quinta-feira, 3 de julho de 2008

0434) Onde estás que não respondes? (10.8.2004)


(ideograma do Tao)

A TV-Globo mandou ao ar recentemente, no programa Linha Direta, uma reportagem sobre o naufrágio do “Bateau Mouche” no reveion do Rio de Janeiro, quando morreram 55 pessoas. Uma reconstituição muito bem feita, mostrando um episódio arrepiante da História do Capitalismo Selvagem. Uma noite de coragens e de egoísmos, em que algumas pessoas arriscaram a vida para salvar os náufragos, e outras viram tudo mas levaram seus iates para longe, para não perder a queima-dos-fogos. No meio das crises nervosas e dos desabafos pós-salvamento, uma pessoa resgatada dizia: “Foi Deus, foi Deus quem me salvou, eu sentia o tempo inteiro que ele estava junto de mim...” Não discuto o conceito, e entendo até demais a emoção, mas a pergunta que os incrédulos fazem nesta hora é: E por que Deus não salvou os outros?

Uma das piores contradições de quem se esforça para acreditar em Deus é a idéia de um Deus bom, compassivo, misericordioso, mas ao mesmo tempo capaz de permitir que coisas assim aconteçam. Uma das justificativas para a existência de guerras, crimes, barbaridades, é o livre-arbítrio. Deus nos deu a liberdade de escolher, de errar, de pecar, de pintar o sete e desenhar o oito... e de arcar com as conseqüências, que muitas vezes envolvem o fogo do Inferno. Tudo bem – mas e as crianças queimadas no supermercado de Assunção, e os meninos que perdem os braços no bombardeio de Bagdá, e as crianças indefesas seviciadas por pedófilos ou por psicopatas? O mal que lhes acontece não provém de uma escolha sua, do exercício de sua liberdade.

Sei que a questão é complexa, e antiga; aliás, na Biblioteca do Vaticano deve existir uma dúzia de livros que responde isto tudo, tintim por tintim. Mas não há como negar que realidades dessa natureza são um forte argumento em favor daquilo que eu chamo de “religiões impessoais”, onde o Universo não é explicado em termos de uma Divindade dotada de emoções humanas (Deus é bom, Deus é carinhoso, Deus se aborrece com isto, Deus se enfurece com aquilo...), mas em termos de processos. O Taoísmo é um pouco assim, conforme vemos em livros como o I-Ching ou o Tao Te King – O Livro do Caminho Perfeito. O universo é um conjunto de processos que envolvem nascimento e morte, expansão e contração, teses e antíteses. É uma dinâmica abstrata, e cabe a nós ter discernimento suficiente para perceber que tipo de processo está ocorrendo em nosso país, em nosso grupo social ou em nossa vida, e nos comportar de acordo.

As religiões impessoais não defendem a existência de um Deus com emoções humanas e valores humanos, mas um Deus responsável pelo funcionamento do Universo como um todo, sem se preocupar com nossos destinos individuais, que são assunto nosso. Mas somos humanos, demasiado humanos, e só nos sentimos à vontade quando pensamos num Deus feito à imagem dos nossos pais, um Deus que nos premia e castiga, que nos embala no colo e que nos expulsa de casa quando fazemos uma besteira.

0433) O falso duplo (8.8.2004)



Como todo mundo, Jorge Luís Borges foi crítico de cinema durante uma fase de sua vida. Um texto seu de 1941 desce o sarrafo em Hollywood por “difamar” Robert Louis Stevenson com sucessivas deturpações de sua história O Médico e o Monstro. (Acusação semelhante poderia ser feita ao mercado editorial brasileiro, que há várias gerações traduz desta maneira caricata o título original, e mais sutil, The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde). Argumenta JLB que no livro de Stevenson existe um elemento de surpresa que o filme desdenha. No livro, somos induzidos a ver no Dr. Jekyll o protótipo do bom sujeito, e em Mr. Hyde o típico canalha criminoso. Quando no capítulo nono ficamos sabendo que os dois são a mesma pessoa, isto é uma revelação de ordem moral: o ser humano é dual. A força da demonstração brota dos julgamentos que proferimos quando supúnhamos que se tratava de dois indivíduos distintos.

