terça-feira, 16 de março de 2021

4684) "A Noite dos Desesperados" (16.3.2021)



Mas Não Se Mata Cavalo? foi provavelmente o primeiro romance noir que li, nos meus onze ou doze anos, numa casa em que se podia ler sobre tudo (menos sobre sexo; era pecado). Teria sido melhor meus pais me liberarem a leitura de Carlos Zéfiro ou Cassandra Rios – que acabei lendo escondido. Porque este romance lumpen-existencialista de Horace McCoy é uma das fábulas mais depressivas sobre a espécie humana.


Foi adaptado para o cinema em 1969, como A Noite dos Desesperados (“They Shoot Horses, Don’t They?”), um filme magnífico que vi agora pela segunda vez. O diretor é Sidney Pollack, que muita gente lembra como ator, no papel de Victor Ziegler, o milionário amigo de Tom Cruise em Eyes Wide Shut (1999) de Stanley Kubrick.



É a história de uma “maratona de dança” no tempo da Depressão dos EUA. Essas maratonas obrigavam casais a dançar sem parar (dez minutos de descanso, de 2 em 2 horas, dias a fio), eliminando-se aos poucos até só restar o casal vencedor. Um sobrevivente.
 
O filme tem duas horas. Quando chega a uma hora de projeção, os personagens estão todos uns trapos, uns mulambos, uns bonecos desnorteados que só se mantêm de pé porque Deus é grande e o ser humano é foda.


Nos poucos minutos de descanso a que têm direito, os alojamentos, ao lado do salão, repletos de camas-de-campanha, ficam parecendo a mansão de O Anjo Exterminador de Buñuel – por alguma razão uma imagem que não sai da minha mente, aquelas pessoas amontoadas, sem poderem sair daquele espaço, dormindo umas por cima das outras, num ambiente abafadiço, com seiscentas horas de mau cheiro e de desespero sem grana.
 
O livro original, de Horace McCoy, foi traduzido aqui pela antiga Editora Globo de Porto Alegre.
 
O filme tem uma estrutura intercalada com flash-forwards, avanços na direção do futuro. Esse recurso do roteiro de James Poe e Robert Thompson segue a estrutura do livro, onde a sentença de morte proferida contra o narrador, no tribunal, é intercalada frase por frase aos capítulos, em letras cada vez maiores. A primeira frase, que antecede o capítulo 1, é (em caixa-alta, letras miudinhas): LEVANTE-SE O RÉU. Frase a frase, a sentença de morte é dada por extenso até que, depois do último capítulo, a última frase enche toda a página em letras enormes: E QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA ALMA.


A maratona de dança foi um dos espetáculos mais grotescos dessa época em que as pessoas, para não passar fome, se submetiam a qualquer coisa. Não muito diferente de hoje, só que estamos ainda na parte de cima da escala, onde as pessoas, para terem direito à fama, se submetem a qualquer coisa.
 
Uma das frases definidoras do filme é de Rocky, o MC do pesadelo. Os dançarinos se atropelam num “derby”, uma corrida de resistência em volta do salão, na qual os três últimos casais serão eliminados: “Não importa que você não seja o primeiro; o importante é não ser o último”. Não tenho mais o livro e não sei se a frase é de McCoy ou dos roteiristas, mas ela resume o espírito do filme. A torcida não está ali para aplaudir quem ganha, mas para curtir a catarse cruel de observar quem perde.


Não é uma lógica muito diferente dos campeonatos de futebol. A torcida e principalmente a imprensa se deleitam com duas brigas: a da parte de cima da tabela, para ver quem vai ser o campeão, e a da parte de baixo, para ver quem será rebaixado à divisão inferior. Esta última briga é a mais cruel, é a briga sem glória, a briga dos que brigam pelo último lugar no bote salva-vidas, a briga dos que vão morrer. Parece que é desse estofo que somos feitos: nossos triunfos nos alegram, mas os fracassos alheios nos aliviam muito mais.
 
O “derby” disputado na maratona é uma corrida de dez minutos ininterruptos. No filme, essa cena é mostrada ao longo de sete minutos exaustivos, intermináveis, brutais. Os concorrentes, nesse momento do filme, estão dançando há 25 dias seguidos, num total de 602 horas.


Quando Gloria (Jane Fonda) pede para mudarem as regras em seu benefício, o MC responde: “Tudo, menos isso. São as regras. As pessoas precisam acreditar em alguma coisa, senão deixam de vir.” Claro que, por baixo do pano, as regras sempre são dribladas quando convém a quem pode fazê-lo. Na política, no futebol, em tudo.

Lembra o famoso diálogo em "A Hora e Vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa. Um rapazinho de um povoado mata um jagunço. O chefe do bando, Joãozinho Bem-Bem, ordena que um homem da família dele seja morto, e as mulheres violentadas. Matraga pede-lhe que perdoe os coitados. Bem-Bem responde: 

– Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta à traição? É a regra...
 
Há dois atores que “engolem” o filme. Gig Young é um galã subestimado e subaproveitado, que dá um arraso de cinismo como o MC do pesadelo, lembrando às vezes a frieza sádica de Kirk Douglas em A Montanha dos Sete Abutres (“The Big Carnival”). Ganhou um Oscar (não acho que Oscar valha grande coisa, mas sei que todo mundo espera esta importantíssima informação.)
 
E Jane Fonda fazendo uma das personagens mais amargas e autodestrutivas do cinema. São dela as frases mais pessimistas, mais brutais. Dizem às vezes que foi seu primeiro grande papel dramático, mas a essa altura ela já tinha feito Caçada Humana (“The Chase”, Arthur Penn). Ela afirmou ter sido They Shoot Horses... o primeiro filme em que um diretor pediu sua opinião sobre o personagem que iria interpretar.