sexta-feira, 16 de julho de 2010

2276) Saramago e o fantástico (24.6.2010)





A Passarola, de Bartolomeu Gusmão

Não sei se alguém estará celebrando José Saramago como o grande escritor de literatura fantástica que foi. 

 Seu livro mais conhecido, o Memorial do Convento (1982), é uma história gótico-alucinatória que envolve visões paranormais e uma máquina voadora, a Passarola de que ouvimos falar nos livros de História. É um romance “mainstream” que flerta com a fantasia e com a proto-ficção científica, e uma referência obrigatória para qualquer estudo sobre Fantasia Ibérica.

História do Cerco de Lisboa (1989) é uma experiência de História Alternativa: o que seria o mundo se determinado acontecimento histórico tivesse ocorrido de modo diferente do que de fato se deu? 

No livro de Saramago, isso acontece de maneira ainda mais fantástica, pois basta um revisor de provas tipográficas inserir a palavra “não” num texto, fazendo com que os Cruzados não ajudem os cristãos portugueses a retomar Lisboa, invadida pelos muçulmanos. Saramago reconta em tom de crônica história o que teria ocorrido nesse universo paralelo ao nosso.

Em A Jangada de Pedra (1986) a Península Ibérica desprega-se do continente europeu e sai à deriva pelo Oceano Atlântico, carregando seus milhões de habitantes, suas culturas e civilizações. É uma alegoria política (o viés político é um dos mais fortes na obra de Saramago) mas são notáveis a ousadia imaginativa e o modo rigoroso como ele extrapola as consequências da idéia inicial. 

Isso para não falar no Ensaio Sobre a Cegueira (1995), uma fábula apocalíptica em que toda (quase toda) a humanidade perde a visão, fazendo desmoronar a civilização. Uma idéia que a ficção científica já explorou de variadas formas, desde O Dia das Trífides (1951) de John Wyndham até A Escuridão (1963) de André Carneiro.

A alegoria também está presente em As Intermitências da Morte (2005), que tem um ponto de partida semelhante ao de A Desintegração da Morte do brasileiro Orígenes Lessa (1948): o que aconteceria ao mundo se de repente ninguém mais morresse? 

A narrativa de Saramago se inicia no dia 1 de janeiro, o que nos lembra a descrição da Morte feita por outro brasileiro, Augusto dos Anjos: 

Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro 
sai para assassinar o mundo inteiro 
e o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Não duvido que na vasta obra de Saramago existam vários outros textos que poderiam ser considerados de natureza fantástica. Mas acho que estes exemplos bastam para mostrar que o recurso à mecânica do fantástico era algo natural no modo de pensar do escritor. Não era tentativa de imitar alguém, exorcizar uma influência, seguir uma moda. Mas duvido que algum crítico literário, indagado sobre os grandes nomes da literatura fantástica em língua portuguesa, lembrasse espontaneamente do seu nome. 

É uma dessas obras em que há uma face iluminada (o Realismo) e uma face oculta (o Fantástico). Algo que está ali mas ninguém vê, porque não foi ensinado a ver especificamente aquilo.





2275) Borges vai a leilão (23.6.2010)



A casa de leilões Bloomsbury, de Nova York deve leiloar hoje uma certa quantidade de livros e manuscritos de diversos autores, entre eles John Steinbeck, Thornton Wilder, Julio Verne e Jorge Luís Borges. O filé do leilão será um manuscrito do famoso conto borgiano “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”, do qual não existe, ao que parece, nenhuma outra cópia do próprio punho do autor (o conto é da época em que Borges não tinha ficado cego). A Bloomsbury afirma que é o documento borgiano mais valioso já levado a leilão, e espera vendê-lo por uma soma entre 200 e 300 mil dólares. Fui no saite da Bloomsbury e capturei imagens das 12 páginas do manuscrito, na caligrafia miúda e insetóide de Borges, em que as letras quase não se enlaçam umas nas outras, mas sucedem-se isoladas, embora juntinhas. Acho que muita gente tem esse prazer meio fetichista de ver como é um texto famoso escrito de próprio punho pelo seu autor, com as correções, rasuras, substituições, flechinhas puxadas do meio de um parágrafo para indicar uma frase escrita na margem.

