sábado, 29 de março de 2008

0330) Deus e o Diabo nos detalhes (10.4.2004)



Carlos Alberto Parreira, nosso incompreendido técnico campeão do mundo em 1994, deu uma entrevista certa vez e os jornalistas se queixaram de que a Seleção tinha jogado bem mas não fizera gols. Ele retrucou: “Não ter feito o gol foi uma questão de detalhe.”

Ele queria dizer que muitas vezes, embora a jogada saia toda certa, o gol deixa de ser feito porque o pé bate mal na bola, ou porque o pé-de-apoio escorrega, ou porque o chute sai fraco – ou seja, por pequenos detalhes cujo controle foge ao técnico.

Bastou isso para a imprensa ficar repetindo, como repete até hoje, que Parreira teria dito: “O gol não tem importância, é um mero detalhe.”

Isto me lembra uma frase que ouço há anos: “O Diabo está nos detalhes.” Só que também escuto o reverso desta frase: “Deus está nos detalhes”. “Que coisa curiosa,” fiquei matutando, “toda vez que um desses caras aparece o outro está junto!”

O que é mais do que natural. Se você é religioso, se acredita em Deus (nosso Deus ocidental), acredita também na existência do Diabo. Se não acredita num, também não acredita no outro. Mas, qual a frase original?

Fiz uma rápida busca na Internet, e fui informado de que a frase “Le bon Dieu est dans le detail” é atribuída a Gustave Flaubert, mas também há quem dê como seu autor o artista Michelangelo, os arquitetos Mies van der Rohe e Le Corbusier, e o historiador de arte Aby Warburg (estes 3 últimos podem muito bem ter lido em Flaubert).

A coluna “Word Court” de Barbara Wallraff, em “The Guardian”, também cita o uso da frase por Albert Einstein, Friedrich Nietzsche, Ronald Reagan e Ross Perot.

Acho que ocorre neste caso um fenômeno muito comum com as “frases célebres”: a gente ouve Fulano de Tal dizendo e passa a atribuir o dito a esse Fulano, sem que nos passe pela cabeça que o Fulano poderia perfeitamente estar citando alguém. Parece que uma frase só é famosa pra valer quando é atribuída a diferentes pessoas famosas.

A intenção dessa frase é clara: muitas vezes é nos pequenos detalhes que fazemos escolhas cruciais, que definem o sucesso ou o fracasso de nossa empreitada. Projetos gigantescos podem ir por água abaixo caso não se dê a devida atenção a uma bobagenzinha qualquer.

Um bom exemplo disto são as duas catástrofes ocorridas com os ônibus espaciais norte-americanos, o Challenger e o Columbia: ambos explodiram por causa de defeitos técnicos em pequenas peças que, ao serem submetidas às tremendas pressões de um vôo, não resistiram.

Já citei nesta coluna a frase de Conan Doyle, “nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”.

Em certos tipos de estrutura, todos os elementos, mesmo os menores, têm o mesmo grau de responsabilidade. Se um deles se romper, de nada adiantou a solidez e a resistência de todos os outros. Em cada um deles está se decidindo, a cada instante, a luta entre a vida e a morte, a sorte e o azar, Deus e o Diabo.





0329) A magia de contato (9.4.2004)




Magia de contato é quando imaginamos que dois objetos ou seres que tenham estado em contato muito próximo permanecem ligados de alguma forma, mesmo depois que um vai para um lado, e o outro para outro. 

O exemplo mais comum disto é a importância dada às peças de roupa de alguém para se fazer um feitiço. Se você pega a meia (ou o lenço, ou sei-lá-o-que de Fulano) e utiliza num desses rituais, seja a Magia Negra para prejudicar o cara, seja uma mera simpatia para arranjar casamento, supõe-se que a mágica funciona porque os dois continuam “unidos”. Tudo que acontecer com aquele objeto acontecerá com Fulano.

Existe na Física Quântica um experimento cujos fundamentos técnicos escapam à minha compreensão, mas que imagino poder resumir de maneira adequada. 

