domingo, 5 de julho de 2009

1149) A Besta Loura novamente (18.11.2006)


(Aleister Crowley e Barbara Bush)

A melhor coisa das Teorias da Conspiração é que nelas, ao contrário da vida real, tudo faz sentido. Tudo se encaixa, tudo acaba se fechando num desenho tão harmonioso que cada revelação nos faz exclamar: “Arrá!... Então era por isso!”. Aqueles que acreditam ser George W. Bush “a Besta Loura Calibã”, para usar um termo proposto por Ariano Suassuna na Pedra do Reino, acabam de receber uma caixa de munição pesada. No blog de um tal de Joseph Cannon foi levantada uma lebre que não tem mais tamanho: o presidente Bush seria neto de Aleister Crowley, o mestre da Magia Negra que foi chamado “a Besta do Apocalipse”. Crowley foi um desses charlatães pseudo-demoníacos que exercem fascinação sobre gente sem rumo, como foi o caso de Raul Seixas e Paulo Coelho, dois brasileiros ingênuos que foram por algum tempo seus admiradores. (Hoje, Paulo Coelho quer ouvir falar de tudo, menos de Crowley).

A história é longa, e sugiro ler os detalhes em: http://cannonfire.blogspot.com/2006/04/george-w-bush-barbara-bush-and.html. Crowley (1875-1947), ocultista famoso, fundou vários grupos dedicados à prática da Magia, onde se praticavam ritos sexuais. Era um sujeito egocêntrico, intelectualmente brilhante, capaz de dar os maiores golpes financeiros e de conquistar qualquer mulher (ou homem) por quem se sentisse atraído. À sua volta viviam poetas e socialites, gente com dinheiro, desocupada, e doida para ser cobaia da Magia Sexual.


Uma delas era Pauline Pierce, americana que por volta de 1924 deixou os filhos pequenos nos EUA para juntar-se à “entourage” de Crowley. Pauline era casada com Marvin Pierce, presidente da McCall Corporation, que entre outras coisas publicava as revistas McCall’s e Redbook. Pauline conviveu na Europa vários meses com sua amiga Nellie O’Hara, o amante dela, Frank Harris (autor do clássico erótico Minha Vida, Meus Amores) e Crowley. Em outubro de 1924, Pauline voltou para os EUA. Em junho de 1925, deu à luz sua terceira criança, uma menina que recebeu o nome de Barbara. A qual, muitos anos depois, se tornaria a esposa de George Bush, e mãe do atual presidente George W. Bush.

Vejam bem: estou vendendo pelo preço de fatura. Pelo que sei, tudo isto pode ter sido inventado pelo dono do blog. Consultei o capítulo dedicado a Crowley por Colin Wilson em O Oculto (Ed. Francisco Alves), mas este não menciona Pauline Pierce. Tanto Crowley quanto a família Bush, contudo, são personagens públicos, de vida bem documentada, e quem duvidar pode ir atrás e checar os nomes e as datas. A questão levantada por Cannon é de que existe a possibilidade de que Barbara, mãe de George W. Bush, não seja filha de Marvin Pierce, e sim um fruto das experiências de magia sexual que Pauline teria praticado com Crowley. O blog de Cannon compara uma foto de Crowley com uma foto de Barbara Bush, uma mulher severa, de cabelos brancos, que parece um general vestido de “drag queen”. Cá pra nós, parecem irmãos.

1148) Mais jargão da FC (17.11.2006)


(Planet Stories, julho 1952)

Falei aqui há pouco tempo sobre as belezas literárias da ficção científica, o modo como a FC expande e enriquece nossa maneira de ver as coisas através da simples escolha de palavras, e da criação verbal de imagens ou situações que não ocorreriam espontaneamente a nossa imaginação. Existe na FC uma forma peculiar de poesia que nasce do conhecimento científico do autor somado à sua habilidade em compor uma frase que ao mesmo tempo nos evoca algo familiar e desnorteia nossos pontos de referência por nos fazer considerar dimensões muito além das que estamos acostumados a conceber.

Neuromancer, o grande romance cyberpunk de William Gibson, começa com uma frase que ficou famosa: “O céu sobre o porto era da cor de uma tela de TV ligada num canal fora do ar”. É o diapasão ideal para que o leitor entre no tom de um texto onde se misturam irrealidade, tecnologia e desenraizamento. Um conto de Greg Egan, “Learning to Be Me”, tem como tema uma tecnologia futura em que uma espécie de “disco rígido” é implantado na mente das pessoas, gravando todas as suas memórias, para que sua personalidade possa um dia ser transplantada para um novo corpo. O conto começa assim: “Eu tinha seis anos quando meus pais me disseram que dentro do meu cérebro havia uma pequena jóia escura, aprendendo a ser quem eu sou”.