Este conto tem um interesse especial para os leitores norte-americanos. Foi o primeiro conto de Borges publicado nos EUA, no famoso Ellery Queen’s Mystery Magazine, revista cuja edição brasileira é muito conhecida dos aficionados da literatura policial. Em 1948 o EQMM publicou uma tradução desse conto feita por Anthony Boucher, com uma apresentação bastante elogiosa sobre o “Señor Borges”, que na época era conhecido apenas nos círculos literários de Buenos Aires.

Como sou tiete, fui no saite da casa de leilões e baixei as 12 páginas do manuscrito, para tirar uma dúvida, entre outras coisas. Quem já leu este famoso texto sabe que ele conta o encontro do narrador com um sinólogo, Stephen Albert, e que o nome desse personagem é o mesmo de uma cidade onde se deu um fato importante da I Guerra Mundial. Esse sobrenome é um detalhe essencial para o conto (embora o motivo dessa importância só se revele nas últimas linhas). Ora, na edição norte-americana (tenho um exemplar do EQMM de 1948) o sinólogo se chama Stephen Corbie, nome de outra cidade envolvida na I Guerra. Essa disparidade sempre me inquietou; será que havia duas versões do conto, usando cidades diferentes para dar nome ao personagem? Ver o nome “Stephen Albert” escrito pelo próprio punho de Borges elimina pelo menos uma das possibilidades. Tudo leva a crer que Ellery Queen usou do poder discricionário concedido aos editores para substituir, sabe-se lá por que razões historiográficas, o nome da cidade sugerida por Borges por outra que a seu ver seria mais plausível (pelo menos aos olhos de um leitor norte-americano). Editores fazem isso o tempo inteiro. O próprio Ellery Queen jamais terá imaginado que esse conto de um argentino desconhecido chegaria um dia a ser leiloado por uma fortuna. E fico imaginando a cara de Borges ao receber a revista pelo Correio e ver que tinham trocado o nome do seu personagem.

2274) Brasil 3x1 Costa do Marfim (22.6.2010)



O Brasil melhorou 100% do primeiro para o segundo jogo. Começou difícil, é claro, jogo amarrado e atravancado pela seleção africana, que marcava forte. O Brasil quase fez 1x0 com Robinho com um minuto de jogo, num contra-ataque em que deveria ter lançado Luís Fabiano. E Fabiano fez o gol após uma roubada de bola e troca rápida de passes com Kaká, para um chute final a queima-roupa, golaço muito semelhante ao que o Donovan (EUA) fez na Eslovênia. No 2o. tempo, Fabiano fez outro golaço dando dois lençóis nos zagueiros; mesmo tendo levado a bola com o braço na ajeitadinha final, foi um belo gol, e fez justiça. O Brasil começou a jogar do jeito que gosta e Elano fez o terceiro gol com relativa facilidade.

Aí começou a aparecer um lado preocupante da Seleção de Dunga: o jeito ríspido e impaciente, que (não, não é preconceito) tem muito a ver com o espírito que o técnico passa para o time. Como os africanos, em desespero, começaram a fazer faltas violentas e desleais, o Brasil entrou no jogo deles. Kaká, que apesar de evangélico não é nenhum santinho (pelo contrário, é um jogador que bate muito, e só entra rachando em bola dividida) acabou sendo expulso. Meu medo é que nos próximos jogos aconteça o mesmo com os nossos jogadores que têm antecedentes de brucutu: Luís Fabiano, Felipe Melo, Daniel Alves...

Outra coisa preocupante é o apagão crepuscular do nosso time, que em dois jogos contra adversários fracos tomou dois gols inadmissíveis quando já estava com um placar confortável. Os gols feitos pela Coréia e Costa do Marfim pegaram nossa defesa desatenta, relaxada, um esperando pelo outro. Se o time está ganhando de 2x0 de uma Alemanha ou Holanda e sofre um gol assim, vira um pesadelo.