É chamado EPR em homenagem aos físicos que o desenvolveram (Einstein, Podolsky e Rosen). 

O sujeito pega duas partículas que estão num estado que se chama “entrelaçado” (“tangled”); neste estado, certos valores numéricos da uma partícula são complementares aos valores da outra, de tal forma que se alterarmos o valor de A o valor de B se altera proporcionalmente. Não importa se uma dessas partículas foi levada para a Lua e a outra permanece na Terra; o que quer que se faça com uma será imediatamente refletido na outra.

Algumas pessoas, ao descrever este processo, o comparam com a conhecida e misteriosa afinidade que existe entre gêmeos idênticos. Mesmo quando são criados desde pequenininhos em cidades diferentes (às vezes até sem saber que têm um irmão gêmeo), esses indivíduos crescem de maneira muito parecida: em alguns casos, seguem a mesma profissão, botam o mesmo nome no cachorro, casam com mulheres muito parecidas uma com a outra. 

Sabe-se também que muitos gêmeos pressentem à distância que algo fora do comum (doença, acidente, etc.) está acontecendo com o irmão.

Quem quiser se aprofundar no efeito EPR pode consultar o artigo bem explicativo de Carlo Orsi Martinho em: http://www.dgz.org.br/dez02/Ind_com.htm

O que me interessa agora é registrar que em domínios completamente diferentes (a Magia Primitiva, a Física Quântica, a Biologia) parece existir um conceito pervasivo, um conceito que se dissemina por todos eles. 

Esse conceito é o de que dois seres ou dois objetos que em algum momento tenham estado ligados de forma muito intensa continuam mantendo, depois de se afastarem, um certo grau de ligação. Como numa liga de metais derretidos, os dois parecem se fundir e se mesclar parcialmente, de tal modo que para onde fôr “A”, estar sempre levando em si uma pequena parte de “B”, e vice-versa. 

O antigo símbolo do Yin-Yang oriental (o círculo dividido entre uma gota branca com bolinha preta e uma gota preta com bolinha branca) talvez seja o registro mais antigo, a síntese mais antiga desta noção que me parece essencial à nossa experiência: a noção de que a individualidade pura não existe, nunca existiu.






0328) Gatos e cachorros (8.4.2004)




Cresci numa casa onde tinha bicho de toda qualidade, parecia a casa do Dr. Dolittle. Minha mãe chegou a ter 8 ou 10 gatos de uma vez só, a tal ponto que nunca se achava uma cadeira ou poltrona onde não já houvesse um felino principescamente refestelado. Tivemos cágados e tartarugas, tivemos cutias de estimação (das quais só lembro a saudosa Balalaika, que um dia sumiu pela vizinhança, perseguida por uma horda de cães entusiasmados), tivemos até sapos, que percorriam a casa com a gravidade de desembargadores, procurando mosquitos com olhos míopes. Minha mãe tinha um amor à Natureza de fazer enrubescer a maioria dos ecologistas urbanóides que vivem aí pelos gabinetes. Curiosamente, não se orgulhava disso nem fazia alarde. Para ela, gostar de sapos e cutias era tão óbvio quanto respirar.

Pode parecer paradoxal, mas vem daí minha estranheza diante das pessoas que têm bichos de estimação, porque todo mundo ou tem cães ou têm gatos. Os americanos costumam perguntar: “Are you a cat person or a dog person?” Nunca vi um americano perguntar: “Are you a cutia person?” Em português usamos a expressão “gatos e cachorros” para dizer “todo tipo de coisa” (“Não gosto desse bar, aqui entram gatos e cachorros”), mas isso acaba limitando nossas opções mentais. Não vejo ninguém criar nada fora gatos e cachorros.

