sexta-feira, 30 de outubro de 2020

4636) A Espinha Dorsal e o Mundo Fantasmo (30.10.2020)



 
Estou há várias semanas promovendo no saite “Catarse” a campanha de financiamento coletivo (“financol”) dos meus livros A Espinha Dorsal da Memória e Mundo Fantasmo, coordenada pela Editora Bandeirola (São Paulo), a quem caberá a publicação dos livros.
 
A campanha, aliás, vai até o dia 10/11/2020 às 23h59m59s.
 
No saite do CATARSE estão todas as explicações, descrição dos livros, descrições dos brindes, instruções sobre o modo de apoiar, pagar com cartão, pagar parcelado, todo o “caminho das pedras”:
 
https://www.catarse.me/a_espinha_dorsal
 
Julguei de bom alvitre, portanto, mexer na poeira do baú das recordações, e tirar de lá algumas informações tão antigas quanto a expressão “de bom alvitre”. Porque são livros escritos e lançados há mais de vinte anos. Há muito tempo eu não os relia, e tive que reler tudo agora, para fazer a revisão final dos originais.
 
Faço sempre a ressalva de que não sou um autor especializado em ficção científica. Escrevo poesia, escrevo ficção mainstream, escrevo ensaios, crônicas, literatura de cordel, teatro e mais uma porção de coisas. Como já afirmei muitas vezes em palestras no saudoso Fantasticon, o evento de FC promovido em São Paulo por Sílvio Alexandre: “No mundo do mainstream, falo da FC: no mundo da FC, falo do mainstream”.
 
Tenho pela FC um afeto pessoal porque faz parte da minha história, É algo que leio por prazer, e se a leitura de um livro específico não me der prazer, largo e pego outro. (Isso seria no melhor dos mundos – mas quando a gente se mete a pesquisador, tem que ler muito livro chato até o fim. Tem que falar sabendo do que está falando.)
 
A Espinha Dorsal da Memória, não é meu primeiro livro: antes dele publiquei livros de poesia, folhetos de cordel, um ensaio sobre FC (O que é ficção científica, Ed. Brasiliense, 1986). Foi, no entanto, minha estréia na prosa de ficção, e foi uma aposta alta que fiz, com o destemor característico dos apressados. Ganhei um prêmio, e tive ótimas respostas na imprensa. Esta edição da Bandeirola virá com a transcrição de uma “Fortuna Crítica” recolhida pelo livro junto à imprensa e aos fanzines, no Brasil e em Portugal.
 
Mundo Fantasmo, publicado sete anos depois, é quase um prolongamento do primeiro livro, em termos estilísticos e temáticos, mas já pertence a outro momento. A Espinha foi todo escrito na máquina de escrever; Mundo Fantasmo foi escrito quase todo no computador.



(as edições portuguesas dos dois livros)


É interessante, hoje, para mim, perceber que um conto sobre alguém que escreve num computador, como “Breves Histórias do Tempo” (no Mundo Fantasmo) foi escrito na máquina de escrever convencional, porque nessa época eu ainda não conhecia o computador, tudo ali foi tirado das coisas que eu via em revistas e jornais.
 
Não estou me gabando: William Gibson também escreveu Neuromancer (1984) antes de usar um computador. É só para lembrar que a ficção científica precisa dos fatos, mas precisa que a imaginação se antecipe ou se sobreponha aos fatos. É uma literatura de fantasia tecnológica, não é um realismo a mais.
 
Nada contra o realismo, mas, por que não ter os dois modos de expressão? Por que ter apenas um? Imagine se alguém chegasse para Marc Chagall e perguntasse: “Mas por que o senhor não pinta as coisas como Vermeer?”, e vice-versa.


Nesses dois livros, procurei colocar lado a lado histórias de FC, de fantasia heróica, de fantasia urbana... Modulações diferentes do fantástico, coisas que tenho prazer em ler e que me estimulam a ter idéias.
 
Nos dezenove contos reunidos estão presentes dois ciclos de histórias que vim desenvolvendo ao longo dos anos.
 
O primeiro é o ciclo dos Intrusos, histórias de FC sobre o contato da humanidade com uma raça ultra-poderosa da Galáxia; esses contos compõem a Parte II de A Espinha Dorsal.... O ciclo foi retomado no conto “O Molusco e o Transatlântico”, que saiu recentemente no meu livro Fanfic (São Paulo: Patuá, 2019).



O segundo é o ciclo de Campinoigandres: histórias ambientadas nessa cidade imaginária da Península Ibérica, e que incluem “História de Maldun, o Mensageiro” (em A Espinha...), “História de Cassim, o Peregrino” (em Mundo Fantasmo), e também o romance A Máquina Voadora (Rio: Rocco, 1994; Lisboa: Caminho, 1997).


O sistema de financiamento coletivo, a cargo do saite Catarse e da Editora Bandeirola, prevê o envio de brindes para quem apoiar o projeto em faixas de preço sucessivamente mais altas. Há brindes como marcadores de livros, uma ecobag com desenho de Romero Cavalcanti (autor das capas destas reedições dos dois livros)... Há também reproduções fac-similares de trechos dos datiloscritos e esboços originais.
 
Há alguns que eu quero destacar, por serem trabalhos raros, que um leitor jamais vai encontrar numa livraria, porque não foram feitos para distribuição comercial convencional.


Peleja de Braulio Tavares com Marco Haurélio (32 páginas)
Uma peleja que travei com meu amigo e parceiro, o cordelista e pesquisador Marco Haurélio, via Facebook: eu no Rio, ele em São Paulo. Os versos foram trocados no Facebook, em tempo real, com testemunho e comentários de centenas de pessoas. Saiu pela Editora Tupynanquim, do meu amigo Klévisson Viana (Fortaleza).

 
O Tesouro de Antonio Silvino (20 páginas)
Um romance de cordel que escrevi a partir de uma história que me foi contada pelo cordelista e pesquisador Kydelmir Dantas, e editado por ele via Editora Cordel (Mossoró). Kydelmir me contou a história, e eu falei: “Isso dá um folheto”. Ele disse: “Escreva que eu publico”. Tá aí o resultado

Malassombrado (4 páginas)
Adaptação em quadrinhos feita por Cavani Rosas, a partir do conto de abertura de A Espinha Dorsal... Cavani é um parceiro antigo, e estamos preparando juntos um álbum de desenhos e poesia a sair em breve, Na Torre da Lua Cheia.

