sábado, 29 de agosto de 2020

4615) Histórias de cantador (29.8.2020)





(João Furiba)

Cantador é uma raça que não presta. Perdoem a franqueza, mas nem sou eu que digo, são eles mesmos que dizem uns dos outros.
 
É uma das classes mais solidárias e mais afetuosas que existem. Mas ao mesmo tempo é uma das classes mais hipercríticas. Defeito nenhum passa em branco. Cada olho é um raio-X, cada ouvido é um radar e cada língua uma navalha.
 
Por maior que seja a amizade, o afeto recíproco, ninguém está livre de levar uma chibatada sempre que for preciso. Ou mesmo não sendo.
 
Penso por exemplo na amizade de vida inteira que juntou Pinto do Monteiro, o maior repentista de todos os tempos, e o impagável João Furiba, o maior contador-de-vantagem de todos os tempos. Começaram a cantar juntos quando Ramsés II ainda era faraó, e cantam juntos até hoje em alguma birosca celestial.
 
No meio deles se interpôs a cantadora Mocinha da Passira, jovem, azougada, talentosa, valente, que nunca arredou pé na frente de homem nenhum, quanto mais de cantador. Os dois, mais velhos, a apadrinharam; mas sempre que um deles fazia dupla com ela, o terceiro afiava a navalha.



(Pinto do Monteiro e Mocinha da Passira)

Numa cantoria, outro violeiro, para provocar, terminou um verso perguntando a Pinto:
 
(...) Ô Pinto... Me dê notícias
de Mocinha da Passira.
 
Pinto mandou na lata:
 
Se ajuntou com João Mentira,
toda metida a donzela.
Ele dizendo pro povo
que é namorado dela;
não canta ela, nem ele,
não presta ele, nem ela.
 
A poética dos repentistas é muito exigente, muito cheia de regras, e eles fazem uma fiscalização tremenda uns sobre os outros, pra ver se pegam o colega dando uma escorregada. Como a dificuldade é grande, as escorregadas (de rima, de métrica, de assunto) são inevitáveis; todo cantador erra, todo cantador se faz de doido, todo cantador passa um cheque-sem-fundo poético, quando o perigo é grande.
 
Jorge Filó lembra um caso em que Pinto estava cantando com outro cara (cujo nome a História misericordiosamente esqueceu) que errava o tempo inteiro, até que desabafou no fim do verso:
 
(...) Cometi um erro agora
e quero ser perdoado.
 
Pinto era um especialista da sutileza de ser bom e ser ruim ao mesmo tempo, e contemporizou:
 
Já está dissimulado;
o seu erro não se nega.
Eu vi, mas fiz que não vi
o defeito do colega,
porque quem tá se afogando
em qualquer talo se pega.
 
Quantas e quantas vezes, numa cantoria em residência, onde há uma certa formalidade, diferente de cantoria de bar, que é mais acanalhada (no bom sentido), fiquei vendo uma dupla cantar no terraço e sempre há em volta outros cantadores que vieram olhar, e ficam vigiando cada verso e cada rima. Parecem aqueles juízes de ginástica olímpica.
 
Aí um dos que estão cantando se distrai e rima, por exemplo, “amor” com “abandonou”. A gente olha para um dos poetas que estão de pé, em silêncio. O olho cruza. E ele franze o nariz, como quem sentiu cheiro de cocô de gato.
 
Ariano Suassuna gostava de dizer: “Os melhores cantadores são o muito bom e o muito ruim. Porque um a gente admira, e com o outro a gente se diverte”.
 
Reza a lenda que os poetas Amaro Elias e Manoel Nogueira estavam em plena cantoria, quando Manoel de repente mudou de toada, puxando uma melodia que por algum motivo não convinha ao companheiro.  Amaro, momentaneamente desorientado, tentou queixar-se:
 
Amigo Mané Nogueira,
não faça isto com “mim”,
que um colega de arte
com outro não faz assim,
pelo cálice de amargura
que Jesus Cristo... bimbim!
 
Percebe-se que o poeta preparou o verso para terminar dizendo: “Pelo cálice de amargura / que Jesus Cristo bebeu!”.  Só que, quando foi cantar as primeiras linhas, percebeu que teria que dizer “não faça isto com eu”; na pressa, tentou remendar o erro dizendo “com mim”, e daí em diante nada mais deu certo.  


(Pedro Bandeira)

Dia destes, ouvindo a notícia do falecimento do grande Pedro Bandeira, fiquei lembrando alguns episódios. Pedro fez parte da “Viagem dos Poetas ao Brasil”, uma caravana organizada em 1979 por Giuseppe Baccaro, bancada pela Prefeitura de Olinda (leia-se Germano Coelho), que percorreu de ônibus várias capitais brasileiras.
 
Na caravana havia umas 10 ou 12 duplas de violeiros. Pedro Bandeira estava duplado com Otacílio Batista. Houve um dia em que, chegando a Brasília, Baccaro conseguiu que o então Ministro da Educação e Cultura recebesse os poetas, para a entrega oficial de um manifesto, redigido pelo próprio Baccaro, pedindo apoio à poesia popular.
 