Um dos melhores contos do brasileiro Fausto Cunha, “61 Cygni”, conta como uma prostituta percorre as ruas de madrugada e encontra-se com um cliente estranho, que a leva para um local escuro e aí se transforma numa criatura indizível que a ataca. Enquanto morre, transfixada de dor, ela ainda tem tempo de pensar que “eles” talvez desconheçam a dor e não saibam o mal que estão lhe fazendo. Mas aí ela ouve uma voz em sua mente dizer: “Sabemos, sim. Sabemos TUDO”. E o último parágrafo do conto diz: “O raio mergulhou no espaço, rumo à planície incandescente onde os Seres de Cristal estão imóveis à espera. Estão imóveis, e têm a forma de uma rosácea”. Meu amigo! Se isto não for grande literatura, então é melhor eu mudar de ramo, porque não entendi nada.

Claro que nem tudo na FC tem este nível. Li há pouco num saite esta citação de um conto de um tal de Kenyon Holmes intitulado “The Man Who Rode the Saucer”, ou seja, “O Homem que Pilotava o Disco”. Ao descrever os alienígenas de sua história, ele se sai com esta pérola: “Não eram marcianos... nem venusianos. Eram de regiões muito mais longínquas. De uma Galáxia vizinha, com seu próprio sol e seus próprios planetas; vinham de uma estrela que, pelas melhores estimativas de Creigh, devia estar situada na órbita de Antares, o seu sol”. Para quem tenha um mínimo de conhecimento de astronomia, este trecho é Zé Limeira puro, é o Samba do Crioulo Doido, é o lado mais caricatural e mais divertido da “space opera” dos “pulp magazines”. Porque nem só de Grande Arte vive um leitor. Se não existisse o Íbis, não compreenderíamos o que faz o Barcelona.

1147) Os aloprados (16.11.2006)


Sigmund Freud dizia (ou, se não disse, disseram que ele tinha dito) que não há escolha inocente de palavras: tudo é proposital. Neste ponto ele está de acordo com qualquer teoria poética, e o que faz é transferir para a fala instintiva, corrente, cotidiana, o mesmo grau de planejamento, intencionalidade e escolha que governa a fala poética. Poeta passa meia hora escolhendo uma dúzia de adjetivos. O mau poeta coloca os doze; o bom poeta corta onze e deixa apenas o menos previsível, ou nem este. Mas cada palavra é retirada do dicionário ou da memória como quem retira uma lâmina da gavetinha do laboratório, para examiná-la à luz e contra a luz, de um lado, do outro, à lupa, ao microscópio. E depois dá-se por satisfeito: “Tudo bem, é esta mesma”.

Quando estourou o escândalo mais recente do governo Lula, o do “dossiê”, o presidente reclamou em público que aquilo tinha sido obra de “uns aloprados” do Partido. Pergunto eu, lacanianamente: por que “aloprados”? Por que não – digamos – “malucos”, “idiotas”, “irresponsáveis”, ou algo mais? Por que exatamente essa palavra?

A primeira vez que eu ouvi essa palavra foi no título do filme O Professor Aloprado de Jerry Lewis (não vi a refilmagem estrelada por Eddie Murphy). Neste filme, Lewis faz o papel do professor Kelp, um sujeito dentuço, “nerd”, desajeitado, sem traquejo social, que é ridicularizado pelos alunos e esnobado pela mocinha loura que ama em segredo. Mexendo no seu laboratório, ele inventa uma droga poderosíssima com a qual se transforma em Buddy Love, um cara auto-suficiente, galã, bonitão, conquistador irresistível, que se torna, desde que aparece pela primeira vez, a sensação do “campus”. Todos os alunos querem se parecer com ele, todas as garotas querem... querem... “Afinal, o que querem as mulheres?”, perguntava o Dr. Freud. Seja lá o que fôr, todas queriam com Buddy Love. Depois dos obrigatórios mal-entendidos e suspenses, Buddy Love vê-se diante de uma platéia enorme no momento em que o efeito da droga vai passando, e ali ele se retransforma no Professor Kelp, diante de todos. A lourinha, claro, descobre nesse instante que gosta mais dele desse jeito, e tudo acaba bem.

“Aloprado”, então, significa isto. Significa alguém que por muitos anos se sentiu barrado no baile, excluído da festa. Ficava olhando pela janela, vendo todo mundo se divertir à tripa-forra, e ele lá fora, no sereno, saboreando a felicidade alheia por telepatia. Um sujeito de bom coração, doido para se transformar noutro cara – um cara sem escrúpulos mas bem sucedido, frio e calculista mas vestindo ternos impecáveis, arrogante mas excelente cantor e pianista, sacaneador de mulheres mas (mistérios do coração!) tendo as mulheres todas aos seus pés. “Aloprado” significa: alguém que sempre teve fama e pose de bonzinho e sempre se deu mal, e de repente começou a achar que a melhor maneira de se dar bem era fazer o que os outros faziam.

