto o esquema de rima da décima. A boa e velha décima dos cantadores de viola nordestinos não é só deles. É de toda a América hispânica.

Já vi exemplos de canções no formato de décimas na poesia da Argentina, do Chile, do Peru, do Uruguai, de todo canto.

O exemplo que sempre cito é a canção “Volver a los 17”, gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa.

Gravação original:

Para que fique bem claro: a décima que falo é a estrofe de dez versos onde o primeiro rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo com o décimo, e o oitavo com o nono. Ou, de acordo com a notação tradicional, onde cada letra representa a posição de uma das rimas: A B B A A C C D D C.

É a décima do Século de Ouro da poesia espanhola (entre os séculos 16 e 17). É a mesma décima popularizada no Brasil por Gregório de Matos (1636-1696), o “Boca do Inferno” da Bahia.

Entre nós, a décima serve entre outras coisas para glosar motes, que são versos fornecidos pelo público. O mais comum é que o mote seja de 1 ou de 2 linhas, que irão constituir o final da décima (a linha 10 ou as linhas 9 e 10, respectivamente). Ou seja: o público sugere um final para a décima, e a gente faz os versos restantes, concluindo com o mote que o público forneceu.

Em Cuba os poetas chamam o mote de “pie forzado”, que quer dizer “pé forçado”, ou “pé obrigatório”. Tanto lá como aqui, “pé” é sinônimo de “linha”. Nossos cantadores cantam o “8 pés a quadrão” e o “10 pés a quadrão”, que são estrofes, respectivamente, de oito e de dez linhas.

“Pie forzado” = “linha obrigatória”. É o mote: a linha (ou linhas) que o público fornece, e que o cantador é forçado a incluir no seu improviso.

Vi recentemente uma menção a uma variante curiosa, algo que já tinha me ocorrido usar. Eles o chamam de “pie forzado móvil”, e que seria entre nós algo como “mote flutuante”, sem posição fixa, ou pelo menos, sem a mesma posição o tempo todo.

Suponhamos que o público dá um mote de uma linha: “nas quebradas do Sertão”. Ambos os contendores terão que incluir essa linha em suas décimas improvisadas, mas cada vez numa posição mais à frente.

O primeiro cantador usa o mote como a primeira linha, e diz:

Nas quebradas do sertão
eu vejo tanto vaqueiro
montar cavalo ligeiro
pra perseguir barbatão;
vejo vaqueiro e patrão
chorando a perda do gado
quando o poço está secado
pelo sol que tudo mata,
e a vida se torna ingrata
pro dono e pro empregado.

O segundo deve fazer sua décima colocando o “mote flutuante” na segunda linha:

Mas eu vejo a alegria
nas quebradas do Sertão
quando pipoca o trovão
por cima da serrania;
cai a chuva, quente ou fria,
mesmo assim abençoada
enquanto o “pai da coalhada”
estremece a serra inteira,
e o rio faz cachoeira
pela barranca inclinada.

O primeiro cantador, agora, tem que seguir a ordem e usar o mote flutuante como a terceira linha:

Todo tipo de paisagem
se vê, porque todos são,
nas quebradas do Sertão
essências da nossa imagem.
Nem ilusão nem miragem;
o Sertão tudo comporta
desde a Natureza morta
até a paisagem viva
e uma gente que é altiva
com a seca batendo à porta.

E assim por diante, até que a linha do mote tenha percorrido todas as dez posições, “descendo” ao longo da estrofe.

No saite do repentista Alexis Díaz Pimenta, colhi um depoimento datado de 2012 do qual destaco este trecho (“controversia”, entre os repentistas cubanos, é a nossa “peleja” ou “desafio”):

Normalmente, las competencias de repentismo en Cuba están organizadas en función de las controversias, la variante más conocida y popular de la improvisación poética de la isla. No obstante, en todas las competencias hay también pies forzados, esa modalidad en que el poeta está obligado a improvisar sus décimas y terminarlas con versos ajenos. Las controversias suelen tener una extensión de 10 ó 14 décimas (5 ó 7 décimas por repentista) y al final de cada controversia cada poeta canta 1 ó 2 pies forzados. Esas son las reglas generales. (…)

Tanto en el Primer como en el Segundo Campeonato Mundial de Pies Forzados una de las grandes sorpresas del evento, fue la controversia con pie forzado móvil, un tipo de controversia que, creemos, también llegó para quedarse. Expliquémosla.