Foi selecionado um grupo de representantes, e marchamos para o Ministério. Aguardamos num salão vasto, atapetado, com belas poltronas. De repente abriu-se uma porta lateral, entrou o Ministro com alguns assessores, cumprimentou todo mundo, e Pedro e Otacílio cantaram alguns versos de saudação.
 
Eu estava meio afastado, e ouvi Pedro abrir a sextilha dizendo:
 
Esta é a caravana
da viola de madeira...
 
Outro cantador, atrás de mim, comentou baixinho: “A de plástico ele deixou em casa”.
 
Era um erro, era um verso ruim? Não, não era, mas cantador dá nota em tudo, confere tudo, questiona tudo. É uma vigilância social permanente, coletiva, que pode sem dúvida produzir alguns episódios de mesquinhez ou de maledicência, mas tem um propósito positivo: levantar o sarrafo, aumentar o nível de exigência, alertar cada praticante para o fato de que a cada instante o artista tem que dizer a que veio.
 
Em cantoria não tem aquela passada-de-pano que existe no futebol, aquelas expressões tipo “Fulano calou os críticos...”, “Sicrano não tem mais que provar nada pra ninguém...” Na cantoria tem que provar todo dia, sim, e é por isso que existem cantadores de alto nível. E que de década em década aparecem novos cantadores de alto nível. É porque o sarrafo é alto, os parâmetros são exigentes, o olho crítico não dorme, a navalha não descansa.
 








quarta-feira, 26 de agosto de 2020

4614) Para ler a Odisséia (26.8.2020)





O tradutor Rafael Brunhara, que mantém o blog “Primeiros Escritos”, dedicado à tradução poética, teve a idéia de reunir 23 diferentes exemplos de tradução de um mesmo trecho da Odisséia, de Homero. É o proêmio, ou versos iniciais, do grande poema épico.
 
Pelo que sei, os poemas homéricos são compostos em versos hexâmetros, que consistem em seis “pés” de duas sílabas. São versos dodecassílabos, portanto, mas diferentes (por uma questão de acentuação e cadência, imagino) do dodecassílabo usado na poesia brasileira – o famoso “verso alexandrino”, muito usado pelos simbolistas e pelos parnasianos, embora menos que o decassílabo.
 
Enfim: só quem se preocupa com essa questão de número de sílabas são os poetas e os críticos. Os leitores querem saber o que a poesia está dizendo, e se o diz de um jeito interessante. Mais nada.
 
Nunca li os poemas de Homero. Uma grave lacuna, reconheço. Mesmo para mim, que sou também poeta e tradutor, muitas traduções pareciam impenetráveis. Por ser um poema clássico, os tradutores se sentem, compreensivelmente, na obrigação de usar um vocabulário elevado, erudito. Ficamos com o livro sobre a perna direita e o dicionário na perna esquerda.
 
Vejamos o exemplo da primeira tradução que tentei ler, aos 20-e-poucos anos. Provavelmente foi esta, a do famoso Carlos Alberto Nunes:
 
5.Carlos Alberto Nunes (1941)
Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito
peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Troia;
muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes,
como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma,
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.
Os companheiros, porém, não salvou, muito embora o tentasse,
pois pereceram por culpa das próprias ações insensatas.
Loucos! que as vacas sagradas do Sol Hiperiônio comeram.
Ele, por isso, do dia feliz os privou do retorno.
Deusa nascida de Zeus, de algum ponto nos conta o que queiras.

Por ser verso de forma fixa, a constrição da métrica obriga o poeta a um certo contorcionismo para que as palavras caibam no procustiano leito. (Olha aí, só de ler um trecho já vou entrando no clima.) Pelo que vejo, o tradutor optou pelo verso de 16 sílabas, onde cabem mais coisas.
 
Este proêmio faz um breve resumo das aventuras de Ulisses, e desde logo adverte que os companheiros dele não se salvaram porque comeram os “bois do sol” de Hiperion, episódio que no poema será explicado mais adiante. Por mim a linguagem está tranquila, mas a gente precisa explicar que “dês que esfez” significa “desde que desfez”, ou seja, “desde que destruiu (as muralhas de Tróia”).
 
No mais, a linguagem é bastante compreensível. Um pouco mais difícil é a de Odorico Mendes, outro ínclito cultor do lavor apolíneo:
 
3. Odorico Mendes (1928)
Canta, ó Musa, o varão que astucioso,
Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,
Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
Por segurar a vida e aos seus a volta;
Baldo afã! Pereceram, tendo, insanos,
Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra.

Neste caso, eu teria que negociar de verso em verso. Explicar que “rasa Ílion santa” pode ser por sua vez traduzido para “depois de destruída a cidade sagrada de Tróia”. O “equóreo ponto” é o mar. “Baldo afã” (que ecoa o “doudo afã” de Castro Alves) quer dizer “esforço feito em vão, trabalho perdido”. Só não decifro mesmo é esse “prole Dial”, que pela estrutura é um vocativo dirigido à Deusa, basta ver a derradeira linha dos outros exemplos.
 