Outros brindes são mais voltados para os colecionadores. Por exemplo: cópias fac-símile da primeira página dos originais dos contos (datilografados) da Espinha Dorsal:


 
Há também brindes de "cartões-poemas", dez cartões postais que podem ser mandados pelo Correio, tendo no verso, em vez de uma foto, um poema meu, autografado:



Esses brindes servem de complemento aos livros de contos, e são um dos aspectos que acho mais interessantes nas campanhas de financiamento coletivo. Quero lembrar novamente que todas as ilustrações dos livros e do material correlato são de outro amigo e parceiro de longa data, Romero Cavalcanti, com quem fiz uma longa série de antologias de contos fantásticos pela editora Casa da Palavra.
 
Antologias que serão retomadas agora, com novos temas e novos autores, através da Editora Bandeirola; é um dos nossos projetos para 2021, sobre o qual falaremos oportunamente.
 
 


 
 
 






quarta-feira, 28 de outubro de 2020

4635) Os nomes de lugares na ficção (28.10.2020)




Inventar um nome para um lugar, num texto de ficção, pode ser mais difícil do que inventar o nome de uma pessoa. 
 
Nome de pessoa, se é nome de batismo, é um nome dado pelos pais, e deve refletir esse tipo de escolha.  Se é um apelido, é um “nome social”, por assim dizer, um nome conferido informalmente por um grupo. 
 
Já o nome de um lugar – uma vila, uma cidade, uma floresta, um povoado, um país – é uma escolha coletiva, sem autores que se possa apontar com o dedo.  E quando o escritor concebe um nome assim, ele deve vir imbuído de uma carga de verossimilhança, deve conduzir as nuances que o autor pretende, e deve parecer que foi o resultado de um processo coletivo, anônimo, não-coordenado e poderoso.
 
Quando Mário Palmério deu a seu romance de 1956 o título de Vila dos Confins encontrou um nome simples e sonoro para exprimir aquela idéia de fim-do-mundo onde queria situar o curral eleitoral de sua história. Seu romance seguinte, Chapadão do Bugre (1965), impôs um lugar de sonoridade mais agressiva, mais truculenta, totalmente no tom da ação da história.


Em Grande Sertão: Veredas (1956), entre os muitos lugares imaginários criados por Guimarães Rosa, um dos mais notáveis é o Liso do Sussuarão, um deserto inóspito que os jagunços são forçados a atravessar.  Um leitor nordestino não pode deixar de perceber nesse nome uma evocação do Raso da Catarina, o famoso deserto baiano. 
 
O termo “liso” substitui “raso”, mantendo a idéia de uma região uniformemente plana e com pouca vegetação.  “Sussuarão” lembra “sussuarana” (ou “suçuarana”), a onça parda muito comum no Nordeste, e cuja imagem é recorrente ao longo não apenas do livro, como símbolo de ferocidade, como em outras obras de Guimarães Rosa, principalmente o conto “Meu tio, o iauaretê”. 
 
O nome literário não apenas evoca o nome geográfico original, mas amplia sua rede de ressonâncias, contaminando-o com temas que pertencem ao universo interno da obra, não à geografia.

 
Quando o autor de O Senhor dos Anéis (1954-55), J. R. R. Tolkien, batizou de “Mordor” a montanha onde vive o Senhor do Mal, Sauron, pode até ter recorrido a raízes etimológicas profundas, pois era um filólogo; mas certamente pesou na escolha a semelhança do nome com a palavra “murder” (homicídio). Semelhança, aliás, que sugeriu a Isaac Asimov o tema de um dos seus contos policiais da série “Os Viúvos Negros”.
 
Ressonâncias assim, evocadas indiretamente por uma simples sonoridade, me parecem mais eficazes do que alegorias explícitas, como se ele chamasse a montanha de “Murder”. 
 
Se bem que nunca se pode prever o futuro nem controlar todas as conotações possíveis. Isaac Asimov chamou de “a Fundação” a organização interplanetária destinada a fazer sobreviver a cultura e a ciência durante a decadência do império galáctico. Mal imaginaria ele que décadas depois surgiria no mundo islâmico uma organização terrorista chamada Al-Qaeda, que significa exatamente “a fundação, a base, o alicerce”.


Na época dos atentados do 11 de setembro, vi na Internet reproduções das edições em árabe da “Trilogia da Fundação”, com o título: “Al-Qaeda”.
 
Bill Finger, o roteirista de quadrinhos que deu o nome de “Gotham City” à cidade do Batman, viu esse nome numa joalheria, e o usou para batizar a cidade, raciocinando (corretamente, a meu ver) que teria muito mais liberdade criativa com uma cidade imaginária que parecesse Nova York do que se usasse o nome “Nova York”. E usou justamente um nome que já circulava informalmente na própria cidade, há muitos anos.
 
Mais original ainda é o nome de “Bellona” dado por Samuel R. Delany à sua metrópole surrealista no romance Dhalgren (1975), evocando belicosidade e beleza ao mesmo tempo.


Um dos lugares fictícios mais famosos da literatura é o condado de Yoknapatawpha, criado por William Faulkner para ambientar suas histórias. O autor dizia que o sentido do nome era “água em solo plano avança devagar”. Usando esse nome (formado com palavras indígenas) ele ganhou liberdade para manipular à vontade a história e a geografia do seu cenário.
 
“Macondo”, de Garcia Márquez, é um nome interessante, porque é simples, sonoro, e pelo menos aos meus ouvidos brasileiros não evoca nenhuma associação de idéias. Um nome virgem, por assim dizer, mas muito eficaz. Segundo o autor, é o nome de uma planta da região.


Vitor Ramil escreveu seu romance sobre Pelotas dando-lhe o título de “Satolep”. Inversões assim são o recurso mais simples quando se quer fazer uma alusão direta a algo que existe, como se disséssemos, anti-aristotelicamente: “A é B, mas é também o contrário de B”.
 
Quantas histórias de ficção científica não já vimos sobre um planeta chamado Arret?  Em inglês, “Earth” ao contrário fica meio ilegível, “Htrae”, mas Salman Rushdie saiu-se elegantemente com “Thera” em seu romance Grimus (1975), onde descreve uma civilização alienígena viciada em anagramas.
 
De inversões e de anagramas a literatura de imaginação está cheia. Quando em 1872 Samuel Butler publicou sua novela de “utopia satírica”, ele provavelmente tentou inverter a palavra “nowhere” (= “nenhum lugar”), mas o resultado deu “Erehwon”, meio ruim de pronunciar, e ele optou pelo nome, hoje famoso, de Erewhon. Tecnicamente, deixou de ser uma inversão e virou um simples anagrama.
 
Seguindo um percurso parecido, quando Fritz Leiber quis inventar o país fictício para ambientar suas histórias de espada-e-feitiçaria, deu-lhe o nome de Nehwon, que é o contrário de “No When” (= “nenhum quando”).


