quarta-feira, 13 de março de 2019

4445) Os doidos literários (13.3.2019)



Raymond Queneau chamou de “doidos literários" ("fous littéraires"), em seu livro Les Enfants du Limon (1938), todos aqueles sujeitos fora-de-esquadro que se dedicam fervorosamente ao estudo e à especulação, e acabam produzindo teorias sem pé nem cabeça sobre o Sistema Solar, ou sobre a Pedra Filosofal, ou sobre a Quadratura do Círculo, ou qualquer outro tipo de “viagem” pseudocientífica.

Queneau passou muitos anos de sua vida estudando esse pessoal tipo Terra Plana, Universo de Gelo, e assim por diante. Não só esses – também os “linguistas de fim de semana”, capazes de inventar um idioma totalmente arbitrário que, acham eles, se fosse aprendido por toda a humanidade acabaria com as guerras e as epidemias.

Neste capítulo, aliás, é imbatível (e divertidíssimo) o livro Babel e Antibabel de Paulo Rónai (Ed. Perspectiva, São Paulo), onde ele analisa as linguas inventadas mais conhecidas, como o Esperanto e o Volapuk, e outras mais excêntricas.


O que leva esses malucos a dedicarem sua vida inteira a projetos gigantescos dessa dimensão? Maldo eu que é uma mistura de Complexo de Inferioridade com Complexo de Superioridade, uma receita mais frequente do que se imagina.

Muitos deles são indivíduos com baixa auto-estima, tímidos, macambúzios, com pouco traquejo social. Muitos são solteirões misantropos, outros se refugiam em casamentos formais onde há uma mulher que cuida deles e não faz perguntas. Ganham a vida como bancários, professores, contabilistas, qualquer profissão que possa ser mantida numa rotina confortável.

Uma vez obtida esta segurança, eles decolam numa viagem (=delírio) de grandeza, de genialidade, uma verdadeira embriaguez conceitual de quem se considera o Gênio Supremo da Humanidade.

A pesquisa de Queneau localizou centenas de “doidos literários”; ele não conseguiu publicá-la (a pesquisa em si já estava se parecendo um pouco com as doidices dos pesquisados), mas conseguiu contrabandeá-la para o romance Les Enfants du Limon, "Os filhos do barro", onde ela aparece como o projeto intelectual de Monsieur Chambernac e seu ajudante Purpulan, uma dupla meio “Bouvard e Pécuchet”.

Chambernac afirma estar pesquisando apenas “os doidos literários franceses do século 19”. São aqueles cuja existência foi confirmada mas que não tiveram a glória de formar uma seita de seguidores. Para Chambernac/Queneau, quem chegou a ter discípulos não pode ser considerado “um doido literário”.

Essa pesquisa foi retomada depois por André Blavier no catatau de 924 páginas Les Fous Littéraires (Ed. Henri Veyrier, Alençon, 1982), com um impressionante repertório de pesquisa, ampliado a partir do de Queneau, de quem Blavier (1922-2001) foi amigo e discípulo.

Uma pequena amostra, com o “Sumário” de seu livro:



O que são os doidos literários?

Queneau, em Enfants..., estabelece que não basta ser um autor meio excêntrico que imagina ter feito uma super-descoberta pseudo-científica. É preciso não haver seguidores, não haver fama, não haver o elogio da crítica, não haver reedições de sucesso. Ou seja: quando o Doido Literário começa a ter um certo poder social, sua obra perde a graça, a graça do sintoma.

Queneau sabia muito bem o quanto as multidões podem ser levadas a acreditar numa teoria sem pé nem cabeça, seja ela científica ou religiosa. Ele eliminava (Enfants, cap. XXI) “todos os místicos, visionários, espíritas, teosofistas etc., cujas elucubrações possam ser ligadas a outras já mais ou menos reconhecidas, e que a prudência me aconselha a não tratar de forma leviana.”

A Pseudo-Ciência é uma arma política poderosa. Vale a leitura dos capítulos que Pauwels & Bergier dedicaram em O Despertar dos Mágicos às teorias do maluco Hans Hörbiger, chamado por alguns “o guru de Adolf Hitler”, propositor de uma Cosmogonia Glacial em que o Universo era visto como uma luta entre o Fogo e o Gelo.

Todos eles sabem que as pessoas não são motivadas pelo que compreendem, e sim pelo que desejam de forma profunda, e que se esse desejo for satisfeito, ou se a expectativa dele for estimulada, o sujeito é capaz de “compreender” tudo que lhe explicarem, inclusive que dois e dois são cinco e que tamanduá e bicicleta são a mesma coisa.

Os trechos dos doidos literários citados em Les Enfants... (Le Barbier, Roux, Hussenot, etc. etc.) são de deixar perplexo um leitor moderno. Não pelo trabalho conceitual de inventar tudo aquilo, porque afinal de contas um escritor de ficção científica ou de fantasia (como Tolkien) é capaz de criar enciclopédias igualmente gigantescas e detalhistas. Mas o escritor sabe que está inventando. O doido literário pensa que está descobrindo.

É a certeza da própria certeza (e da própria genialidade) que move esses indíviduos, e é uma sorte da humanidade que eles sejam, na esmagadora maioria, sujeitos obscuros e arredios. Uma mistura de Policarpo Quaresma com Bispo do Rosário.

Porque quando acontece de ser um cara com carisma, com eloquência, extrovertido, ambicioso,  arregimentador, calculista... Deixa de ser um doido literário. Passa a ser um perigo para a literatura, e para o mundo.