Uma coisa importante em traduções assim é quando percebemos a existência de um termo bem específico, no original, cuja importância obriga o tradutor a não omiti-lo, e vertê-lo seja como for. Por exemplo: logo no começo Ulisses (ou Odisseu) recebe em grego um qualificativo  que os diversos tradutores interpretam como: “astucioso”, “astuto”, “fértil em expedientes”, “de talento multiforme”, “industrioso”, “engenhoso”, etc.  Esses exemplos me dão uma noção do que está sendo dito – e me ajudam a entender o que outros traduzem como “multívio”, “multiversátil”, “o muitas-vias”, “multimodal”, etc.
 
A obrigação de contar sílabas leva um tradutor a chamar Tróia de “sacra pólis”, quando a outros basta dizer “cidade sagrada”, e estamos conversados.
 
Outro qualificativo recorrente é o dos companheiros de Ulisses, que morrem por imprudência no curso das aventuras. O termo grego original deve ter conotações de inexperiência, inocência, imprudência juvenil, porque os tradutores recorrem a: “loucos”, “insanos”, “insensatos”, por um lado, e por outro a “fracalhões”, “tolos”, “crianções”, “pueris”.
 
Esse elenco de opções mostra bem que a palavra original admite uma série de conotações, e cada tradutor escolhe a sua em função dos problemas imediatos com que se depara: a contagem métrica, a acentuação, a posição da palavra dentro da linha, a possível rima, etc.
 
Traduzir uma obra épica como a Odisséia coloca uma escolha-de-Sofia para o tradutor. O que deve ser sacrificado: a melodia do verso ou a eficácia dramática da narrativa? Porque muitas vezes uma delas só pode ser mantida e realçada às custas da outra.
 
É poesia: tem imagem, tem som e tem idéia. É narrativa: tem personagens, peripécias, aventura e suspense. A qual dos dois o tradutor quer dar ênfase?
 
Por isso muitos radicalizam e decidem esquecer o verso, e traduzir em prosa. A métrica e a rima vão para o espaço, a “textura poética” se restringe às belas imagens inventadas pelo poeta (“os dedos cor-de-rosa da aurora”), mas o mais importante é contar a história.
 
Como simples leitor, minha curiosidade quanto à Odisséia não se volta para a palavra poética, mas para o enredo épico. Numa primeira leitura, eu abriria mão de saborear os hexâmetros e daria preferência às peripécias. Gostaria de ter uma primeira visão do livro como narrativa; ler a Odisséia como se fosse uma espécie de Moby Dick ou de Vinte Mil Léguas Submarinas, uma prosa a serviço de um enredo.
 
Talvez, então, eu prefira conhecer o poema homérico através de uma tradução limpa e fluente como me parecem as de Jaime Bruna e Fernando Araújo:
 
9. Jaime Bruna (1968)
Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que após saquear a sagrada fortaleza de Troia, errou por tantíssimos lugares vendo as cidades e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentando preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros, sem, contudo, salvá-los, mau grado seu; eles perderam-se por seu próprio desatino; imbecis, devoraram as vacas de Hélio, filho de Hipérion, e ele os privou do dia do regresso. Começa por onde te apraz, deusa, filha de Zeus, e conta-as a nós também.

10. Fernando C. de Araújo (1970)
Eis a história de um homem que jamais se deixou vencer. Viajou pelos confins do mundo, depois da tomada de Tróia, a impávida fortaleza. Conheceu muitas cidades e aprendeu a compreender o espírito dos homens. Enfrentou muitas lutas e dificuldades, no esfôrço de salvar a própria vida e levar de volta os companheiros aos seu lares. Fez o que pôde, mas não conseguiu salvá-los. Pereceram devido à sua própria loucura, por terem matado e devorado os bois de Hiperion, o Deus-Sol, e este diligenciou para que eles jamais vissem de novo seus lares. Ao começar a história, (...)

 

Aqui no link abaixo, os comentários argutos de Rafael Brunhara sobre as 23 versões. Entre as quais recomendo as de Milton Marques Júnior, cujos artigos no Correio das Artes muito me ensinam, e de Guilherme Gontijo Flores, cujas aventuras tradutórias acompanho fielmente via Facebook.







domingo, 23 de agosto de 2020

4613) Eu Me Lembro -- 19 (23.8.2020)



(Colégio Estadual da Prata, anos 2000)

1
Eu me lembro de Professor Almeida, que ensinava Ciências Naturais no Estadual da Prata. Ele era pai de D. Nora, uma professora que tive no primário, no Colégio Alfredo Dantas, que era muito apegada a mim, e eu a ela. Prof. Almeida tinha a didática tradicional: descrevia uma experiência científica (p. ex., como um alambique destila água) num texto decorado, para a gente copiar, enquanto fazia desenhos e diagramas no quadro. Depois, pedia para a gente repetir. Uma vez ele me escolheu: “Venha ao quadro!” Lá fui eu, apontando o desenho e explicando. Nessa vez, era alguma experiência de laboratório, eu expliquei: “Coloca-se ambas as substâncias no mesmo tubo de ensaio”. Ele: “E depois?”. Eu: “Depois, precisa misturar bem, então a gente sacode o tubo.” Ele, com cara de espanto, apontando: “Sacode o tubo lá na porta, e manda um moleque buscar, é isso?”.
 