A geografia literária brasileira é farta em lugares inventados cuja verossimilhança precisa sempre começar a partir do nome. Quando a protagonista de Jorge Amado, em Tieta do Agreste (1977), volta para sua cidadezinha de Santana do Agreste, qualquer leitor tem a sensação de que essa vila é real, de tão familiar que é o nome. Tocaia Grande (1984) já é um nome de cidade ligeiramente menos verossímil, já dá uma primeira impressão de nome inventado.
 
Se eu estou escrevendo um romance que se passa na Paraíba , posso muito bem usar Guarabira, Patos, Alagoa Grande, Brejo do Cruz, Taperoá. Mas ao usar uma cidade real dessas, eu fico preso. O leitor que conhece a cidade vai ficar checando cada detalhe. Já vi leitores reclamando que um personagem ia a pé da rua tal à rua tal, e que era um trajeto longo demais.
 
Então, mais útil para mim é dizer, em vez de Patos ou Campina Grande, que a história se passou na cidade de São José dos Calangos ou de Riacho Claro. Eu visualizo alguma cidade que conheço mais ou menos, como Sousa ou Areia, e dou-lhe outro nome.
 
O nome real deixa o autor amarrado a uma série de referências que ele pode achar melhor evitar. Um nome inventado lhe permite colocar tudo que existe na cidade verdadeira, e tudo que lhe der na telha imaginativa, sem precisar prestar contas a ninguém.
 

(Solidão, Pernambuco)
 
 





domingo, 25 de outubro de 2020

4634) Dicionário Aldebarã XXI (25.10.2020)



 

(ilustração: Moebius)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.
 
“Lensipax”: situações sociais constrangedoras em que um indivíduo é envolvido por forças alheias à sua vontade, e quanto mais ele se esforça para afastar-se daquilo mais elementos aparecem para impedir que o faça.
 
“Pambifer”: variados tipos de sininhos metálicos, cada um deles com um som musical característico, que os cavaleiros penduram nos arreios e na sela de suas montarias, para que o resultado melódico possa ser ouvido de longe, identificando pelo som a pessoa que se aproxima.
 
“Langh-Mum”: a atitude de quem consegue, mesmo diante das piores situações, relativizar as desgraças ou os fracassos, e manter uma atitude de que aquilo é um fato a mais na vida e deve ser compreendido no contexto de todos os outros fatos. Vale também para os grandes triunfos e as grandes alegrias.
 
“Fimp-Soros”: copos largos com subdivisões verticais e canudos para sugar, onde duas ou mais bebidas refrescantes podem ser servidas lado a lado.
 
“Enternaks”: pequenas frases de saudação e de afeto que pessoas amigas dirigem umas às outras quando se encontram e se abraçam, sempre rimando com o nome da pessoa a quem se destinam. Exemplos: “Teriã, quero te ver hoje e amanhã!”, “Adumbrel, você é a luz do meu céu!”, etc.
 
“Loulens”: desenhos, com técnicas variadas e estilos pessoais, que algumas pessoas fazem no jardim ou no quintal indicando as posições relativas das sombras das árvores ao longo do dia e ao longo das estações do ano, para que esse movimento seja acompanhado e sirva como uma espécie de relógio de sol ou calendário solar.
 
“Ammun”: a alma imaginária de um objeto, que em momentos de bom-humor ou de impaciência alguém imagina ser uma criatura viva, e passa a dialogar com essa alma, pedindo-lhe que o objeto funcione direito, ou perguntando-lhe onde está uma outra parte dele; com o mesmo espírito brincalhão mas emocionalmente sério com que as pessoas se dirigem a alguns animais de estimação.
 
“Lekkli”: balcões compridos que as pessoas colocam na calçada, no jardim ou no quintal, e onde vão depositando objetos que não lhes servem mais (utensílios velhos, garrafas vazias, papéis, etc.) para que quem passa na rua possa recolher e dar novo uso.
 
“Tens-Famag”: diz-se daqueles casais, ou duplas de amigos, que convivem estreitamente e em harmonia, mesmo tendo temperamentos opostos: brigão x conciliador, festeiro x caseiro, preguiçoso x atarefado, caótico x metódico.
 
“Emyaran”: diz-se daquelas coincidências em que a casa alguém é visitada inesperadamente por duas pessoas que não sabiam da presença do outro visitante ali; quando as duas ainda não se conhecem, é tradição que esse encontro casual seja considerado um sinal de que formarão uma amizade sólida.
 
“Aljob-jib”: restaurantes experimentais onde os clientes pagam um preço fixo  antecipadamente, ficam de olhos vendados durante a refeição, e recebem pratos cuja composição desconhecem; podem ser os mesmos pratos para todos de uma mesa, ou pratos diferentes. A intenção é que os comensais procurem transmitir uns aos outros as sensações que cada comida e bebida lhes proporciona.
 
“Sankynerys”: cronograma especial de atividades domésticas (cozinha, limpeza, etc.) organizado em casas de família numerosas onde as pessoas trabalham e/ou estudam em turnos sucessivos do dia e da noite. Como essas atividades nunca coincidem para todos, a qualquer horário, até mesmo de madrugada, tem alguém chegando ou saindo, cozinhando ou fazendo refeições, etc.
 
“Kautizen”: tatuagens utilitárias (que podem ser removidas e substituídas, mesmo dando algum trabalho) onde as pessoas deixam registrados, para o caso de algum acidente ou imprevisto, seu nome, endereço, contatos, tudo que for necessário num momento em que estejam inconscientes e precisando de ajuda.
 
 
 





quinta-feira, 22 de outubro de 2020

4633) O inventor é uma barata tonta (22.10.2020)




Quando eu tinha uns dez anos, era exibido às visitas que iam lá em casa como um pequenino prodígio, porque meus pais se orgulhavam de qualquer besteira que eu dissesse. Houve um tempo em que eu vivia mergulhado em livros como História das Invenções de Hendrik Van Loon e As Grandes Invenções e Descobertas, cujo autor não lembro, mas o Google acaba de me trazer numa bandeja de reluzentes pixels.




Uns amigos de meu pai foram beber lá em casa. Um deles perguntou: “O que é que você vai ser quando crescer?”. Respondi: “Vou ser inventor.” Ele: “Ah, é mesmo? Que bacana. E o que é que você vai inventar?” E eu, dialético avant la lettre: “Não sei, porque não existe ainda.”
 
