quarta-feira, 7 de outubro de 2009

1289) Literatura e grafismo (1.5.2007)




(ilustração: Ariano Suassuna)

As experiências de misturar literatura com grafismo são menos freqüentes na prosa do que na poesia, onde temos desde os “caligramas” de Guillaume Apollinaire até as variadas experiências da Poesia Concreta e do Poema Processo. 

Romances ilustrados eram uma tradição no século 19, mas no século 20, ao que parece, impôs-se um consenso de que livros adultos e sérios deveriam prescindir de “ter figuras”, o que foi relegado para a literatura infantil e outros gêneros considerados menores. 

Quantos autores contemporâneos, digam-me por favor, têm lançado romances com ilustrações, no Brasil e fora dele?

Na literatura brasileira são poucos os escritores que não apenas escrevem o texto, mas procuram dar-lhe uma ilustração gráfica. Trabalhar em dois canais, por assim dizer. 

As pseudo-xilogravuras de Ariano Suassuna para A Pedra do Reino são o exemplo que tenho mais à mão. O que lhe chega mais próximo é Guimarães Rosa, e o modo como trabalhava em conjunto com seus ilustradores, principalmente em livros como Primeiras Estórias

Há também Osman Lins, um autor de perfil peculiar, que chegou a fazer experiências como as de atribuir a um personagem um pequeno símbolo gráfico em vez de nome próprio (Avalovara) ou então para indicar com um símbolo abstrato, no início de uma frase, se quem estava falando era o primeiro interlocutor, o segundo ou os dois (em Nove, Novena).

Dos mais recentes eu lembro o personalíssimo trabalho de Valêncio Xavier, de Curitiba, e seus livros alternando texto e ilustrações pirateadas. Estas incluíam fotogramas de filmes mudos, anúncios de revista e de almanaque, desenhos, reproduções de pinturas, etc. Além da criatividade dos textos em si, os livros de Xavier (Minha mãe morrendo e Crimes à moda antiga são os que tenho à mão) são exemplos notáveis de Literatura com uma dimensão a mais.

Fora do Brasil, o mesmo pode ser dito de boa parte da obra de Júlio Cortázar, aquilo que ele chamava de seus “almanaques”. Infelizmente não foram traduzidas integralmente no Brasil (com o projeto gráfico original) obras magníficas como La vuelta al dia em ochenta mundos e Último Round, onde ele utiliza colagens, cartuns, ilustrações encomendadas, gravuras antigas, fotos, etc., criando um fluxo constante de comentário visual aos textos. 

O que temos no Brasil é o (também magnífico) Prosa do Observatório, um longo poema em prosa com fotos das ruínas de um observatório astronômico na Índia. Alguém pode lembrar Os Autonautas da Cosmopista, história de uma viagem de Cortázar com sua mulher Carol Dunlop; mas no caso trata-se (a meu ver) de um livro de viagens com as fotos correspondentes, e não de um texto criativo por si.

Algo de diz que daqui a 50 anos os leitores ficarão perplexos com nossa literatura. “Tentavam dizer tudo usando apenas palavras,” comentarão os jovens. “Que caras limitados! Que caras obcecados! Que caras heróicos!”









1288) Final feliz e final cínico (29.4.2007)




Revi na TV O Jogador de Robert Altman, filme cruel e divertido sobre os divertimentos cruéis de Hollywood. 

A certa altura, alguém pergunta quais os ingredientes para um filme fazer sucesso. Tim Robbins sai enumerando: suspense, risos, violência, sexo, nudez, final feliz... Principalmente final feliz. 

O “happy ending” norte-americano era considerado, no tempo em que me formei como cinéfilo, o maior atentado à moral. O italiano Umberto Barbaro dedicou um capítulo inteiro de um livro a esta deformação do verdadeiro espírito do cinema. O final feliz transformava o cinema em ópio do povo, droga para a alienação das massas, e assim por diante. 

O filme de Altman termina com um final feliz dos mais irônicos: o crápula que destrói a vida de todo mundo e compra a alma dos mais idealistas termina o filme numa mansão florida, beijando a bela esposa grávida.

O Final Feliz tradicional era um final feliz de retorno aos valores tradicionais, ao culto das virtudes morais, ao aconchego da família, às normas do bom caráter e da boa conduta. 

Era um final idealizado, conservador. Depois do sofrimento da guerra, o soldado desce intacto do navio e abraça a família no cais. Após intrigas e perseguições, o jovem casal consegue subir ao altar e dizer o sim. O funcionário menosprezado revela ser o talento que salva a empresa da falência e na última cena é promovido a gerente-geral, por entre lágrimas, sorrisos e champanhe. 

O Final Feliz que era alvo das diatribes de Umberto Barbaro era esse final feliz cândido, panglossiano, que nos dizia que no fundo, no fundo, a Terra é um lugar bom de se viver, que os valores éticos e morais sempre prevalecem, que no fim tudo dá certo, e se ainda não está dando certo (como dizia Fernando Sabino) é porque ainda não chegou no fim.

O cinema americano dos anos 1940 consagrou este Final Feliz; o das décadas seguintes consumiu-o, desgastou-o, deixou-o esgarçado, puído, numa peínha de nada. 

E dos anos 1980 em diante ele foi sendo substituído pelo Final Cínico. Que é uma espécie de Final Feliz adaptado aos novos tempos, e do qual o final de O Jogador é uma brilhante recriação metalinguística, porque aparenta ser do estilo antigo, quando na verdade é o estilo novo, mas o estilo novo sendo criticado por um dos seus inimigos mais ferozes.

O Final Cínico não diz que os bons valores sempre prevalecem. Quem prevalece é a esperteza, e, quando necessário, a força bruta. Triste do poder que não pode. Trair não é vergonhoso; vergonhoso é deixar-se trair sem ter traído primeiro. Para chegar no topo vale tudo, pois quem determina o que vale e o que não vale é quem está no topo. 

Curiosamente, do ponto de vista estético e narrativo o Final Cínico de hoje é uma herança do cinema feito pelos cineastas esquerdistas, amargos, que nos anos 1960 tudo fizeram, com seu cinema cético e descrente, para sabotar o Final Feliz tradicional, considerado politicamente conservador e moralmente papai-e-mamãe.