1146) O jargão da FC (15.11.2006)




(Astounding SF, novembro 1953)

A ficção científica é como o xadrez, a música sinfônica ou a química orgânica. Para quem não domina seus conceitos, é um caos sem sentido. Para quem os aprendeu, é uma fonte inesgotável de beleza, conhecimento e evolução mental. 

O uso inesperado de palavras comuns e a invenção de novas palavras é um dos recursos mais fascinantes desse tipo de literatura. Há um exemplo clássico, muito citado pelos críticos, de uma história de Robert Heinlein ambientada no futuro onde a certa altura o autor diz, assim como quem não quer nada: “The door dilated”. A porta se dilatou. A porta se expandiu, se alargou. 

O autor implica que no futuro as portas serão aberturas que se dilatarão, como pupilas, para que as pessoas passem por elas, em vez de consistirem em abertura vedadas por painéis que giram em ângulo sobre dobradiças. As portas poderão ser (e os cenógrafos dos filmes de FC adotaram isto rapidamente) como diafragmas de máquinas fotográficas.

Uma frase discutida há pouco na New York Review of SF é bem típica das circunvoluções barrocas a que a FC pode chegar, para deleite dos aficionados e perplexidade dos leigos. Críticos ficaram debatendo os méritos ou os excessos de uma frase de Charles Stross num livro recente: 

“An unoptimized instance of H. Sapiens maintains state coherence for only two to three gigaseconds before it succumbs to necrosis”. Mais ou menos: “Um exemplar não-otimizado de Homo Sapiens mantém coerência de estado por apenas dois ou três gigassegundos antes de sucumbir à necrose”. 

Um gigassegundo (um bilhão de segundos) dá aproximadamente 31,7 anos. Duas ou três vezes isto é uma média de tempo de vida bem razoável para um corpo humano não-otimizado, ou seja, sem receber os implementos, próteses, aditivos bio-moleculares ou outros fatores com que a civilização futura possa aumentar nossa longevidade. Sem isso, é claro que entre os 62 e os 93 anos um ser humano sucumbe à necrose.

O que há de interessante nesta frase é que nela o jargão científico – que infelizmente provoca tanta rejeição na maioria dos leitores – tem uma dupla função: informativa e poética. “Poética” com o sentido bem específico de “intensificação de efeito”. 

Este resumo do destino biológico do ser humano é como aqueles documentários em que, por meio da câmara acelerada, vemos a terra se abrir, uma folhinha verde brotar, em alguns segundos uma arvorezinha tenra esticar-se para o alto, com um caule que vai aos poucos engrossando e se escurecendo, abrindo galhos fortes e ramos mais finos em todas as direções, cobrindo-se de folhas que rapidamente caem e são substituídas por outras, até que os galhos secam, o tronco mirra, apodrece e se desfaz. 

Um século inteiro de vida em poucos segundos. Essa capacidade de sintetizar o tempo cósmico e a existência humana em poucas frases, que foi uma especialidade de Augusto dos Anjos, é um dos muitos e raros prazeres que encontramos na ficção científica.




1145) O direito de copiar (14.11.2006)



Antigamente (e bota antigamente nisso) amigos meus viviam de gravar fitas cassetes. Hoje a fita cassete marcha para o Museu das Tecnologias Obsoletas, indo juntar-se ao stêncil, à máquina thermofax e à fotografia lambe-lambe. Mas naquele tempo quem tinha uma boa discoteca e um bom gravador produzia fitas caseiras. “Me arranja uma fita só com Joan Baez cantando Bob Dylan”, dizíamos, e o cara passava uma tarde procurando os LPs e copiando as faixas de uma em uma. Pedíamos uma fita com músicas de amor para dar no aniversário da namorada. Ou uma fita só com forrós para um arrasta-pé no sítio de Fulano. Ou uma fita reunindo todos os compactos de Chico Buarque.

Pasmem, mas a indústria musical perseguiu de arma em punho essa industriazinha de fundo-de-quintal. Um artigo recente de Joey deVilla lembra os anúncios que saíram nas páginas das revistas de música: “Fitas Domésticas Estão Matando a Música – E São Ilegais”, e o logotipo de um cassete imitando uma caveira retangular, com dois ossos cruzados embaixo. Não era só a fita de música, era também a cópia VHS de filmes. O notório executivo Jack Valenti disse uma vez: “O gravador de video-cassete está para o produtor de cinema dos EUA e o público de cinema dos EUA assim como o estrangulador de Boston estava para as donas-de-casa que passavam o dia sozinhas”.