Vou me reportar ao título desse livro citado, porque existe sempre uma zona-cinza, imprecisa, mal definida, entre o que é invenção e o que é descoberta. Em princípio, inventar é produzir algo que nunca existiu, e descobrir é perceber algo que sempre esteve ali e ninguém soube. O telescópio é uma invenção; o cálculo da velocidade da luz (e a percepção de sua invariabilidade) é uma descoberta.
 
Um fator comum às duas, porém, é o fato de a gente geralmente ainda não saber o que vai inventar ou o que vai descobrir.
 
Claro que às vezes sabe: “quero saber que bactéria causa a doença tal”, ou “quero inventar algo capaz de ampliar um sinal elétrico transmitido no aparelho tal”. Existe um fim em vista, embora ainda não se saiba o que vai ser exatamente.
 
Outras vezes, o inventor (ou descobridor) está apenas fazendo experiências variadas, em muitas direções. Ele pega uma coisa (um composto químico, um conjunto de lentes ópticas, um tipo de motor, um programa de software) e fica vendo mil maneiras diferentes de fazê-lo funcionar, em condições diversas. E aí descobre, “do Nada”, uma utilização que nunca imaginou.
 
Essa é a ciência experimental – aquela que muita gente chama de “perda de tempo”, “gasto desnecessário”, “vagabundagem”, “balbúrdia”. E o fato de que muitos cientistas têm prazer nessa atividade pesa muitas vezes contra ela. O burocrata de plantão fala: “Olha só, ele está se divertindo, ele tem prazer em fazer isto! Pois não vou dar um tostão para ele ter prazer às custas do erário.”



(Bob Brown) 
 
Bob Brown (1886-1959) foi um inventor e escritor a quem se atribui uma das primeiras idéias sobre a criação do e-book, ou livro eletrônico. Ele publicou em 1930 um manifesto, hoje modestamente famoso, intitulado “The Readies”. Assistindo uma das primeiras sessões dos filmes falados, que na época eram chamado de “the talkies” (“os falantes”), ele se entusiasmou com o futuro e fez este manifesto.
 
“The Readies” é mais difícil de traduzir. Poderia ser “os Lentes” (do verbo “ler”, mas fica uma palavra fora de foco), “os Leiturantes”, (meio desconchavado), “os Legíveis” (meio legislativo)...
 
Enfim: mais importante é a idéia que animou Bob Brown, e que transcrevo da Wikipedia:
 
“Uma máquina de leitura bastante simples, que eu possa conduzir comigo, levar para toda parte, plugar em qualquer tomada elétrica comum e ler romances de 100 mil palavras em dez minutos se eu quiser – e eu quero.”
 
A idéia de Brown, contudo, estava muito mais focalizada numa reforma da ortografia e do vocabulário do que no seu suporte físico. “Está na hora,” dizia ele, “de liberar o gargalo e deixar passar uma verdadeira revolução da palavra”. Ele propunha a introdução de uma grande quantidade de símbolos “portemanteau” (combinando 2 idéias numa só) para substituir palavras comuns, e pontuação para simular ação ou movimento; de modo que não fica muito claro se a sua idéia se encaixa ou não na história dos e-books.
(Wikipedia)
 
É uma coisa muito comum na história das invenções que as primeiras idéias a respeito de uma engenhoca qualquer venham cobertas de idéias secundárias que depois não deram em nada, pelo menos naquele caso. Brown pensava naquilo que hoje temos em forma de smartphone, kindle ou tablet, um livrinho eletrônico que pode arquivar bibliotecas inteiras e ser lido em qualquer canto. Mas o impulso imaginativo dele já o levava a, no mesmo fôlego, sugerir a “leitura dinâmica” (um romance inteiro em dez minutos, mania universal dos tecnófilos impacientes) e a “pontuação expressiva” (mania universal dos vanguardistas dos anos 1910-1920).
 
Num momento assim, o inventor não está preocupado com o lado pragmático (“Como o texto será codificado? Que tipo de mini-baterias será usado”, etc.) e sim com as possibilidades que se abrem em todas as direções.




(Edison e o fonógrafo cilíndrico)
 
É famoso o caso de Thomas Edison ao inventar o Fonógrafo. Ele fez uma lista de todas as utilidades possíveis para o uso da voz humana gravada em ranhuras na superfície de cilindros (depois, discos) giratórios e uma agulha reproduzindo o som original via alto-falantes. Para Edison, a utilização mais importante disso era “aprendizado de idiomas estrangeiros”. A comercialização de canções populares, uma indústria que movimentou trilhões de dólares nos últimos cem anos, não foi o primeiro uso que lhe ocorreu.
 
Voltando ao nosso amigo Robert Carlton “Bob” Brown: ele chegou a produzir uma “máquina de leitura” para a qual adaptou textos de Gertrude Stein (de quem foi amigo, quando morou na Europa), Ezra Pound, Marinetti e outros. Brown conviveu com esses vanguardistas em Paris no período entre-guerras, tentou unir a sua invenção mecânica às invenções linguísticas dos companheiros. Para isso, ele criou uma mini-editora, a Roving Eye Press. Esses esforços, que na época passaram muitíssimo despercebidos, foram pesquisados e publicados depois pelo Prof. Craig J. Saper, considerado o grande conhecedor desse movimento.

 
Quem se interessar por um mergulho mais profundo nas inquietudes criativas desse pessoal e puder desembolsar 95 libras esterlinas por um arquivo PDF, corra sem perda de tempo ao link abaixo:
 
https://edinburghuniversitypress.com/book-readies-for-bob-brown-s-machine.html
 
Os menos abastados podem se contentar, como eu me contentaria, se precisasse levar mais longe minha pesquisa atual (que é sobre outra coisa – Bob Brown é uma simples nota de pé de página) com o livro abaixo:

 
Deixo aqui esta dica, principalmente, para as pessoas interessadas em descobrir, em termos brasileiros, alguma coisa desse norte-americano que viveu e atuou no Brasil por pelo menos duas vezes. A primeira delas foi na década de 1920, quando ele criou no Rio de Janeiro a revista Brazilian American:


https://www.davidanthembookseller.com/pages/books/02107/robert-carlton-and-rose-brown/brazilian-american-the-business-builder-of-brazil-vol-9-no-222-january-26-1924
 
A segunda foi nos anos 1940, quando ele morava na Califórnia e produtores de Hollywood o mandaram para a Amazônia, a fim de pesquisar algum material para filmes com temática brasileira, na linha do It’s All True que Orson Welles estava rodando no Brasil. Fico só imaginando as dissertações de mestrado, os roteiros de documentário e as matérias jornalísticas que uma história como a de Bob Brown pode produzir em 2021.
 