Eu já tive um galo amarelo, quando pequeno, e asseguro ao leitor que nenhuma decisão moral me foi mais custosa do que a de permitir a minha mãe passá-lo na panela quando a ocasião se apresentou. Outro bicho que pensei em criar foi um gaiamum que veio numa corda trazida por meu pai de uma viagem a Goiana. Simpatizei (eu tinha 8 anos, minha gente) com um dos gaiamuns, salvei-lhe a vida e fiz planos de criá-lo no quintal (que era cimentado) até que ambos atingíssemos a maioridade. Dias depois, cheguei de manhã ao quintal para ver o nosso cachorro na época (sim, havia cachorros também) parado, olhando-me com expectativa, com as patas do gaiamum emergindo da boca fechada. Eu ia fazer o quê? Sou cristão. Perdoei o cachorro.

Me desculpem os leitores de preferências felinas ou caninas, mas eu só acredito que alguém gosta de bicho se criar um iguana, um tatu, um castor... Não me venham de gato siamês ou husky siberiano. São modas passageiras insufladas pela mídia na mente de quem precisa de um tamagochi orgânico para alimentar, lavar, acarinhar... Por que não se voltam, então, para as minorias zoológicas que há milênios esperam um gesto de carinho, uma latinha de leite ao pé do fogão, um trapo aconchegante na área de serviço? Por que não criam um bicho de verdade – uma preguiça, um gambá, um ornitorrinco? Essa preferência absurda por cães e gatos parece o sistema eleitoral norte-americano, onde não se concebe a existência de um partido que não seja o Democrata ou o Republicano. No dia em que um terceiro partido eleger um presidente lá, eu juro que adoto um avestruz.

0327) Os postais do linchamento (7.4.2004)



(Cartão postal com linchamento de negros em Duluth, Minesotta, 1920)

Na semana passada, os jornais do mundo inteiro reproduziram imagens dos norte-americanos linchados em Faluja, no Iraque. O carro em que vinham foi alvejado por bombas; os corpos carbonizados foram puxados para fora, chutados, arrastados, e depois pendurados nas vigas de uma ponte, onde foram apedrejados. É uma imagem chocante, ver aqueles espantalhos desengonçados de carvão, balançando ao vento e levando cacetadas de uma multidão eufórica. “SELVAGENS”, foi a manchete que brotou espontaneamente em vários jornais dos EUA. E de fato, qualquer sujeito civilizado sente um calafrio diante daquilo. E não tenho dúvidas de que para muitos norte-americanos bastou esta cena para provar que os iraquianos são uma sub-raça de gente sem ética, sem valores e sem religião.

A cena me trouxe à mente, no entanto, uma canção de Bob Dylan. É engraçado, tudo parece ter um paralelo nas canções de Dylan. É como se a obra dele fosse um índice remissivo do mundo contemporâneo. Está tudo lá: página tal, página tal... Pois eu me lembrei de “Desolation Row”, cujos versos iniciais dizem: “Os postais do linchamento estão sendo postos à venda; os passaportes estão sendo pintados de marrom” (“They´re selling postcards of the hanging, they´re painting the passports brown”). A canção, que é de 1966, pertence à fase meio surrealista de Dylan, e sempre achei que essa história de vender cartões postais com imagens de linchamento fosse um símbolo, uma polaróide imaginária do inconsciente dos EUA, de sua incontrolável vocação para mercantilizar tanto a beleza quanto o horror.

Como eu sou ingênuo. Algum tempo atrás, o mapa em linhas tortas do Acaso me conduziu à descoberta do livro de James Allen, Without Sanctuary: Photographs and Postcards of Lynching in America. Allen reuniu fotos e postais que eram usados como souvenirs (sic) dos linchamentos públicos de negros e de imigrantes, nas primeiras décadas do século 20. Este material está reunido no saite “Musarium: Without Sanctuary”, em: http://www.musarium.com/withoutsanctuary/main.html. Particularmente instrutivas são as fotos de número 4 (“Bennie Simmons, vivo, banhado em querosene e incendiado”, 1913), 6 (dois imigrantes italianos), 10 (cadáver de um negro numa cadeira de balanço, rosto lambuzado de tinta branca)... bem, são 81 fotos ao todo.

