terça-feira, 6 de julho de 2021

4721) "A Morte em seu Jardim" (6.7.2021)



Olha que beleza de tradução para o título do filme de Luís Buñuel La Mort En Ce Jardin (1956). Os catadores de lêndeas me enviarão telegramas expressos, caríssimos, informando que gramaticalmente deveria ser “A morte neste jardim”. Acontece que no filme, que acabo de ver pela primeira vez, tem muita morte, e jardim nenhum: é só um enfeite poético.
 
É um dos filmes mais obscuros de Luís Buñuel, e sempre despertou minha curiosidade por ser sua única colaboração com outro dos meus autores favoritos, Raymond Queneau, que, alguns anos antes dele, fez parte do movimento surrealista parisiense dos anos 1920.  
 
Queneau saiu da França e passou duas semanas no México com Don Luís, colaborando no roteiro. Buñuel, em suas memórias, tem uma recordação das mais simpáticas de seu trabalho junto ao “pai de Zazie”. O roteiro que acabou nas mãos de Queneau tinha sido oferecido a Jean Genêt, o que diz bem da loteria de idéias que é o cinema profissional.
 

(Buñuel + Queneau) 
 
O filme tem duas metades tão distintas quando um Lado A e um Lado B: a Vila e a Floresta.
 
Na primeira, vemos uma área de mineração de diamantes onde um governo latino-americano autoritário oprime os mineiros e sufoca suas rebeliões desorganizadas. Por entre greves, revoltas, tiroteios, fuzilamentos, a força das circunstâncias forma um grupo de pessoas que fogem do exército.
 
O grupo tem Shark, um aventureiro cheio de recursos (Georges Marchal); Djin, uma prostituta bonitona e enganadora (Simone Signoret); Castin, um garimpeiro que está juntando diamantes para montar um restaurante quando voltar à França (Charles Vanel); sua filha Maria, bonita, surda e muda, protegida o tempo inteiro pelo pai (Michele Girardon); e o jovem e idealista Padre Lizzardi (Michel Piccoli).



Na segunda parte, esse grupo em fuga se perde na floresta, perseguido pelas tropas (eles tinham explodido um quartel, matando vários soldados), e começa a ocorrer dentro dele um jogo de poder, de ameaças, de traições, enquanto eles tentam alcançar a fronteira, ou pelo menos um rio que possam cruzar com alguma balsa improvisada..
 
Existe a crise social que coloca de um lado governo, empresas mineradoras e exército, e do outro os trabalhadores e os “independentes” em geral, como o padre e a prostituta. Tipicamente de Buñuel, não existe nenhum personagem que possamos ver como herói. Mesmo os que executam gestos nobres têm mais de uma motivação. Buñuel é do tipo que aceita a maldade humana como um dado obrigatório da realidade, mas desconfia sempre da bondade.
 
Em termos da obra do diretor, a primeira metade do filme, com suas tensões sociais entre patrões e empregados, se assemelha muito ao filme que ele fez imediatamente antes, Cela s’appelle l’aurore (1955), enquanto na segunda, com o grupo perdido na jângal amazônica, há elementos de Robinson Crusoe (1952) e do Anjo Exterminador (1962), em que um grupo isolado da civilização reverte lentamente à barbárie. As cenas de tiroteio urbano que encerram o Anjo, aliás, parecem tiradas da parte inicial deste filme.



Um dos prazeres de quem vê um filme de Buñuel, mesmo os que ele fez de maneira mais indiferente, no México, é descobrir aqui e acolá as imagens buñuelescas, que lembram o surrealismo.
 
Uma das mais fortes deste filme é a imagem da cobra que é morta e comida pelos fugitivos, quando estão a ponto de morrer de fome. Buñuel mostra uma imagem da pele vazia da cobra, depois do repasto, coberta por uma colônia fervilhante de formigas vermelhas.


Na fuga, eles encontram os restos de um avião caído na jângal. Encontram comida e bebida (champanhe quente, bebida no meio dos mosquitos). E roupas. É quando vemos Simone Signoret, que até então estava enlameada, desgrenhada, roupa em farrapos, surgir com vestido negro decotado, vestido de noite, coberta de jóias e diamantes achadas entre os defuntos da aeronave. Esta cena (e seu desfecho) é uma das mais buñuelescas do filme inteiro.
 
Em suas memórias (Meu Último Suspiro) Buñuel recorda elogiosamente uma pequena cena escrita por Raymond Queneau, que infelizmente “dançou” na montagem final. Djin, a prostituta, vai fazer compras no armazém. Pede isso, aquilo, e uma barra de sabão. Nesse instante, recebem a notícia de que um batalhão do exército está chegando à vila, para sufocar a rebelião. E ela diz: “Não, peraí, me dá seis barras.”  Com a vila cheia de soldados, claro, o trabalho vai aumentar.



A relação “tapas e beijos” entre ela e o aventureiro Shark me lembrou a dos personagens de Julie Christie e Warren Beatty no McCabe and Mrs. Miller (1971) de Robert Altman, que vi dias atrás. É a atração-com-atrito entre homens e mulheres explorados, calejados, meio ingênuos, meio canalhas. Personagens complexos, como os que a gente encontra em qualquer zona do baixo meretrício; muito além dos bons-e-maus do folhetim e dos dramas “sociais” com intenções doutrinárias.
 
A certa altura, um personagem começa a queimar cartões postais para alimentar a precária fogueira que eles acendem no meio da floresta; um cartão-postal de Paris à noite se anima, vemos as luzes piscando, os faróis dos carros em movimento. 

E no instante seguinte lá vai o postal para o fogo. Como a coroa de espinhos em Viridiana (1961), como o violoncelo em O Anjo Exterminador (1962). Simbolismo da civilização sendo destruída pela barbárie? Buñuel dava de ombros para o simbolismo. As imagens dele iam direto ao inconsciente coletivo. Todo “simbolismo” é racionalização a posteriori, é tentativa de domesticação do relâmpago que nos inquietou.


Alguns críticos dizem que este filme é um dos menos interessantes de Buñuel. Como tantos outros de sua fase mexicana, é um filme de ação constante, narrativa bem encadeada, personagens que suscitam um permanente interesse. Falta-lhe talvez o anarquismo e o niilismo dos seus grandes filmes surrealistas.
 
Buñuel recorda em suas memórias:
 
Durante a rodagem de La Mort En Ce Jardin, junto ao lago de Catemaco, o chefe da polícia local, que limpara vigorosamente toda a região, ao ver que o ator francês Georges Marchal gostava de armas e de tiro, convidou-o, como se tratasse de algo perfeitamente natural, para uma caça ao homem. Era preciso ir no encalço dum assassino conhecido. Marchal recusou com horror. Algumas horas mais tarde, vimos os policiais passarem e o chefe informou-nos negligentemente que o assunto já estava encerrado.
(Luís Buñuel, O Meu Último Suspiro, Lisboa, Distri Editora, trad. Maria Helena Santos; p. 228)
 
André Breton tinha razão; o surrealismo é apenas uma região onde o real e o fantástico deixam de ser percebidos como opostos.
 
Na última cena do filme, os dois únicos sobreviventes do grupo emergem da floresta e avistam o lago, em cuja margem oposta está o Brasil. É o seu caminho de fuga. Um cínico pode vir a considerá-lo um dia o final mais trágico em toda a filmografia de Luís Buñuel.