Outro aspecto interessante, e que ainda não vejo com muita clareza, é que os Brown são sempre mencionados como um trio: eram Bob, sua esposa Rose e sua mãe Cora, que viajavam juntos e, aparentemente, compartilhavam o trabalho criativo.
 
Se você mora nos EUA, saiba que os papéis e todos os documentos da carreira literária e inventorial de Bob Brown estão depositados (e acessíveis ao público) na Universidade de Maryland, em College Park, a poucos quilômetros de Washington D.C.  O saite com informações mais detalhados pode ser acessado aqui:
 
https://archives.lib.umd.edu/repositories/2/resources/101
 
E aqui pode-se acessar o PDF de um livro onde a obra de Brown é analisada, inclusive com a transcrição de uma “Story To Be Read On The Reading Machine”:
 
https://monoskop.org/images/e/e8/Brown_Bob_The_Readies.pdf
 





segunda-feira, 19 de outubro de 2020

4632) Primeiras Estórias: "A terceira margem do rio" (19.10.2020)

 

 
Em 12 de abril de 1961, o cosmonauta soviético Yuri Gagárin tornou-se o primeiro homem a viajar no espaço, no famoso voo orbital da nave Vostok 1.
 
Em 5 de maio de 1961, Alan Shepard tornou-se o primeiro norte-americano a igualar esse feito, na cápsula Freedom 7; seu voo foi suborbital, mas foi o primeiro em que o piloto foi capaz de controlar manualmente o próprio voo.
 
Entre estas duas datas, em 15 de abril de 1961, João Guimarães Rosa publicou em O Globo o conto “A Terceira Margem do Rio”, a ser incluído, depois, no livro Primeiras Estórias (1962).
 
Este conto é de vez em quando citado como exemplo da temática da ficção científica na obra de Rosa. No derradeiro prefácio de Tutaméia (1967), “Sobre a Escova e a Dúvida”, ele comenta a origem de várias “idéias” para seus contos e diz:
 
“A Terceira Margem do Rio” (Primeiras Estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. (p. 157)
 
Fausto Cunha, uma das figuras emblemáticas da ficção científica brasileira, conta em seu prefácio “A Ficção Científica no Brasil: um Planeta quase Desabitado”, no livro No Mundo da Ficção Científica de L. David Allen (São Paulo: Summus, 1977 ?):
 
Guimarães Rosa considerava “A Terceira Margem do Rio” um conto na linha do fantástico e certa vez, em conversa comigo, estranhou que eu, um cultor da science fiction, não tivesse reagido com mais entusiasmo a essa história, que conheci de primeira mão (Rosa às vezes me telefonava para eu ir ouvir a leitura de seus contos no Itamarati, ali na Rua Larga). Chegou a insinuar que a escrevera pensando em mim como leitor, o que evidentemente não tomei ao pé da letra. (pág. 10)
 
Existem mil leituras e interpretações do conto de Rosa, todas legítimas, dado o grau de nitidez factual da história, e de abstração subjetiva. Sabemos tudo que aconteceu, mas, por quê? Para quê?
 
Uma interpretação curiosa que li há pouco tempo é a de Astrid Masetti Lobo Costa, em Veredas de Rosa II (Belo Horizonte: PUC-Minas, 2003), onde ela compara o texto de Rosa ao Bartleby (1853) de Herman Melville, ambos sobre “o inexplicável e inquietante afastamento de um personagem do convívio com outras pessoas”.
 
Na mesma coletânea de ensaios da PUC-Minas, Rosa Maria Graciotto Silva cita uma carta de Guimarães Rosa para seu tradutor francês J. J. Villard, onde ele diz do livro Primeiras Estórias:
 
Só aparente e enganosamente é que ele se finge de simples, de livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias rústicas, o Primeiras Estórias é, ou pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra, nele, assume pluralidade de direções e sentidos, tem uma dinâmica espiritual, filosófica, disfarçada. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
 
A carta é transcrita de João Guimarães Rosa: Homem Plural, Escritor Singular (Rio: Ágora da Ilha, 2001), de Edna Nascimento e Lenira Covvizzi.
 
O conto pode ter se inspirado parcialmente nessa grande aventura da humanidade que Rosa estava presenciando. Um clima de excitação internacional que não parava de ser alimentado desde que os soviéticos puseram o Sputnik I em órbita em 1957, e que agora se ampliava com a possibilidade de mandar um ser humano na viagem mais arriscada de todas.
 
Temos em nossa mente a imagem das espaçonaves como coisas gigantescas do tamanho de um transatlântico. Nos EUA vi num museu uma réplica da cápsula em que Alan Shepard fez o seu voo sub-orbital. É uma coisa do tamanho de um fusca. Posso imaginar o que era estar sanduichado lá dentro (o cara mal tem espaço para esticar as pernas), ser jogado solto no espaço a 180 km de altura e voando feito uma pedra-de-balieira quase 500 km de extensão total antes de cair de volta no Oceano Atlântico.

 
O fato de que era um piloto experimentado torna a situação ainda mais arrepiante, porque ele sabia de todos os riscos envolvidos – eu, por exemplo, não sei.
 
Guimarães Rosa criou um conto em que um indivíduo constrói uma canoa especial para si mesmo e parte na direção do rio e nunca mais volta. Por quê? Para quê? Ele desaparece para sempre nesse rio “largo, de não se poder ver a forma da outra beira”. Não conheço melhor descrição do espaço sideral.
 
Ele não perde contato com a terra, no entanto. O filho (que narra a estória) é vigilante e fica fiel ao sonho do pai, mesmo quando todo mundo critica o velho, diz que ficou doido, etc. O filho mantém a retaguarda e a certa altura passa a alimentar o pai, levar-lhe mantimentos, aceitando que ele permaneça nesse espaço, mas alguém da terra precisa lhe enviar abastecimento.
 
O pai não volta, e este é mais um dos contos de Guimarães Rosa em que se começa com uma pergunta mas não se termina com uma resposta, se propõe um mistério e deixa-se o mistério pairando no ar após o fim do conto. O conto abre uma porta que não volta a se fechar.
 
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

 
("2001, uma Odisséia no Espaço", 1968)

É como aquelas viagens das naves-geração da ficção científica, uma viagem sem volta, numa espaçonave-cidade onde as pessoas morrem e nascem durante séculos, sabendo que não voltarão para a Terra; e quando eventualmente alcançam o seu destino, quem chega lá são os bisnetos ou tetranetos dos tripulantes que partiram.