Não estou dizendo que por causa disto os americanos do Iraque mereciam ser linchados. Ninguém merece. Ninguém precisa ser linchado. Mas o ser humano é, como dizia Bilac, “capaz de horrores e de ações sublimes”. Não há nenhuma razão “a priori” para que um branco odeie um negro, ou um iraquiano odeie um americano. Mas basta criarmos as condições econômicas, sociais e culturais para isto, o Orc que existe em cada um de nós brota para fora, feliz da vida, doido para linchar, torturar, assassinar. Já vimos isto até na boa e velha Paraíba, não vimos? Então é só abrir o olho, e não deixar chegar a este ponto. Obrigado pela atenção.


0326) Profissionalismo (6.4.2004)


(A escola no ano 2000 - gravura francesa)

Antigamente as pessoas aprendiam a fazer fazendo. Entrava-se numa profissão porque o pai e o avô já faziam aquilo, de modo que o futuro fazedor daquilo crescia num ambiente saturado de informação, motivação, vivência. Outras vezes, descobria-se precocemente num garoto um certo talento para alguma coisa (tocador de alaúde, ferreiro, domador de cavalos), e o garoto promissor era encaminhado a um Mestre no ofício, que tornava-se uma espécie de segundo pai e ensinador de tudo. Ou então o sujeito era forçado a trabalhar para manter a família, e não escolhia vocação: pegava o que aparecia, e aprendia o ofício na dura lei do dia-a-dia, da tentativa-e-erro.

Isso, no entanto, era em 1900-e-cocada. Hoje em dia, inventou-se uma palavra mágica: o Curso. Tem curso para tudo no mundo, a maioria deles nas universidades particulares, que brotam no solo brasileiro mais rapidamente do que as favelas. Não nego que a idéia por trás dos cursos universitários seja uma boa idéia. De boas idéias está cheio o mundo e a escalação da Seleção. Resta ver o que acontece na prática. Em teoria, o candidato a aprendiz iria passar 4 ou 5 anos de sua vida estudando, de forma concentrada e intensiva, tudo que dissesse respeito à sua futura profissão. Uma lavagem cerebral do-Bem. Quando saísse dali, estaria pronto para arregaçar as mangas e atender a clientela. Mas deve ter um bug qualquer no meio do processo, porque o Brasil está cheio de administradores que não sabem administrar, advogados que não advogam, filósofos que jamais filosofarão. Pode ser um problema de mercado de trabalho; mas pode ser o fato de que em algum trecho do processo a intenção se perdeu, e o cara não passa de um leigo com diploma.

Hoje em dia, todo futuro artista diz aos jornais: “Eu pretendo seguir a carreira artística, e já me inscrevi em cursos de Dicção, Empostação da Voz, Interpretação, Canto, Dança e Mímica.” Tem curso para tudo. E o jovem artista acredita, com toda a sinceridade dos verdes anos, que basta fazer um curso para ficar sabendo tudo que os outros sabem. Que me perdoem os jovens, mas eu acho que estão latindo na árvore errada. Eles acham que passar alguns meses ou anos cochilando na última fila de um cursinho é uma maneira prática de adquirir conhecimentos.

Eu ainda acho que futebol se aprende no campo, jornalismo na redação, música no palco e natação na água. Não sou contra os cursos e as escolas: sou contra a idéia simplória de que quem fêz um curso sabe mais da profissão do que quem não o fêz. Tem meia dúzia de profissões (Medicina, Odontologia, Engenharia, etc.) onde vai ser muito difícil o sujeito ser um autodidata competente, mas estas são as exceções, não a regra. Criou-se no mundo uma idéia de profissionalismo que não passa de um corporativismo disfarçado. O verdadeiro profissionalismo é o que valoriza o exercício competente da profissão, no universo da própria profissão, independentemente de como a profissão foi aprendida.