2
Quando a gente tem uma irmã mais velha, como ocorria comigo e Tide (Clotilde) a gente assimila coisas que fazem parte da cultura de garotas adolescentes, por mero efeito de proximidade e espírito de imitação. Eu me lembro que ela e as amigas (elas teriam 12 ou 13 anos, eu teria uns 9 ou 10) usavam uma “simpatia” (não sei se é esse o nome adequado) que consistia em contar quantos urubus a gente via pousados numa casa, num muro, árvore, etc.  Havia uma correspondência numérica que era: 1-gosto, 2-desgosto, 3-carta, 4-convite, 5-casamento (de seis em diante voltava ao início: 6-gosto, 7-desgosto, etc.).  Com isso as garotas adivinhavam “o que estava para acontecer”. Eu ouvia a conversa delas e aderia silenciosamente à brincadeira, que para mim só tinha sentido nos dois primeiros: gosto e desgosto são eventos comuns, ninguém me escrevia cartas, ninguém me fazia convites, e eu não tinha propriamente planos de me casar. Mas ainda hoje vejo às vezes um urubu solitário, ou uma parelha, em cima de um muro, e penso automaticamente: “Gosto... Desgosto...”.
 
3
Eu me lembro que minha mãe fez uma vez um curso de bordado no SESI, era bordado feito com a máquina de costura. Eu ficava brincando no chão e vendo ela costurar, e evidentemente nas horas vagas em sentava no pedal grande da máquina e usava a roda de metal como se fosse volante de um carro. Toda criança faz isso. Eu ficava curioso com os carretéis de linha “mesclada”, que eram de uma cor apenas mas variando a intensidade (verde claro, verde escuro, verde muito escuro, etc.) e depois eu ia checar no bordado se isso fazia diferença no desenho final. Uma vez ela fez uma toalha de mesa copiando um molde com papel carbono, mas copiou invertido; eram desenhos de rapazes e moças vestidos de portugueses, e embaixo tinha uma faixa dizendo: O VIRA (o nome da dança), mas ela tinha copiado invertido e ficou ARIV O. Mesmo assim a toalha ficou ótima e usou-se por muito tempo nos dias de festa.
 
4
Quando a gente morava na Rua Miguel Couto (entre os meus 6 e 10 anos, mais ou menos) eu gostava de brincar embaixo da mesa da sala, meu esconderijo preferido, juntamente com o birô onde Seu Nilo escrevia. Ali eu me entrincheirava com meu armamento e dali fuzilava sem piedade soldados alemães, índios apaches e granadeiros prussianos (eu era pró-Napoleão). A mesa da sala era uma mesa simples, de madeira pintada de escuro, e na face inferior, virada para o chão, as tábuas eram quase brancas. Ali eu escrevia bobagem com carvão ou giz de cera, fazia desenhos, etc., como se pintasse o teto de uma caverna. Quando a gente se mudou por volta de 1960 ou 1961 para a Vila dos Motoristas (atrás do campo do Treze), a mesa foi desmontada, e chegando na casa nova foi montada de novo. Qual não foi minha surpresa ao perceber que as pessoas que a remontaram não deram nenhuma atenção às obras de arte pintadas na face mais clara das tábuas. Para eles, o que contava era a face virada para cima, que era escura, lisa. Isso fez com que meus desenhos, meus mapas e meus escritos ficassem todos fora de ordem, porque a posição das tábuas foi trocada. Reencontrei essa sensação de aparvalhamento momentâneo quando conheci os cut-ups de William Burroughs.
 
5
Eu me lembro que outro professor de Ciências Naturais nessa época foi Zé Lucas, conhecido como Zé do Bode, cuja mãe era amiga de minha mãe, e que depois que fiquei adulto ficamos amigos e chegamos a tomar algumas cervejas juntos. Ele distribuiu com a classe uma apostila maciça, super organizada, com os assuntos de física, biologia, etc., tudo bem dividido e explicado, e olha que era ainda o curso ginasial. Houve uma polêmica acalorada entre os alunos quando alguém descobriu um erro na apostila, mas ninguém tinha coragem de questionar o professor cara a cara. Na parte relativa a Ótica, ele falava que “um raio de luz era refletido quando atingia uma superfície sólida, p. ex., um espelho, um líquido...”  O pessoal dizia: “Oi, e como um líquido pode ser sólido?” Eu embatucava, mas sentia que mesmo assim a apostila estava certa. Hoje acho que ele deveria ter escrito: “quando atingia um objeto material”.
 