 
O pai parte, o filho fica na margem, tocaiando, pastorando. O vínculo entre os dois me lembrou O Tempo das Estrelas (“Time for the Stars”, 1956) de Robert Heinlein. Uma nave sai para colonizar o espaço, e o contato com a Terra é feito através de dois irmãos gêmeos telepatas (o livro propõe que a telepatia é mais rápida que a luz). Devido à dilatação do tempo nas viagens espaciais, o gêmeo que está no espaço envelhece muito lentamente e o que fica na Terra envelhece, morre, e é com seus descendentes que o outro passa a se comunicar.
 
Não é exatamente o caso do conto de Rosa, em que a canoa do pai acaba se parecendo mais com uma Estação Orbital, que nem vai embora para os confins do Universo nem desce para a Terra – fica só ali, boiando.
 
Outro aspecto importante é o título do conto. A “terceira margem do rio” é uma idéia que sugere a existência de uma dimensão a mais. Um rio é como uma linha reta traçada num papel branco, dividindo aquele espaço em margem de lá e margem de cá. Muitos analistas do conto chamam a atenção para esse curioso adjetivo: “terceira”. Lembram que um rio não tem primeira e segunda margens; não há ordem entre elas; são duas, apenas. Podemos pensar apenas que a “primeira” é aquela em que estamos, a que é subjetivamente mais importante, ponto de referência.
 
O que não deixa de lembrar a velha piada do bêbado, mais uma vez registrada por Rosa noutro prefácio de Tutaméia, “Nós, os Temulentos”:
 
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: – Faz favor, onde é que é o outro lado?  – Lá... – apontou o sujeito. – Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
 
Se o rio divide a terra em duas margens, a terceira margem fica acima da Terra, fica no espaço. É uma dimensão a mais que o homem conquista, quando entra nesse veículozinho apertado, individual, e se deixa disparar rumo ao desconhecido.



("The Time Machine", de George Pal, 1960)
 
E pelas avenidas e becos fractais da ficção científica chegamos ao Viajante do Tempo de H. G. Wells e The Time Machine (1895), em cujo clássico capítulo de abertura ele lembra a existência de três dimensões e propõe-se a viajar numa quarta. Também uma jornada numa máquina individual, minúscula, onde o viajante se impulsiona rumo ao desconhecido, numa viagem talvez sem volta.

 
No índice sugerido ao ilustrador Luís Jardim para a edição original de Primeiras Estórias, aparece um homem numa canoa, uma flecha (=indicação do voo espacial), o símbolo do infinito (frequente nas ilustrações de Rosa) e o símbolo da balança, signo astrológico. Este símbolo, porém, consta de duas linhas horizontais superpostas sendo que a de cima se arredonda para o alto.
 
É como se tivéssemos a indicação de um mundo onde tudo é bidimensional, tudo é horizontal, tudo é plano como na “Planolândia”, a Flatland do clássico ensaio de Edwin Abbott, de 1884, sobre as dimensões do espaço – e esse arredondamento para o alto sugerisse a existência de uma terceira dimensão, uma terceira margem do rio.



 
 
 
 
 
 




sexta-feira, 16 de outubro de 2020

4631) O soldado e o fanático religioso (16.10.2020)




Lendo sobre o arraial de Canudos e a guerra civil descrita em Os Sertões, acabei intercalando essa leitura, sem querer, com a das memórias de Conan Doyle, Memories and Adventures (1924).
 
O criador de Sherlock Holmes é talvez minha primeira grande descoberta literária. Nos anos 1950, a Editora Melhoramentos lançou uma coleção de suas obras em 26 volumes. Graças à boa vontade de minha Tia Adiza, que assinou a coleção (recebia 2 volumes por mês), li toda, e tenho ainda hoje todos os livros. Pelo menos um deles, Contos do Ringue e de Guerra, é o mesmo exemplar que li quando menino.
 
Conan Doyle teve uma vida movimentada. Como todo inglês, procura rastrear origens nobres de sua linhagem, e afirma descender da casa dos Plantagenetas. Curiosamente, era de família irlandesa mas seu pai, por questões de emprego, mudou-se ainda jovem para a Escócia, e o menino Arthur nasceu ali, em Edinburgh. (Jorge Luís Borges, num soneto, o chama de “irlandês”, e vejo agora que não estava tão equivocado assim.)
 
Gostava do mar e sua primeira grande aventura foram meses num navio baleeiro, com vinte e poucos anos. Depois de se formar, foi médico de bordo de outros navios. Era grande observador de ambientes e de tipos humanos, uma característica da literatura de seu idioma e de sua época. Seu primeiro livro foi o hoje famoso Um Estudo em Vermelho (1887), a primeira aventura de Sherlock Holmes, que nessa primeira edição passou despercebido. Em seguida, ele produziu uma obra um pouco mais ambiciosa: um livro sobre guerra civil e fanatismo religioso.
 
Micah Clarke (1888) foi publicado no Brasil como A Narrativa de Miquéias Clarke, numa saborosa tradução de Agenor Soares de Moura. Conta a revolta protestante de 1685 liderada pelo Duque de Monmouth contra o rei James, católico, que não era simpático a uma parte considerável da população. Monmouth, que vivia na Holanda, desembarcou na Inglaterra proclamando-se rei, passou alguns meses arregimentando um exército composto em sua maioria por fanáticos mal-treinados mas decididos (um pouco como os jagunços de Canudos), e acabou derrotado na Batalha de Sedgemoor pelas forças mais bem equipadas, e mais experientes, do exército Real.
 
O livro de Doyle conta essa aventura, por meio do jovem Miquéias Clarke. O pai dele é protestante, e ajuda o rapaz a se engajar na batalha através do veterano Decimus Saxon, um mercenário a serviço de Monmouth. Miquéias é aquele rapagão de vinte anos e com dois metros de altura, cheio de vigor físico e boas intenções. Saxon é um dos grandes personagens da obra de Doyle: grisalho, calejado, malicioso, estrategista, com um olho infalível para entender situações bélicas e para detectar as espertezas alheias.