Borges ironiza o diretor do filme: “Victor Fleming suprime todo o assombro e todo o mistério: nas cenas iniciais do filme, Spencer Tracy apura sem medo a versátil beberagem e transforma-se em Spencer Tracy, com peruca diferente e traços negróides”. Para mim, este problema de escalação de elenco é muito semelhante a um que experimentamos no Brasil, quando Walter Avancini fez a sua bem sucedida adaptação do Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa para a televisão. Avancini escolheu Bruna Lombardi para o papel de Diadorim, certamente pelo fato de que a atriz tem olhos verdes, como o personagem; mas com isto eliminou de cara toda a surpresa da revelação final de que Diadorim, tido como homem desde o começo da história, revela-se no episódio final como mulher.

Borges propõe dois atores diferentes para encarnar o médico e o monstro, com um “transformando-se” no outro no final. Eu proporia um Diadorim interpretado por um ator pouco conhecido, que fosse bonito, de olhos verdes, e que pudesse, em retrospecto, ser aceito como uma mulher disfarçada. A angústia de Riobaldo, no Grande Sertão, é o fato de ser homem e sentir que está apaixonado por outro homem. Fica difícil acreditar nessa angústia quando vemos o ator apaixonado por ninguém menos que Bruna Lombardi. A culpa não é da atriz, que se saiu masculinamente bem no papel, mas no fato de que, num “star system” como o de Hollywood e o da Globo, a “persona” pública dos atores sempre se sobrepõe aos personagens que interpretam. (Deixo de lado o segmento de público que desconhece Bruna Lombardi; é de nós que estou falando.)

O importante é tornar plausível para o espectador a ilusão inicial (Jekyll e Hyde são duas pessoas, Diadorim é homem), fazer com que ele creia nisto tanto quanto os personagens. Só assim pode-se capitalizar as emoções geradas por esta ilusão para dar mais força à reviravolta final. Só temos uma revelação legítima quando ela envolve a ruptura com algo em que acreditamos com força, com sinceridade, como uma verdade íntima e pessoal.

0432) Cronópios e famas (7.8.2004)



Cronópios e famas são criações do escritor Julio Cortazar, um irônico e compassivo observador da natureza humana, ao qual não passou despercebida a existência destes dois tipos tão universais. Nos textos curtíssimos que aparecem em Histórias de Cronópios e de Famas (com várias edições no Brasil), ele supõe serem reais estas criaturas, cuja intenção alegórica, todavia, salta aos olhos.

A maneira mais curta (e mais limitada) de explicar quem são é a que eu usava na década de 1970, quando os amigos perguntavam a razão do meu entusiasmo por esse pequeno livro. “São os malucos e os caretas”, dizia eu. Era a linguagem da época, o crivo seletivo da época, a polarização da época entre os modernos, os livres, os avançados (nós) e os que estavam presos a parâmetros limitados e repressores.

Os cronópios são avoados, lúdicos, sentimentais, infantis. Diante dos objetos mais comuns ou das situações mais corriqueiras, têm atitudes inesperadas e criativas. Nas suas mãos qualquer objeto bobo se transforma em algo surpreendente. Cenas tipicamente cronopianas, por exemplo, são o balé dos pãezinhos e o almoço da bota de Chaplin em Em busca do ouro. Os famas são metódicos, planejadores, cheios de regras para tudo: quando viajam, informam-se antecipadamente sobre o preço das diárias do hotel e a cor dos tapetes; fazem listas de tudo que levam na bagagem, anotam os médicos de plantão na cidade. Os famas são (para usar outra imagem do próprio Cortázar) aquelas pessoas que só escrevem em papel pautado, e que só apertam o tubo de pasta de dentes a partir da extremidade.

Ninguém tem muita dúvida sobre de que lado está o coração de Cortázar; aliás, ele deu a um ensaio seu sobre Louis Armstrong o título “Louis, enormíssimo cronópio”. Os cronópios parecem ouvir jazz, e os famas, marchas militares. Impossível não simpatizar com essas criaturas, cuja origem o autor assim descreve: “Eu estava num teatro nos Champs Elysées, e vi flutuar uns objetos cuja cor era verde, como se fossem pequenos balões, balõezinhos verdes que se moviam ao meu redor...” Os cronópios já são, nesse vislumbre inicial do escritor, uma espécie de criaturinhas de desenho animado vivendo no mundo real, no qual desencadeiam um caos benigno com sua simples presença, sua propensão à brincadeira, sua distração...