0325) I had a dream! (4.4.2004)



(Biblioteca do Trinity College)


Eu tive um sonho, e acordei hoje mais profético do que Martin Luther King. O pastor sonhava com um dia em que os negros teriam direitos iguais aos brancos. Eu sou mais modesto: sonho com o dia em que toda cidade brasileira terá uma Biblioteca Pública. Estarei com febre, com alucinações? Que nada. Não sonho com biblioteca de filme americano: edifícios imponentes, leões de pedra ladeando as escadarias, enorme pé-direito em mármore, centenas de mesinhas dispostas em grade. Penso em bibliotecazinhas modestas como muitas que já vi. No centro da cidade, de frente para a praça onde há também o cinema e a igreja, tem aquela casinha amarela, espremida entre uma barbearia e uma lanchonete. Você entra, e lá dentro tem quatro ou cinco mesas de formatos e tamanhos diferentes (que claramente foram doadas por particulares), um birô com uma bibliotecária atenta e um fichário do lado, e ao longo da parede umas estantezinhas com livros.

Não são obras raras, obras caras. São aquelas velhas coleções encadernadas que se encontram nas salas de tantas famílias brasileiras, compradas a prestação numa época remota em que livros eram vendidos de porta em porta. É aquele Monteiro Lobato verde-escuro, aquele Jorge Amado vermelho-e-branco com letronas, aquele Dostoiévski vermelho da José Olympio cravejado de maravilhosas gravuras de Darel, Lívio Abramo, Goeldi. São as enciclopédias tornadas obsoletas pela Internet: a Delta-Larousse verde-escura, a gigantesca Mirador, a manuseada Barsa. Tem aquela coleção branca do Prêmio Nobel com uns autores que ninguém sabe mais quem são (quem diabo era Theodor Mommsen, Bjornstjerne Bjornsson?), tem aquela coleção verde com os melodramas de A. J. Cronin, tem o saudoso “Tesouro da Juventude”, e não esqueçamos os refugos das coleções de bancas de revistas: “Os Pensadores”, “Os Imortais da Literatura”, “Os Economistas”...

Muitos amigos meus hão de torcer o nariz diante de um tesouro cultural tão defasado, mas não reside aí o X da questão. O X é a existência de milhões de garotos e garotas, Brasil afora, que são doidos para ler mas não têm como, porque em suas cidades não se vendem livros, e mesmo que vendessem eles não teriam dinheiro para comprar. E não me venham com conversa de que por causa da Internet e dos videogames ninguém se interessa por livros. Quem gosta de ler gosta de livros. As bibliotecas que descrevi acima existem. Já as vi, com variações, espalhadas pelo Brasil afora, e quando as vi o que menos olhei foram as estantes. Olhei as caras mulatas ou caboclas dos adolescentes do Pará, do Paraná, do Espírito Santo, do Estado do Rio, de Minas, todos de olho enfiado num livro de Érico Veríssimo, num “Dicionário da Mitologia”, numa “Veja” do ano passado, num romance de Agatha Christie, num volume de Castro Alves. Lêem porque pertencem a uma elite: a das pessoas que tiveram um sonho e perceberam que não é sonho.

0324) Godard: o cinema pela 1a. vez (3.4.2004)




(Anna Karina e Eddie Constantine em Alphaville)

Nenhum cineasta atraiu, em seus dez primeiros anos ou dez primeiros filmes, tanta devoção irrefletida e tanto ódio injustificado quando Jean-Luc Godard. 

A partir de Acossado (1959) ele fêz um desmonte da linguagem do cinema. Ao ver um filme seu pela primeira vez (acho que foi Masculino, Feminino), não entendi a história e principalmente a mensagem do filme. Naquele tempo, todo filme tinha que ter uma mensagem: uma idéia abstrata resumida em poucas frases e que, bem assimilada, nos dispensava até de ver o próprio filme. 

No cinema de Godard havia uma profusão de pequenos “erros” de iluminação, de enquadramento, de mixagem sonora, de direção de atores... A todo instante, aparecia um errinho novo. Parecia que o sujeito estava dirigindo um filme pela primeira vez. 