(Conan Doyle)

Falando desse romance, escrito aos 28 anos de idade, Conan Doyle recorda:
 
Esperando ainda a publicação do meu primeiro livro, e sentindo-me invadido por idéias de grande porte, decidi testar minhas forças e escolhi um romance histórico para este fim, porque me parecia a melhor maneira de combinar uma certa dignidade literária com aquelas cenas de ação e aventura que brotavam naturalmente de minha mente ardente e jovem. Sempre experimentei simpatia pelos Puritanos, que, apesar de suas peculiaridades, representaram a liberdade política e a sinceridade religiosa. Geralmente têm sido objeto de caricaturas, na ficção e na arte. Mesmo [Walter] Scott não os retratou como eram. Macaulay, sempre uma das minhas inspirações, foi o único que os tornou compreensíveis: aqueles lutadores soturnos, com suas Bíblias e seus espadagões. Há uma passagem sua (não posso citá-la literalmente) em que ele afirma que após a Restauração se alguém visse um peão mais inteligente que os demais, ou um camponês que lavrasse melhor a terra, podia ter a certeza de tratar-se de um ex-guerreiro de Cromwell. Esta foi minha inspiração para Micah Clarke, onde me deixei galopar à solta pela estrada larga da aventura. Eu estava impregnado de História, mas mesmo assim passei alguns meses pesquisando detalhes, e depois escrevi o livro com certa rapidez. Há passagens nele, como a descrição dos lares dos Puritanos, ou o retrato do Juiz Jeffreys, que não creio haver superado.
(p. 76, trad. BT)
 
Doyle é um excelente narrador de cenas de ação, de perseguição, de batalha. Isto transparece nos romances históricos ainda mais do que nas aventuras de Sherlock Holmes. São romances que trazem pesquisa livresca (Miquéias Clarke tem doze apêndices com informações históricas e transcrições de documentos) mas têm aventuras, suspense, reviravoltas, tensão.


Quando Monmouth reúne suas precárias tropas na cidade de Taunton, começamos a sentir o “tom” dessa insurreição desunida nas palavras do personagem (real) do pastor John Ferguson, exortando o “rei Monmouth” à batalha:
 
– Vou tornar bem claro o meu pensamento, Majestade. Não chegou ao nosso conhecimento que Argyle está perdido? E por que é que ele se perdeu? Porque não teve fé firme nas obras do Onipotente e teve forçosamente de rejeitar o auxílio dos filhos da luz trocando-o pelo da raça miserável dos fautores do prelatismo, que são meio pagãos, meio papistas. Se ele tivesse andado no caminho do Senhor, não estaria agora na prisão de Edimburgo com a corda ou a machadinha diante dos olhos. Por que não cingiu ele os rins e não marchou diretamente para a frente com a bandeira da luz, em vez de deter-se aqui e parar como um Dídimo poltrão? O mesmo ou pior nos sucederá se não marcharmos pelo país dentro e não fincarmos os nossos estandartes diante da perversa cidade de Londres – a cidade onde tem de ser feita a obra do Senhor, e o joio tem de ser separado do trigo e amontoado para arder no fogo.
(pág. 258-259, trad. A. S. M.)


Treinamento militar e armamento capaz, para soldados assim, não substituem a fé a o apoio divino. É um insurreição armada na base do “Deus proverá!”. Narra Miquéias:
 
Na cidade inteira ressoavam pregações. Cada tropa ou companhia tinha o seu orador escolhido, e às vezes mais de um, que discursava e expunha. De barris, carroças, janelas, e até mesmo do alto das casas, eles falavam às multidões embaixo; e nem se diga que sua eloquência não produzia efeito. Ouviam-se pelas ruas gritos roucos e ferozes, de mistura com orações entrecortadas e jaculatórias. Os homens andavam ébrios de religião como se fosse de vinho. Tinham o rosto afogueado, a voz pastosa, os gestos desordenados. Sir Stephen e Saxon sorriam um para o outro ao observarem aquela gente, pois sabiam, como soldados veteranos, que de todas as coisas que tornam um homem valente nos seus atos e indiferente à vida, o ímpeto religioso é o mais forte e o mais duradouro.
(pág. 412, trad. A. S. M.)
 
Admiramos os fanáticos de Canudos (e admirei, ao reler estas 500 páginas, os fanáticos ingleses) não por serem fanáticos, mas por serem o lado mais fraco e mais sincero. O único armamento que têm para defender seu fanatismo são chuços, foices e trabucos. Estão enfrentando lutadores muito mais preparados do que eles: mesmo o Exército patético e semi-maltrapilho que devastou Canudos tinha por trás de si forças e logísticas muito superiores às dos jagunços.
 
Fiquei pensando em escrever um romance sobre um confronto armado onde algum Poder conseguisse reunir – por meio de uma tecnologia de comunicação instantânea com milhões de pessoas pavlovianamente pré-condicionadas – o fanatismo religioso dos que acreditam estar conquistando uma vida-eterna melhor que esta, o treinamento e equipamento militar dos tempos modernos, e a impiedade fria de quem se julga moralmente superior ao inimigo.


 
("The Morning of Sedgemoor", de Edgar Bundy)
 
 







terça-feira, 13 de outubro de 2020

4630) Fatos sobre a história da guilhotina (13.10.2020)



Um dos mitos mais persistentes com relação a essa nobre geringonça de execução penal é que ela foi inventada por um tal “Dr. Guillotin”, na época da Revolução Francesa, e que o tal teria sido morto através da própria máquina que criou.
 
Vi algumas discussões a respeito e preferi tirar as dúvidas lendo o educativo A History of the Guillotine (London: John Calder, 1958) de Alister Kershaw, com boas ilustrações de época e copiosas notas bibliográficas. Estas últimas me deixam pensando na quantidade de documentos de 200 anos atrás que existe pelo mundo afora, principalmente em assuntos que envolvem a burocracia governamental européia, onde tudo fica registrado.
 
Primeiro os fatos básicos: o dr. Joseph-Ignace Guillotin não inventou esse instrumento, que aliás já existia em diferentes versões em outros países. Ele era apenas um deputado que desejava atenuar a brutalidade das decapitações em praça pública. Um contemporâneo o descreve desdenhosamente como “um político insignificante, mas incômodo, que costumava meter o bedelho em todos os assuntos”.
 
E não foi ele quem morreu na guilhotina, e sim um homônimo. Ele morreu em casa, de morte natural, em 1814.
 
Outro mito é o de que a guilhotina serviu para a França se livrar dos seus aristocratas. Não foi tão simples. Durante a época do Terror, bastava muitas vezes a denúncia de um vizinho para que uma pessoa fosse jogada na masmorra sem julgamento e depois fosse levada à fila da guilhotina. Diz Kershaw: “Das 2.567 mulheres executadas pelo entusiasmo libertário, 1.447 pertenciam às classes mais baixas.” (p. 6)
 
A guilhotina foi um capítulo high-tech na história brutal da crueldade humana. No reinado de Luís XVI havia uma hierarquia de castigos para diferentes crimes: a fogueira era o castigo dos magos, feiticeiros e heréticos; o suplício da roda ficava para os assassinos e os salteadores de estrada;  esquartejamento era para os crimes de lesa-majestade; e para outros 115 delitos punidos com a pena capital, a gente do povo ia para a forca, e os nobres eram decapitados com um machado, ou com aquele espadagão que se empunha com as duas mãos.
 