Hoje tudo se repete com o MP3, o CD digital, os saites de troca de música pela Internet. Existe uma batalha jurídica das mais ferozes tentando impedir um fato consumado. Eu me lembro de um velho princípio que tinha nos manuais marxistas do meu tempo de estudante: “Quando os meios de produção evoluem, as relações de produção devem evoluir em paralelo com eles, acompanhando-os. Se não o fizerem, serão atropeladas por eles”. Como esse pessoal tem com Marx a mesma relação que os vampiros têm com a cruz, nunca assimilaram uma verdade tão evidente e que independe de ideologia.

A indústria procura a eficiência máxima, e assim surgiram as tecnologias digitais. Acontece que a indústria é toda segmentada. O pessoal que trabalha no setor de inovações tecnológicas não dá palpite no setor de exploração econômica, e vice-versa. Quando este setor veio perceber que as tecnologias digitais transformavam cada freguês consumidor numa industriazinha de quarto-dos-fundos, num concorrente em potencial, já era tarde. O bloco estava na rua. A corda de caranguejos tinha sido desamarrada, e não havia quem conseguisse tangê-los de volta. E a indústria, em vez de se adaptar aos novos tempos que criou sem querer, declara guerra aos próprios clientes e ameaça botar na cadeia bilhões de pessoas.

Não se aflijam: vai passar. Muitos jovens serão presos porque copiaram alguns MP3, mas a música vai deixar de valer tanto dinheiro quanto vale hoje. Péssima notícia para nós, os compositores profissionais. Ótima notícia para nós, os artistas que querem simplesmente dizer alguma coisa ao maior número possível de pessoas.

1144) A nova “Rolling Stone”(12.11.2006)




Mudaria a Rolling Stone ou mudei eu? A revista que já foi chamada a “Bíblia do Rock” retorna em nova versão brasileira, depois da versão dos anos 1970 que os roqueiros paleozóicos como eu recordam com tanto carinho. Mas... os tempos estão a-mudando? Quem sai na capa do número 1 é Giselle Bundchen! Me desculpem os editores, mas é como ver uma edição brasileira dos Cahiers do Cinéma trazer Xuxa na capa.

“Ah, mas o rock mudou”, suspiram os mais resignados. E com isso eu concordo. O rock, que era um yin-yang de Revolução e Contracultura, partiu-se em duas metades independentes. Sem o equilíbrio zen garantido pela presença da metade oposta, elas degeneraram em duas caricaturas grotescas: brutalidade sem ideologia, e sentimentalismo sem substância. O que temos hoje, de um lado, é o desnorteamento punk-metaleiro que flerta com o satanismo, o neo-nazismo, os serial-killers, o apocalipse-now de George Bush, e tudo o mais que dê a esses jovens sem causa a sensação de serem os ferrabrazes, os schwarzennegers do mundo. E do outro lado um hip-hop e um pseudo-pop que vendem a alma por pontos percentuais nas pesquisas, e dão o corpo de graça para galgar uma posição a mais nos “charts” da “Billboard”.

Pronto. Já desabafei, então vamos à revista. Que não está tão ruim, numa primeira passada, e tem artigos que confirmam com ênfase isto que acabei de dizer. Leiam a matéria que fala do rock como trilha sonora das matanças norte-americanas no Iraque. É patético ver que tudo aquilo mostrado por Coppola em Apocalipse Now continua acontecendo. O soldado sai de madrugada numa patrulha onde vai enfrentar insurgentes iraquianos; entope-se de drogas para deixar o corpo no ponto, e entope-se de rock violento para poder matar gente sem sentir medo. Foi para isto que Elvis Presley e Chuck Berry existiram? Cartas para a redação.

A Rolling Stone brasileira não poderia, é claro, ficar imune às contradições-de-rico da sua matriz californiana. O rock, como existia no começo da revista, não existe mais, ou existe empurrado para as catacumbas da Série C. Claro que os medalhões continuam desfrutando do espaço conquistado; aí estão nesse número 1 figuras dos anos 1970 como Jack Nicholson, além de Bob Dylan dando a entrevista regulamentar sobre o CD mais recente (não li ainda; já li mais de 500 entrevistas de Dylan, posso esperar). A imprensa do rock sempre teve uma tendência danada a virar press-release de gravadora.

É uma revista com a cara do rock de hoje, cheia de glam e de glitter (o que quer que isso signifique), feita naquele papel brilhoso que obriga a gente a ficar o tempo inteiro procurando um ângulo que não reflita a luz. Excelente metáfora para a própria revista e para a imprensa rock em geral. A gente fica procurando ler algo, que às vezes até está ali, mas é impossível. As luzes da ribalta e os flashes dos fotógrafos são fortes demais. Com Giselle Bundchen na capa, havemos de esperar o quê?