E só aos poucos (depois de Alphaville, O desprezo, Viver a vida...) fui percebendo que era justamente isso. Godard fazia cinema como se o cinema estivesse começando ali, e nos obrigava a vê-lo com os mesmos olhos.

Tenho amigos que sentem por Godard o mesmo que as viúvas do 11 de setembro sentem por Osama Bin Laden. O primeiro filme de Godard pulverizou em poucas horas tudo que eles tinham de mais precioso, tudo que tinham de mais inquestionável. Quando você começava a se emocionar, a se envolver com o filme... pluft! Vinha um daqueles errinhos e cortava o barato. 

Godard era cria de Brecht, de Picasso, de Borges, de Barthes, dos grandes metalinguistas. Quando a história passada na tela começava a nos fazer sonhar, ele nos cutucava as costelas: “Acorda. É mentira. É linguagem. É só um filme.” E muita gente até hoje não o perdoa.

Em Tempo de Guerra, um cara vai pela primeira vez ao cinema, e no filme uma mulher se despe antes do banho. Quando ela começa a tirar o soutien, sai de quadro pelo lado esquerdo. Ele levanta-se da poltrona e vai andando para o lado oposto, atropelando os outros espectadores, tentando ver a mulher que saiu de quadro. A cena prossegue de maneira hilária, pela ingênua insistência do personagem em tentar olhar aquilo “como se fosse de verdade”.

Em O desprezo, Godard filma em cinemascope, mas mesmo assim a câmara se move de um lado para o outro num diálogo entre Michel Piccoli e Brigitte Bardot, quando o enquadramento convencional mandaria colocar os atores de perfil nas extremidades do quadro. 

Em Alphaville, Eddie Constantine e Anna Karina tomam café juntos, de frente um para o outro. Os atores estão fora de quadro: tudo que vemos são suas mãos gesticulando, servindo-se, mexendo o café, etc. 

Muita gente ainda lê isso como a arrogância insuportável de um super-intelectual francês querendo ser modernoso. Eu leio isso como o bom-humor tranquilo de um sujeito meio rebelde, que pergunta aos intelectuais: 

“Por que assim, e não de outra forma? Por que do seu jeito, e não do meu? Por que aceitar o seu mundo, quando eu posso pelo menos imaginar um mundo diferente?”





0323) Coração de mãe não se engana (2.4.2004)



(Luz Cuevas e sua filha)

A imprensa noticiou um caso curioso ocorrido em janeiro nos EUA. Luz Cuevas, uma mulher de origem hispânica, perdeu uma filha com apenas dez dias de nascida quando sua casa em Filadélfia foi destruída por um incêndio em 1997. A investigação provou que a origem do fogo foi um “gato” na instalação elétrica; o corpo da criança não foi encontrado, e a polícia concluiu que ele teria sido totalmente consumido, dada a intensidade das chamas. Os anos se passaram, Luz e seu marido Pedro tiveram outro filho, mas acabaram se separando. Um dia, Luz Cuevas foi a uma festa infantil e a certa altura seu olhar bateu numa menina de 6 anos que brincava no meio dos outros. E ela teve a certeza absoluta de que era sua filha, que estava viva.

A certeza foi tão grande que ela aproximou-se da criança, fingiu que havia um pedaço de chiclete preso no cabelo da menina e deu um jeito de cortar alguns fios, que guardou num saco plástico. Em seguida, procurou um político da comunidade hispânica local, contou sua história, e pediu um exame de DNA. O cara hesitou a princípio (eu também pensaria “essa mulher é doida”), mas a veemência e a convicção dela eram tão grandes que ele levou o caso à polícia e fêz pressão até conseguir um exame. O exame não deixou dúvidas: a menina era mesmo a filha de Luz Cuevas. Havia sido raptada por uma vizinha que em seguida provocou o incêndio para ocultar as pistas.