6
Outra brincadeira de infância era uma parlenda que se dizia enquanto se jogava uma bola de encontro a um muro e pegava de volta. Joguinhos que ajudam a coordenação motora (no meu caso, sem grandes resultados). Ao jogar a bola na parede a gente dizia em voz alta os comandos, e os obedecia antes que a bola voltasse. A lista que guardo de memória (varia muitíssimo de pessoa pra pessoa – já conferi) era: “Ordem... Seu lugar... Sem rir... Sem falar... Com um pé... Com o outro... Com uma mão... Com a outra... Bate palma... Pirueta... Trás adiante... Queda...” As ações estão mais ou menos explicadas; “trás adiante” era jogar a bola, bater palmas com as mãos às costas, depois à frente, e pegar a bola de volta. A única coisa que isso me rendeu foi que aprendi a jogar a bola na parede (era sempre de baixo pra cima, num ângulo de uns 45 graus) dando um efeito adicional com a ponta dos dedos, que fazia a bola bater no muro e subir pegando efeito, demorando um ou dois segundos a mais para cair, e aí dava tempo de executar o comando.
 






quinta-feira, 20 de agosto de 2020

4612) O enigma de Kaspar Hauser (20.8.2020)



No filme O enigma de Kaspar Hauser (1974) de Werner Herzog, há uma cena em que um professor de filosofia vai testar a inteligência de Kaspar, o rapaz que passou a infância inteira trancado num porão, ficou meio retardado, mas de vez em quando tem uns lampejos de sagacidade que desconcertam as pessoas.
 
O professor propõe a Kaspar um problema tradicional da Lógica. Existem dois vilarejos próximos um dos outro. Os habitantes de “A” sempre falam a verdade, e os habitantes de “B” sempre mentem. Você encontra na estrada que conduz a ambos os vilarejos um homem. Tem direito a fazer uma pergunta, para saber a qual dos dois ele pertence. Qual é a pergunta?
 
O professor se dá o trabalho de exemplificar o problema a Kaspar. Se você perguntar se ele é do vilarejo “verdadista” e ele for, ele dirá “sim”; mas se for do vilarejo mentiroso, também dirá “sim”.
 
Se você perguntar se ele é do vilarejo “mentiroso” e ele for, dirá que não; e se ele for do vilarejo “verdadista”, também dirá que não.
 
Qual a pergunta, para você ter certeza se o cara está mentindo ou falando a verdade?
 
Kaspar diz: “Eu pergunto se ele é uma rã – sim ou não?”.


A cena está aqui (com legendas):
https://tinyurl.com/y66679kq
 
Essa cena geralmente é comentada pelas pessoas como uma “surra de sabedoria” de Kaspar em cima do professor. Claro. Todo mundo torce por Kaspar. Ele é o “idiot savant”, o cara cheio de deficiências mas que tem uma habilidade fenomenal, capaz de pegar desprevenido um adversário. É o time pequeno enfrentando o time rico e poderoso. Todo mundo torce por ele.
 
Eu não vejo assim. Para mim a cena mostra a incompatibilidade entre duas linguagens, dois sistemas de pensamento, nenhum dos quais necessariamente superior ao outro.
 
A linguagem da Lógica, proposta pelo professor, é uma linguagem altamente artificial, altamente formalizada, cheia de riquetriques e de não-podes, que busca uma exatidão 100% nas perguntas e nas respostas. Tem muito pouco a ver com a linguagem frouxa, maleável, imprecisa, contraditória, reversível, fractal e subjetiva que usamos no dia-a-dia, aqui neste texto, por exemplo.
 
A Civilização-como-a-conhecemos precisa das duas linguagens, porque sabe que cobrem áreas diferentes do conhecimento.
 
A linguagem do professor depende, para funcionar, de uma série de premissas. Que de um lado todo mundo minta. Que do outro lado todo mundo só fale a verdade. Que a pessoa seja encontrada no meio do caminho, e não na entrada do vilarejo (o que talvez indicasse a qual dos dois ela pertencia). Que você (o aluno) só tem direito a uma pergunta. (Por que só uma? Quem determinou?) Que seja uma pergunta (isso não tem no filme) que devia ser respondida com “sim” ou “não”.
 
O problema de Lógica é um problema que sempre vai se fechado numa escolha binária. A Lógica funciona em forma de fluxograma, uma coisa ensinada em nossos cursos de Administração, com aqueles balõezinhos: “Você sabe falar? SIM – NÃO”.



A Lógica procura estabelecer com certeza absoluta a direção de um raciocínio consecutivo (onde cada afirmação é consequência de uma que veio antes e causa de outra que deverá vir depois). E o raciocínio binário (sim ou não, certo ou errado, verdadeiro ou falso) é essencial para isso.
 