Aos 25 anos, eu me considerava um enormíssimo cronópio; é engraçado perceber que se nessa época eu encontrasse o sujeito que sou hoje, talvez o considerasse um típico fama – a começar por esta capacidade de escrever todo dia uma coluna com o limite de 3 mil toques. Paciência. Cortázar diz que “a primeira coisa que faz um cronópio recém-nascido é insultar grosseiramente seu pai, no qual vê obscuramente a acumulação de desditas que um dia serão suas”. São cruéis, são ingratos os cronópios? Não. Todo cronópio é filho de um casal de famas, e em fama um dia há de se tornar. Daí sua vontade de beber a beleza do mundo... antes que seja tarde demais.

0431) O maluco Bobby Fischer (6.8.2004)




O leitor habitual desta coluna já terá percebido a esta altura que eu tenho uma admiração especial pelos sujeitos a quem falta um parafuso, ou que o têm meio frouxo. Podem conferir: é Bispo de Rosário, Augusto dos Anjos, Campos de Carvalho, Stanley Kubrick... Alguém irá protestar: “Mas são geniais!” Concordo. São geniais, mas eu não deixaria nenhum deles tomando conta de um bebê enquanto eu fosse na esquina comprar cigarro. Não é por nada não. É porque corria o perigo de quando eu voltasse pra casa eles tivessem ensinado o menino a escrever hai-kais, ou a jogar xadrez.

O que nos traz ao nosso doido de hoje, Bobby Fischer, o ex-campeão mundial de xadrez que foi recentemente preso no Japão por estar portando documentos irregulares. Eu tinha 20-e-poucos anos quando Fischer foi campeão mundial, quebrando uma hegemonia de décadas dos enxadristas russos. Naquele longínquo 1972, o xadrez russo era como o atual vôlei brasileiro ou como Schumacher na F-1: sobrava, “não tinha pra ninguém”. Fischer era um “enfant terrible”, temperamental, imprevisível, desorganizado, autodidata. Pegou o campeão Boris Spassky e fez com ele o que Mike Tyson fez com muita gente. Ficou rico e famoso da noite pro dia, remédio infalível para virar pelo avesso um juízo que já não regulava bem.

Num recente artigo no “The Wall Street Journal”, o atual maior jogador de xadrez do mundo, Garry Kasparov, comenta o impacto do surgimento de Fischer. “Ele mudou o xadrez como ninguém o fazia desde o século 19,” diz Kasparov; “A distância que separava Fischer de seus contemporâneos era a maior que já se vira.” Estimulado pelo governo e pela mídia dos EUA, numa época crucial da Guerra Fria, Fischer virou herói nacional, o Homem Que Mostrou Aos Comunistas Quem é O Melhor. Política à parte, Kasparov (que tinha seis anos quando Fischer virou o tapete do mundo do xadrez) reconhece que o americano maluco tinha muitos fãs na União Soviética. “Respeitavam seu xadrez, é claro, mas muitos deles admiravam discretamente sua individualidade e sua independência.”

Fischer recusou-se a colocar o título em jogo e acabou sendo destituído pela Federação de Xadrez. Para Kasparov, Fischer tinha um talento destrutivo. “Ele demoliu a máquina enxadrística soviética, mas não foi capaz de construir algo em seu lugar. Era o desafiante ideal, mas como campeão foi um desastre.” Nos anos mais recentes, Fischer só tem aparecido ocasionalmente na imprensa através de atitudes estapafúrdias: queixa-se de uma conspiração dos judeus para desmoralizá-lo, aplaude os atentados de 11 de setembro, trava brigas intermináveis com as autoridades dos EUA e com os próprios amigos, por motivos fúteis. Fischer foi um sinônimo de brilhantismo, intuição pura, talento puro derrotando a escola russa, tida como imbatível. Hoje, irritadiço, paranóico, egocêntrico, parece cada vez menos com aquele Bobby Fischer, e cada vez mais com os Estados Unidos de George W. Bush.