Pergunto eu: e agora? O que diabo é isto, senhoras e senhores? Percepção extra-sensorial? Clarividência, paranormalidade? Se a Sra. Cuevas tivesse simplesmente tido um palpite e ficado esperneando o resto da vida, sem provar nada, nenhum de nós lhe daria a menor atenção. Palpite todo mundo tem, e de cada 100 pessoas que jogam no bicho só uma tem o palpite confirmado. Mas aqui entra em cena um detalhe importante, amigos, a que eu chamo A Palavra da Ciência. A Ciência não tem nenhum preconceito contra os palpites, as premonições, as clarividências. A Ciência diz: “Tentemos descobrir um modo de confirmar se isto é verdadeiro ou não.” E às vezes consegue.

O que aconteceu, na minha opinião, foi um fenômeno muito curioso da mente humana, chamado de “reconhecimento de padrões” (“pattern recognition”). No caso, padrões fisionômicos, corporais, motores, porque tudo isto são características geneticamente transmissíveis. O exemplo de Luz Cuevas é ainda mais notável porque a filha foi raptada com poucos dias de vida, ou seja, não houvera tempo ainda para a “assimilação social”, o processo imitativo que decorre da convivência com os pais. Quando ela viu a menina, percebeu uma série de pequenos detalhes fisionômicos dela própria e do marido, coisas que qualquer um de nós observa nos próprios filhos, mas a que não dá muita importância, devido ao excesso de convivência. Está tudo lá. “Fica um pouco do teu queixo no queixo da tua filha”, dizia Drummond; dá à Ciência este pouco, e ela mudará teu mundo.

0322) O efeito Ono-Chapman (1.4.2004)


(Yoko Ono)

Quando ouvi a notícia, não acreditei, e corri à Internet para verificar. Pensando bem, se fui verificar é porque acreditei um pouquinho, não é verdade? Se não acreditasse, encolhia os ombros e ia pensar noutra coisa. Mas a notícia era tão fantástica que merecia ser checada. Yoko Ono está noiva de Mark Chapman, o assassino de seu marido John Lennon. A julgar pelas informações, nos últimos anos Yoko fêz uma série de visitas a Chapman (que cumpre prisão perpétua na prisão de Attica), como parte de uma campanha mundial voltada para a paz e o perdão. Nesses contatos, Chapman abriu o coração, e confessou as inseguranças e paranóias que o levaram ao crime. Tocada pela sua evidente sinceridade e pelo seu arrependimento, Yoko foi aos poucos se apaixonando pelo rapaz, que afinal de contas era apenas mais um beatlemaníaco como tantos outros... E os dois teriam anunciado em público o seu noivado.

Parece absurdo, não é mesmo? Tanto parece que é. É mais um dos inúmeros primeiros-de-abril (desta vez um tanto adiantado) que todo ano circulam na Internet. Quem quiser ver o texto completo da pegadinha pode ir ao saite Tomate Maravilha (http://tomate2.blogger.com.br/) . Tudo bem, era só brincadeira. Mas por que essas coisas colam? Porque, no fundo, sabemos que nada é tão absurdo que não seja possível, ou, pelo menos, nada que dependa dos sentimentos e das emoções humanas. Jorge Luís Borges comentou certa vez que os romances psicológicos o entediavam porque neles as atitudes mais implausíveis tinham plena justificação dramática: “suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram a ponto de se separarem para empre, delatores por fervor ou por humildade...”

Pois é: acreditei. E olhe que em todo o “affair” da separação dos Beatles sempre fui um defensor de Yoko, a quem absolutamente não responsabilizo pelo fim da banda. O problema ali era a administração caótica deixada por Brian Epstein, a ingenuidade financeira dos meninos, e muito oba-oba regado a LSD. A incompatibilidade das esposas, Yoko e Linda Eastman, pode ser sido uma mera gota dágua. Dizem que Yoko é feia e canta mal, mas, e daí? Queriam que um cara como Lennon casasse com quem – com Sandy? Yoko é uma artista competente, dentro dessa coisa nebulosa que é a arte conceitual; e, aqui pra nós, passei uns 20 anos plagiando os poemas dela em Grapefruit, excelente livro.