O problema é que tudo isso vale para a Lógica, mas a Lógica é um mero instrumento para nos ajudar quando nos deparamos com um problema verbal intransponível. Na vida real, basta perguntar se o cara é uma rã. A linguagem comum tem milhões de atalhos não-Lógicos mas tão eficientes quanto, porque é um saber conectado a outros repertórios de idéias (p. ex., a percepção visual, que distingue entre um ser humano e uma rã).
 
A cena torna-se cômica porque os professores de Lógica, querendo reduzir a aridez e a abstração das fórmulas, tentam “humanizar” os problemas. Fazemos isso na Matemática no 1º. Grau. Em vez de perguntar “15-8=?”, dizemos: “Joãozinho tinha 15 chocolates; ele deu 8 chocolates para Maria; com quantos chocolates ficou Joãozinho?...”
 
Humanizar problemas abstratos ajuda a trazê-los para a zona-de-conforto de nossa experiência humana. Ajuda a raciocinar em termos que já raciocinamos antes, com coisas que são importantes para nós, como a quantidade de chocolates que temos no bolso.
 
No entanto, trazer para essa região mental implica em contaminar um problema puramente aritmético com emoções psicológicas. O aluno levanta o braço e diz: “Mas por que motivo Joãozinho é obrigado a dar tantos chocolates para Maria? O que foi que Maria fez para ficar com quase a metade dos chocolates dele?...” 
 
É bobagem? Não, não é. O problema, que era apenas aritmético, foi contaminado por fatores humanos e ficou de porta aberta para esse tipo de questionamento.
 
Há um outro episódio que já vi algumas vezes nas redes sociais, vou citar de memória. Num instituto tecnológico de Israel, o professor coloca para seus alunos de Engenharia o seguinte prolema: “É preciso transportar 50 mil litros de sangue, ou de plasma sangíneo, para uma cidade a 100 km de distância. Qual o meio mais rápido, mais barato e mais seguro de fazer isso?”.
 
No outro dia, os alunos trazem soluções variadas: caminhões frigoríficos, tubulações pressurizadas e refrigeradas, frota de helicópteros, etc.
 
O professor diz: “Beleza. Mas não ocorreu a nenhum de vocês querer saber para que vão servir esse 50 mil litros de sangue?” Todo problema de engenharia, etc., costuma ter um lado humano e social que, aos olhos dos engenheiros, preocupados apenas com exatidão, precisão, economia e eficácia, passa completamente despercebido.
 
Esta é uma questão que diz respeito também à ficção científica.
 
Muitos romances de ficção científica surgem de um problema de Engenharia, Cosmologia, Astronáutica, Física, Química, etc., que ocorre ao escritor. Ele tenta equacionar e resolver esse problema sob a forma de uma história de ficção envolvendo Joãozinhos e Marias, para deixar o problema mais palatável e mais divertido para os leitores.
 
Ocorre que, acontecendo assim, o problema começa a se contaminar de elementos humanos, de reações humanas diante de tudo que acontece, de conflitos, rivalidades, imprevistas atitudes humanas. A lógica inflexível dos números, símbolos e operadores começa a ser erodida pela imprevisibilidade dos humanos usados como exemplos.
 
Esta é uma questão essencial da ficção científica hard, aquela que procura usar da maneira mais rigorosa possível os princípios do método científico, da lógica formal ou do saber estabelecido de qualquer ramo específico da ciência.
 
Voltando ao filme de Herzog: o professor tem suas razões, Kaspar tem as dele, o que está havendo ali é apenas um diálogo de surdos. O filme claramente faz do professor uma figura pedante e ridícula, com seu saber pomposo e empoeirado sendo derrotado pelo “pensamento selvagem” do herói. É um problema formulado na linguagem X e respondido na linguagem Y. Nenhuma das duas é invalidada por causa desse mal entendido.
 
 
 
 
 
 
 






segunda-feira, 17 de agosto de 2020

4611) O consertador de potes (17.8.2020)



Existe uma tradição no artesanato japonês de barro chamada “kintsugi” ou "kinsukuroi". É a arte e a ciência de pegar um vaso de barro que se quebrou e consertá-lo, emendando de volta os cacos, reconstituindo o formato original do vaso. Acontece que as rachaduras não podem ser escondidas, pois o barro cozido e endurecido não pode mais ser moldado. O que fazem os artesãos? Eles preenchem as rachaduras com outros materiais, até mesmo com ouro, tornando-as ainda mais visíveis. Assumindo a história, sem disfarçá-la. O vaso quebrou, sim, quebrou mas foi consertado.

 

Existe uma lição nesse processo: a de reconhecer defeitos e incorporá-los à personalidade, depois de remediar a situação. Um pote de guardar água foi quebrado. Alguém juntou os cacos. Recompôs a forma. Preencheu as rachaduras com uma porcelana qualquer, um metal qualquer. As rachaduras continuam lá mas agora são inofensivas: o pote pode voltar a guardar água dentro de si. E o desenho do quebrado alerta as pessoas. Cuidado. Isso quebra.