Se selecciona un pie forzado “móvil” de la lista general. Una vez escogido el pie forzado, cada poeta debe improvisar una décima usando el pie en un verso distinto, en grado descendiente, del 1 al 10. 

Es decir, el poeta A utiliza el pie forzado en el verso 1; el poeta B, en el verso 2; el A, en el 3; el B en el 4; el A en el 5; el B, en el 6; el A en el 7; el B en el 8; el A en el 9; y el B en el 10.

El esquema de la controversia quedaría así:

Poeta A........pie forzado.......... verso 1
Poeta B …....pie forzado......... verso 2
Poeta A …....pie forzado..........verso 3
Poeta B........pie forzado..........verso 4
Poeta A …....pie forzado..........verso 5
Poeta B …....pie forzado..........verso 6
Poeta A …....pie forzado..........verso 7
Poeta B …....pie forzado..........verso 8
Poeta A …..pie forzado............verso 9
Poeta B …..pie forzado............verso 10


O “mote flutuante” poderia se constituir numa modalidade interessante, se não para a cantoria de viola, pelo menos para as “mesas de glosas” ou “rodas de glosas” que atualmente andam tão em voga no Sertão. O desafio podia ser feito entre dois improvisadores, com um usando o mote nas linhas 1, 3, 5, 7 e 9, e o outro, intercaladamente, nas linhas 2, 4, 6, 8 e 10.  Ou então poderíamos ter, quando há uma mesa com dez glosadores, o que não é raro, o mote passando de um em um e percorrendo a décima até o fim.

É um tipo de inovação que, para mim, está totalmente de acordo com o espírito da cantoria. Nossos motes variam desde o mote de uma linha apenas, no final, até duas linhas (a 9 e a 10) ou então, num modelo aliás muito usado no Rio Grande do Norte, o mote de duas linhas que aparecem nas posições 4 e 10.

O fato do mote se deslocar ao longo da estrofe requer um cuidado adicional: o mote tem que ser um tipo de frase que possa aparecer no começo, no meio e no fim de uma frase maior, para que os improvisadores possam incluí-lo no seu discurso sem forçar a barra. O exemplo que escolhi, “nas quebradas do sertão”, é isto: uma expressão sugestiva, meio que completa em si mesma, um segmento meio isolado, que não exige necessariamente um preâmbulo nem um complemento.







sexta-feira, 5 de maio de 2017

4232) As Formas Simples (5.5.2017)



Surfando pelos saites de revistas literárias encontrei um artigo da Los Angeles Review of Books, assinado por Marta Figlerowicz, em que ela assinala e comenta o fato de somente agora, 87 anos após sua publicação original em 1930, ter saído a primeira tradução para o inglês do livro Formas Simples de André Jolles (tradução de Peter J. Schwartz, apresentação de Fredric Jameson).

Formas Simples saiu no Brasil nos anos 1970, pela Editora Cultrix, em tradução de Álvaro Cabral. É um livro em que o autor estuda aquilo que poderíamos chamar de gêneros literários primitivos (no sentido cronológico, não como juízo de valor), ou as formas de contar histórias (e de compactar significados) em fórmulas verbais de pequena extensão.

As “formas simples” estudadas por Jolles eram: a Legenda, a Saga, o Mito, a Adivinha, o Ditado, o Caso, o Memorável, o Conto, o Chiste.

Comentários: “Legenda” me parece ser o mesmo que lenda. “Adivinha” é o que no Nordeste chamamos de “adivinhação”, a velha fórmula do “O que é, o que é?”.  O Ditado me parece ser um termo abrangente que inclui provérbios, aforismos, anexins, etc.  O “Caso” é o que por distorção fonética grande parte do Brasil chama de “cáuso”, aqueles pequenos episódios exemplares ou pitorescos, típicos das zonas rurais.

Acho que o “Conto” não corresponde ao gênero literário a que damos o mesmo nome, porque as formas estudadas por Jolles são formas anônimas, e o nosso “conto” é uma produção individual, assinada, autoral.  O “Chiste” (“joke” em inglês) é sempre um termo impreciso, que pode corresponder a “piada”, “anedota” ou ao mero trocadilho (“pun”), como foi estudado por Freud em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente.