A gente acredita porque sabe que todo mundo é capaz de tudo. Nunca tenhamos certeza, amiguinhos. Nós mesmos, volta e meia, estamos fazendo coisas que jamais imaginaríamos. Percebi isto quando vi um clássico no “Amigão” em que Pedrinho Cangula jogou pelo Treze, e Carioca jogou pelo Campinense. Não precisa mais nada para me provar por a + b que nada é impossível, que nunca devemos ter 100% de certeza, que em qualquer situação humana o “efeito Ono-Chapman” está de emboscada, pronto para puxar o tapete sob nossos pés e nos levar ao inferno ou ao paraíso.

0321) A Redentora (31.3.2004)



(Colégio Estadual da Prata, foto atual, retirada do saite do prof. Badu, em http://www.colegiodaprata.xpg.com.br/)


O dia 31 de março está trazendo aos jornais uma enxurrada de memórias e testemunhos sobre a famosa “Redentora”, a Revolução de 31 de março – ou o Golpe de 1o. de abril, de acordo com o ponto de vista de quem se refere a nossa mais famosa quartelada. Eu tinha 13 anos nesse dia histórico, do qual guardo uma vaga lembrança que certamente não trará novas luzes sobre a História do Brasil, mas, enfim...

No dia do golpe eu estudava no Colégio Estadual da Prata, onde fazia o 3o. ano ginasial. Os colégios desse tempo tinham uma certa rigidez com negócio de farda. Era a calça e camisa cáqui com listas verdes, e o cara tinha que usar cinturão, meias e sapatos pretos. Até 31 de março ainda se podia ir com uniforme incompleto, mas dali em diante quem não fosse completo voltava da porta. Nesse dia, 1o. de abril, às 7 da manhã, eu e mais uma meia-dúzia fomos barrados porque faltava alguma coisa. Como minha família era muito metódica, não sei o que podia estar faltando – de repente peguei uma meia marrom-escuro em vez de preta, mas a fiscalização era rigorosa, e não pude entrar.

Àquela altura, já se sabia que alguma coisa diferente estava acontecendo no país, mas o único sinal disso era uma tropa de 10 ou 12 soldados de polícia postados diante de cada portão do colégio. Certamente para impedir que os milhares de secundaristas do Gigantão saíssem em passeata bradando slogans marxistas. O que estava, aliás, muito além da nossa capacidade. A gente se limitou a correr para aquela balaustrada do pátio aberto, aquele do lado direito, e ficar cantando: “Acorda Maria Bonita... levanta pra fazer café... que o dia já vem raiando... e os polidoros já tão de pé!”

“Polidoro”, para quem se lembra, era o apelido genérico dos soldados de polícia. Depois de muita gozação e cantoria, voltei para o apartamento de minha Tia Adiza, na Praça Félix Araújo, onde eu costumava passar uns dias de vez em quando, porque era perto do colégio. Mas me lembro que naquela mesma noite, ou na seguinte, fui jantar em casa, e meus pais ficavam com o rádio ligado o tempo inteiro, acompanhando aquela lenga-lenga: Jango vai resistir? Brizola tem tropas? Vai haver guerra civil? Logo a situação se definiu como uma vitória-sem-sangue dos militares. O rádio bradava, naquele adesismo eufórico de última hora, que a corrupção acabava de ser eliminada do país. Eu perguntei a meu pai se era verdade, e ele resmungou: “Não. Isso quer dizer apenas que acabou o furto, e vai começar o assalto-à-mão-armada.” Não deu outra.

Não mudou muito, na verdade. Março de 64 foi como aqueles pequenos abalos sísmicos que precedem o terremoto-pra-valer, ou o quase-enfarte que alerta o sujeito de que o próximo vai mandá-lo pro beleléu. Poucos períodos em nossa História devem ter sido tão intensos e vívidos quanto os anos entre aquela manhã e o ano de 1968 – quando o AI-5 instituiu de vez o regime “do baraço e do cutelo” na pátria amada. Mas sobre isso falarei em 13 de dezembro.