 

Uma cicatriz, numa pessoa, conta uma história. O que aconteceu aqui? Ah, foi um acidente, foi isso, foi aquilo... Muita gente se esforça para camuflar cicatrizes, e é claro que algumas são desagradáveis de ver. Mas uma cicatriz pode ser transformada em elemento estético, numa tatuagem, por exemplo. Kintsugi.

 

Philip K. Dick tem um curioso livro de FC, Galactic Pot-Healer (1969), um dos menos comentados pelos críticos, mas que me parece um dos mais encantadores. Não é um livro que pudesse ser filmado por Steven Spielberg ou por Ridley Scott, mas eu gostaria de vê-lo adaptado pelos Estúdios Ghibli.


É um livro quase intraduzível, aliás, porque no mundo futuro que ele descreve as pessoas participam de um jogo (“The Game”) todo baseado em trocadilhos e naquilo que a gente chamada de “charadas infames”, charadas absurdas que só fazem sentido (ou um arremedo dele) na língua original.

 

Joe Fernwright é um “pot-healer”, um consertador de potes, de vasilhas de barro. Num mundo onde tudo é de plástico, artigos de barro são raros e preciosos, mas pouca gente lhes dá atenção. E Joe se dedica a consertar coisas de barro quebradas. Não se trata apenas de um artesanato visando uma função utilitária. Há toda uma filosofia.

 

Força. A força de ser, pensou ele, e em oposição a ela a paz do não-ser. Qual era melhor? A força acaba se gastando toda no fim, todas as vezes; então talvez a resposta fosse essa, e nada mais fosse preciso. A força – o ser – era temporária. E a paz – o não-ser – era eterna. Ela já existia antes do seu nascimento e recomeçaria depois de sua morte. O período entre esses dois pontos, o período da força, era apenas um episódio, o rápido flexionar de músculos recebidos de empréstimo, de um corpo que teria que ser devolvido... ao verdadeiro dono.

(p. 43, trad. BT)

 

Lembrei desse livro durante a leitura do quinto romance da série “Earthsea”, de Ursula LeGuin, The Other Wind (2001). Nele reaparece o mago Ged, conhecido como Sparrowhawk. Ele é o protagonista da série, que o acompanha desde o seu nascimento e o despertar da magia (A Wizard of Earthsea, 1968), uma aventura de sua entrada na vida adulta (The Tombs of Atuan, 1971), sua grande batalha na maturidade (The Farthest Shore, 1972), o surgimento de uma protagonista feminina (Tehanu, 1990) e finalmente sua velhice neste quinto livro.


Nele, Sparrowhawk, já com setenta anos, recebe no começo do livro a visita de Alder, um mago jovem, que está passando por um período atribulado e vem se consultar com ele. Aqui não interessa tocar no enredo central do livro, mas na figura de Alder. Ele é apresentado como um “consertador” (=”mender”), alguém com o talento especial de consertar coisas com o uso da magia.

 

Alder era um consertador. Ele era capaz de recompor. De tornar algo inteiro de novo. Uma ferramenta partida, uma lâmina de faca ou de machado que trincou, um pote de barro despedaçado: ele podia juntar de novo os fragmentos sem deixar fendas ou junturas ou pontos fracos. Seu mestre o mandou sair em busca das várias fórmulas de encantamento para consertar coisas, e ele as encontrou quase todas entre as bruxas da sua ilha, e começou a trabalhar com elas até aprender a consertar.

– Consertar é um pouco como curar – disse Sparrowhawk. – Não é um dom menor. Não é um ofício fácil.

(p. 15, trad. BT)

 

LeGuin surgiu na década de 1960 na fantasia norte-americana como um necessário contraponto a uma Fantasia Heróica em que os poderes mágicos ou tinham função militaresca (alvejar com raios, desmoronar muralhas, incendiar tropas) ou eram um instrumento de “wish fulfillment”, realização gratuita de desejos, final-feliz a custo zero: ressuscitar pessoas amadas, transformar qualquer-coisa em ouro, deletar inimigos, etc.

 

É inevitável que sua fantasia seja descrita como “feminina”, porque ela volta conscientemente sua atenção para o universo feminino, sua cultura, suas atividades. Num dos ensaios de Dancing at the Edge of the World, ela questiona com bom humor a visão masculina (ilustrada em 2001, uma Odisséia no Espaço) de que o primeiro instrumento usado pelos antropóides que deram origem ao homem tenha sido o bastão, a clava, o instrumento de bater e de matar. “Por que não teria sido alguma coisa côncava?”, pergunta ela. “Para guardar água, para guardar sementes?...”




A discussão pode ser ociosa para antropólogos ou historiadores, mas para ficcionistas, capazes de impor suas próprias regras, desde que sua ficção as sustente, é essencial.

 

E nessa de ter potes para água e sementes eu acho que não teria passado despercebido a LeGuin um título como o do livro de Philip K. Dick: O Consertador de Potes da Galáxia. Ela admirava demais Dick, a quem chamou “o nosso Jorge Luís Borges, cria de casa”. E o personagem de Alder em The Other Wind é uma versão mágica do Joe Fernwright do autor californiano.