Senti uma ponta de vaidade quando vi esse artigo da LARB, pensando que desta vez chegamos antes dos EUA. Porque a gente lia esse livro de Jolles em Campina Grande nos anos 1970 e eu sempre imaginei que ele fosse um desses clássicos como a Morfologia do Conto de Vladimir Propp. Um desses livros que todo mundo conhece, mesmo que nem todo mundo tenha lido.

O estruturalismo campeou na teoria brasileira dessa época em diante, para o bem e para o mal. Trouxe um monte de coisas boas, porque ia direto ao texto, às unidades básicas do texto, à matéria-prima verbal das histórias. Por outro lado, avançou demais, e cegamente, nessa direção, chegando a um ponto em que a gente era induzido a pensar que o mérito literário do poema tal de Manuel Bandeira se devia à predominância de consoantes fricativas e orações subordinadas.

Como eu sou mais escritor do que crítico, prefiro raciocinar em termos de exemplos, em vez de fórmulas. (Embora a invenção de fórmulas seja um dos meus passatempos mais deleitáveis.)  Dos livros dessa época guardo também a lembrança de O Pensamento Selvagem de Lévi-Strauss, onde ele falava da “ciência do concreto” de alguns povos ditos primitivos.

A literatura, para mim, é uma ciência do concreto: conta-se a história de uma pessoa para que um milhão de pessoas encontrem nela um milhão de diferentes ressonâncias. Um único objeto produzindo um milhão de reflexos, nenhum deles igual aos outros. A arte é uma ciência do concreto. Acho que era Alberto Cavalcanti, o cineasta, que dizia: “Você pode escrever um tratado sociológico sobre os Correios, mas se for fazer um filme, faça sobre o percurso de uma carta.”

As “formas simples” de Jolles têm tudo a ver para um estudo histórico e evolutivo de formas essenciais da nossa literatura oral: o romanceiro ibérico, a literatura de cordel. Todas ou quase todas essas formas desaguaram na nossa poesia popular.

São estruturas repetitivas que alguém pode resumir em uma dúzia de páginas (como Jolles faz), mas que são mais bem entendidas através de um conhecimento maciço, uma absorção constante e numerosa, que aos poucos vai deixando claras as linhas estruturais daquilo. Como dizia o professor Raymond Cantel: “O cordel é uma literatura quantitativa. Não se pode saber o que ele é lendo apenas uma meia dúzia de folhetos. É preciso ler muitas centenas para perceber o que cada folheto está dizendo”.

Acho que o livro de Jolles, que os universitários norte-americanos estão conhecendo agora, foi importante para muita gente da minha geração estudar com olhos mais atentos as “estruturas narrativas” (olha aí Tzvetan Todorov botando a cabeça de fora), as formas de contar, o modo como as próprias histórias parecem nos obrigar a contá-las desta ou daquela maneira.

Era um livro que se lia (ou que eu, pelo menos, li) em paralelo com outras abordagens de natureza diferente, mas que se complementavam. Como A Linguagem Esquecida de Erich Fromm, que falava sobre sonhos e linguagem simbólica; como A Dimensão Simbólica de Monique Augras, que cobria um território semelhante; como O Estranho (“The Uncanny”) e O Chiste de Freud, que naquele tempo eram difíceis de obter, e que acho que acabei achando em espanhol (em português só havia de Freud uma coleção encadernada que custava os olhos da cara).

Dizem que agora no século 21 a arte de contar histórias está voltando com força total. Impulsionada pelo crescimento do cinema, da TV, das séries.  Deve ser verdade: nunca vi tanto manual de roteiro nas prateleiras das livrarias.  Todos são úteis, pelo menos para mim: Robert McKee, Doc Comparato, Syd Field, A Jornada do Herói, o escambau. Todos acendem uma luz nova aqui e ali.

O problema com eles é que são formalizações produzidas no interior de uma indústria extremamente competitiva, tensa, focada, especializada, onde todo mundo briga pela eficiência cada vez maior na contação de um tipo só de história: o que é capaz de levar dezenas de milhões de pessoas a comprar um ingresso ou ligar um aparelho para ver aquilo.

O livro de Jolles aborda formas de contar ou de “mostrar” que também atingiram dezenas de milhões de pessoas, com a diferença de que o fizeram no transcorrer de milhares de anos. É uma outra maneira de enxergar a mesma coisa. Ajuda a afastar nossos olhos do momento presente (que sempre enxergamos palmo-em-cima) e ver a arte da narrativa em seu desenho ao longo de milênios.