Um jornal francês de 1792 observava:
 
[Este novo instrumento, a guilhotina] não mancha de sangue as mãos  de quem quer que seja, ao executar um semelhante, e a velocidade com que funciona está mais de acordo com o espírito da lei, que muitas vezes é severa mas nunca deve ser cruel.” (pág. 65, trad. BT)
 
Antes da guilhotina, as execuções com espada eram cheias de problemas técnicos. Kershaw refere a “épica decapitação” do Conde de Chalais, em 1626, cuja cabeça só foi separada do corpo após vinte e nove golpes de espada, e ainda vivia mesmo após o vigésimo. Ele se apressa a registrar, contudo, que o autor da façanha não foi um carrasco oficial, “mas apenas um miserável amador que salvou o próprio pescoço ao consentir cortar o do Conde.” (pág. 65)
 
Um dos mais célebres carrascos franceses, Charles-Henri Sanson, “o Senhor das Altas Obras”, afirma numa carta às autoridades:
 
“Depois de cada execução, a espada fica inútil para outra; é absolutamente essencial que a espada, que é sujeita a perder estilhaços, seja afiada novamente, caso haja vários condenados a serem executados na mesma sessão; é necessário portanto haver um número suficiente de espadas prontas. Deve-se observar também que é frequente uma espada se quebrar no ato da execução.” (pag. 30-31)
 
Tinha ele motivos para se preocupar. Em 1537, um carrasco chamado Florant teve uma performance tão incompetente, ao tentar uma execução, que foi perseguido pela multidão, escondeu-se numa casa e ali foi queimado vivo.
 
Sanson foi uma figura histórica à altura da época em que viveu. Kershaw comenta:
 
O Rei e a Rainha e a amante do Rei; Robespierre e Danton; aristocratas e gente do povo; santos e criminosos; Sanson decapitou a todos mantendo, em geral, uma esplêndida imparcialidade, tal como coube a Desfourneaux, em nossa época, fazer o mesmo sem problemas – antes, durante e depois da ocupação nazista.”  (p. 100)


(O Halifax Gibbet)

Entre os muitos precursores do instrumento, o escocês “Halifax Gibbet” era um protótipo já com as características básicas (estrutura vertical, lâmina descendo através de ranhuras, condenado deitado com o pescoço preso a uma peça de madeira), em uso desde o reinado de Edward III, no século 14. Um historiador registra o hábito curioso: “todos os homens presentes deviam tocar na corda [que acionava o mecanismo] ou estender o braço em sua direção, o mais que pudessem, confirmando seu desejo de que a justiça fosse assim administrada” (pág. 22). Isso foi muito antes do Dr. Guillotin: Walter Scott, em sua History of Scotland (1830) descreve uma dessas execuções, ocorrida no ano de 1581.
 
Não devemos esquecer que o século 18, ironicamente chamado O Século da Razão, praticou com altivez a tirania do interesse científico sobre o sentimento humano. As primeiras provas da guilhotina definitiva se deram nos arredores de Paris, em Bicêtre, uma mistura de hospital, manicômio e asilo para velhos, onde a mortandade natural era alta. Cadáveres não faltaram para os primeiros testes do protótipo cuja fabricação (por Tobias Schmidt) foi supervisionada pelo Dr. Antoine Louis (1738-1814), secretário da Academia Cirúrgica e, ele sim, mais responsável pelo instrumento do que o pobre Guillotin.
 
Os testes foram realizados em abril de 1792. Foram precisos vários, para se chegar aos índices ideais de peso da lâmina, ângulo de corte, altura da armação, etc. Diz Kershaw: “Com um belo senso de precedência, o carrasco iniciou os testes através das mulheres e crianças” (pág. 47). No intervalo, o Dr. Colletier, diretor da instituição, ofereceu às autoridades presentes um passeio pelos jardins e um almoço, no qual “fez-se ampla justiça ao capão e aos vinhos da excelente adega” (pág. 48).
 
A alucinação coletiva que cercava os guilhotinamentos gerou cenas em que “aristocratas não identificados recebiam com desdém os insultos da turba. Davam gargalhadas entre si enquanto aguardavam a vez, já no cadafalso, e despediam-se cerimoniosamente uns dos outros”. Muitas lendas “folclóricas” sem corroboração histórica, contudo, se perpetuaram, algumas delas através do entusiasmo folhetinesco de Honoré de Balzac (“Um Episódio sob o Terror”, em Cenas da Vida Política).
 
Alister Kershaw dedica um capítulo inteiro (cap. 9) às pesquisas dos médicos sobre quantos segundos restam de consciência a uma cabeça decapitada, uma experiência que se eternizou no conto de Villiers de l’Isle Adam, “O Segredo da Guilhotina” (1886).
 
Mais interessantes são os capítulos finais, que ele dedica ao “bourreau”, ou carrasco. Era uma guilda de homens vistos com desconfiança e uma certa repulsa. Já na época pré-Revolução Francesa, um carrasco, ao se servir nos mercados públicos, recebia uma comprida colher de madeira para recolher suas mercadorias, a fim de que suas mãos não tocassem os produtos destinados a outras pessoas (pag. 97). Henry Sanson (um dos muitos Sanson a exercer o ofício) tinha o cuidado de não mergulhar os dedos na caixa de rapé que um amigo lhe oferecesse (pág. 117).
 
O filho de um carrasco devia tornar-se carrasco também; suas filhas só se casariam com carrascos da mesma geração. Essa “tradição dinástica” se afirmava não apenas pelo lado negativo, de um certo isolamento social, mas pelo fato do carrasco ter sido durante alguns séculos, na França, um funcionário bem pago, e com direito a mordomias que em linguagem do século 21 se traduziriam por Auxílio Açougue, Auxílio Hortifruti, Auxílio Peixaria e assim por diante. O livro transcreve (pág. 134-136) um longo documento de Luís XIV descrevendo em detalhes esses privilégios, que foram sendo cortados por sucessivos governos republicanos nos séculos 19 e 20.
 
Esse isolamento criou o costume dos casamentos entre famílias. Diz Kershaw:
 
“Para uma mulher jovem, casar-se com um carrasco era automaticamente condenar suas irmãs e sobrinhas e primas a continuarem solteiras ou a aceitar como maridos apenas homens que exercessem a mesma profissão” (pág. 105).
 
E comenta:
 
Se pelo menos soubéssemos um pouco mais sobre essas damas tenebrosas, se pelo menos tivesse chegado até nós algum registro das conversas travadas quando seus maridos voltavam para casa após uma manhã de trabalho! (pág. 106)