O Brasil vai jogar com Portugal sem muito aperto. A Copa só começa na segunda fase, das oitavas em diante. Esta primeira fase de grupos é a festa político-turístico promovido pela Fifa, é a fase onde aparecem azarões como Honduras, Nova Zelândia, etc. Carnaval e Woodstock nas arquibancadas, todo mundo tendo a chance de jogar numa Copa. Nas oitavas, ficam só os 16 times que têm algo para mostrar, e a Copa de verdade começa. O Brasil vai estar lá, e agora, depois de ver o futebol pobre apresentado pela maioria, acho que suas chances aumentam. Africanos e europeus são uma decepção. Os times da América são a grande surpresa, quase todos estão indo bem e com chance de passar para a fase seguinte.

Escrevo este texto no domingo à noite; até agora nenhuma seleção empolgou, e só quem tem duas vitórias são Brasil, Argentina e Holanda. Isto não quer dizer muita coisa. Na segunda fase, quem perder sai, e ninguém garante que, por exemplo, a Argentina, que tem jogado muito bem, não possa perder para México ou Uruguai, por exemplo, ou que o Brasil não possa perder para Espanha ou Chile. Daí em diante a competição vai se nivelando – tomara que num nível melhor do que o que tivemos até agora.

2273) Drummond: “Alguma Poesia” (20.6.2010)



Alguma Poesia foi o primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade. Publicado em 1930, seus 80 anos estão sendo comemorados com recitais e uma edição especial organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz. É um livro fundador, indispensável para entender a poética pessoal de Drummond (já está praticamente tudo ali, germinando, no livrinho do rapaz de 28 anos) e o modo como o Modernismo abalroou a poesia de então. E, por extensão, para entender a poesia que se faz hoje no Brasil. Alguma Poesia é uma leitura obrigatória e uma influência indelével nos jovens aspirantes a poeta dos últimos 40, 50, 60 anos.

Basta vermos o “Poema de Sete Faces” que o abre. “Anjo torto”, “gauche”, “uma rima e uma solução”... tudo isto saiu do livro para entrar no idioma. Precisava um bocado de coragem para chamar isso de poema, não porque não o seja, mas porque seu arranjo formal, sua dicção e seu olho enviesado sobre o mundo não são o que se esperava dos poetas de 1930. Pra começo de conversa, o poema não parece ter sequência, coerência, nem progressão. São sete fragmentos colados. Recordo a primeira impressão que tive quando o li há mais de quarenta anos: “sete retalhos de cores diferentes costurados uns nos outros”. Como se fossem sete tentativas de começar um poema, que não conseguissem avançar, mas fossem preservadas, por terem algum mérito próprio.

Os fragmentos se alternam entre confissões emotivas na primeira pessoa e flashes captados com certo distanciamento, certa neutralidade afetiva. As estrofes 2, 3 e 4 são como ceninhas de um videoclip urbano em que se confundem casas, homens, mulheres, bondes, pernas, bigodes, óculos. São o mundo de fora do poeta, o mundo que ele vê passar e que avalia com certo distanciamento brechtiano. É preciso um esforço de imaginação para pensarmos que o “homem atrás dos óculos e do bigode” poderia ser, talvez seja, o próprio poeta, vendo-se com olhos alheios, vendo a si próprio como rosto e mistério mudo.

Mistério que não existe na estrofe 1, sua auto-ironia, sua impudência juvenil de ousar ser do contra; na estrofe 4 e seu surpreendente lamento de auto-comiseração, que soaria até patético se não estivesse contrabalançado ou diluído pelas demais estrofes; pela melancolia e altivez solitária da famosíssima penúltima estrofe; pelo exemplar estranhamento da estrofe final, na qual tanto podemos interpretar a voz do poeta dirigindo-se a um amigo ou ao próprio leitor, quanto a voz de alguém dirigindo-se ao poeta.

Fernando Pessoa disse, celebremente, que toda poesia lírica é poesia dramática, todo sentimento é inventado, toda vez que o poeta diz “eu” está falando de outra pessoa, até quando julga sinceramente estar falando de si mesmo. Drummond, contemporâneo (à distância) de Pessoa, abriu seu livro de estréia com estes fragmentos que parecem pertencer a sete heterônimos. E o resto da vida tentou (ao inverso do poeta português) reunir todos sob um só nome e um só rosto.