sexta-feira, 7 de março de 2008
0067) A pedra na fala (8.6.2003)
Vi certa vez um documentário sobre João Cabral de Melo Neto onde imagens do sertão, da Zona da Mata e do Capibaribe eram comentadas pelo poeta. Era emocionante para mim ouvir pela primeira vez (Cabral não era muito entrevisteiro) a voz por trás de tantos versos que eu sabia de cor, e cuja sintaxe cortada por anacolutos me mostrara um outro nível de interferência possível na linguagem.
Ao longo do depoimento, contudo, comecei a perceber um detalhe meio irritante. É que o poeta terminava suas frases com uma dessas perguntinhas mecânicas que a gente faz.
Ele dizia: “comprende?”, assim mesmo, com um “e” só. Isso aqui é um engenho, comprende? muito parecido com os que eu vi na minha infância, só que hoje não existe mais, comprende?
Com dez minutos daquilo eu já me perguntava por que o montador do filme não tinha cortado aqueles expletivos, que para mim não passavam de um tique nervoso, e nada somavam ao discurso. Além do mais o troço parecia contagioso, comprende? Terminado o filme fui bater papo e tomar cerveja com os amigos, comprende? e levei algum tempo pra me livrar desse vírus inofensivo.
O cacoete de Cabral era uma pedra no sapato, mas, se a gente se acostuma com a pedra na alma do sertanejo, ou com uma pedra no peito, como no samba de Chico Buarque, um tiquezinho como este é convivível.
Já outros cacoetes são tribais, como o “tá ligado?” que alguns amigos meus usam com a frequência com que eu uso um ponto-e-vírgula. Todo modismo tem uma função sintática específica, como o popularíssimo “tipo assim”, que em geral equivale a “por exemplo”.
O “tá ligado?” é uma espécie de “câmbio” nas comunicações por rádio; significa apenas que você acabou sua mensagem, e agora é a vez do outro. Serve também para conferir se o outro está prestando atenção, como fazem os portugueses ao telefone: “Está lá? Está lá?...”
Tiques e cacoetes são contagiosos. Conheço filhos que têm tiques iguais ao dos pais. O do pai é um curto-circuitozinho nos nervos, é uma descarga física involuntária; o do filho é socialmente aprendido, culturalmente herdado; é um bug no software, não no hardware.
Estou muito técnico? Espero que não. Pensem no executivo de uma empresa, que era gago, e foi demitido, não por ser gago, mas porque todos os puxa-sacos do departamento passaram a gaguejar também, e ninguém se entendia mais.
Todo mundo tem direito a uma pedra na alma, a um bug na sintaxe, a um tique no discurso. Os meus são “veja bem” ou “não, quer dizer” ou “mas rapaz, eu vou te dizer uma coisa...” Preenchem um vazio, como aqueles versos de repentista que tapam buracos numa sextilha (“como sabe o companheiro”, “em todo ponto de vista”, “privilegiadamente”).
Dura apenas um segundo, o tempo necessário para a gente desplugar uma idéia e plugar outra, que já está pensada e pronta para ser dita. O cacoete verbal, comprende? é somente o ponto do zigue-zague em que o pensamento muda de direção. Tás ligado?
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