 

Em certo momento, Sparrowhawk, que está hospedando Alder em sua choupana (é um Mago humilde, estóico) pede-lhe que conserte um vaso de barro que pertenceu a sua esposa.

 

Pouco tempo atrás ele lhe escapara das mãos, ao tirá-lo da prateleira. Ele recolheu os dois pedaços maiores e todos os fragmentos miúdos, com a intenção de colá-los de volta para que o vaso pudesse pelo menos ser visto de novo, mesmo que ficasse sem uso. Cada vez que olhava os cacos guardados num cesto ele se irritava com sua própria falta de jeito.

                Agora, fascinado, ele observou as mãos de Alder. Esguias, fortes, hábeis, sem pressa, elas rodeavam a forma do vaso, alisando, ajeitando, encaixando os pedacinhos de barro, instigando e acariciando, os polegares forçando e dirigindo os pedaços menores até o ponto certo, rejuntando todos, tranquilizando-os.

(p. 45, trad. BT)

 

É uma magia simpática, empática, que trata os objetos insensíveis como se fossem sentientes, que junta os cacos de um vaso como se fosse a patinha de um cão. Para mim o “pot-mender” de LeGuin foi inspirado, salvo melhor idéia, pelo “pot-healer” de P. K. Dick.

 

A magia literária fascina os leitores por causa desse substrato humano, que aliás muitas tradições da magia ritual clássica enfatizam. A necessidade da convivência longa e profunda com os materiais do rito (basta lembrar dos milhares de operações longas, enfadonhas, dos alquimistas com seus fornos e retortas). A familiaridade também – a antiga recomendação de que o recinto de práticas mágicas seja construído pelo próprio Mago, suas mãos abrindo o solo, misturando o cimento, assentando os tijolos.

 

A magia pode não funcionar no mundo real, concordo, mas para que funcione na literatura precisa de argumentos em que o leitor perceba um peso humano.  Não basta um abracadabra, um abre-te-sésamo.


Lord Darcy é um mago-detetive criado por Randall Garret, com interessantes histórias de um universo paralelo onde a magia funciona. Numa dessas histórias, o mago é capaz de recuperar um documento manuscrito com pena e tinta, sobre o qual alguém derramou por acidente o tinteiro. Ele pega aquela folha de pergaminho ensopada de tinta preta, e com uma fórmula pacientemente repetida retira dela toda a tinta indesejada, e deixa apenas o documento redigido e assinado, como era antes.

 

Como é possível? – pergunta alguém. E ele responde: Porque as linhas do documento e da assinatura são linhas traçadas por uma vontade humana, com uma concentração de propósito tipicamente humana; têm peso; têm força. A tinta derramada passou ali por acaso, era algo superficial, descartável, que uma fórmula mágica simples consegue remover, sem alterar o que, num certo sentido, foi gravado na pedra.



(Ursula LeGuin, foto de Dana Gluckstein)  







sexta-feira, 14 de agosto de 2020

4610) Minhas canções: "Nordeste Independente" (14.8.2020)

 



Esta música ficou conhecida por caminhos meio tortuosos, até porque não surgiu com a intenção de “ser uma música”, nem de ser gravada.

 

Dentro do ambiente dos cantadores de viola e dos “apologistas” (os “defensores” da cantoria) é comum o habito de dar motes aos cantadores para que eles desenvolvam versos. O mote pode ter muitas formas. Vou explicar a forma usada nesta música, que é a do mote de dois versos decassílabos.

 

A estrofe de dez versos usada pelos cantadores de viola nordestinos é uma estrofe típica da poesia barroca da península ibérica, muito usada em Portugal e na Espanha, e trazida para cá pelos colonizadores. Uma prova disso é que em toda a América Latina a mesma estrofe é usada. Já a encontrei na poesia popular e nas canções da Argentina, Chile, Uruguai, Peru, Cuba e por aí afora.

 

Essa estrofe, chamada de décima, tem este formato, com as letras indicando a posição obrigatória das rimas:

 

1....................................A

2....................................B

3....................................B

4....................................A

5....................................A

6....................................C

7....................................C

8....................................D

9....................................D

10..................................C

 

Ou seja: cada estrofe desse tipo utiliza quatro rimas diferentes, uma nas linhas 1, 4 e 5, outra nas linhas 2 e 3, outra nas linhas 6, 7 e 10, e outra nas linhas 8 e 9.

 

O violeiro não tem apenas que improvisar os versos: ele tem que improvisar colocando as rimas exatamente nessa posição, porque se ele estiver cantando no sertão pode ter certeza que mais da metade da platéia conhece isso e vai perceber toda vez que ele errar. É como Ginástica Olímpica. Errou, perde ponto. (Simbolicamente, é claro – na cantoria ninguém conta ponto.)

 

Já com relação ao aspecto de métrica, o Nordeste Independente é uma letra feita em decassílabos, versos de 10 sílabas, que nesse estilo tem uma acentuação mais forte na 3ª., na 6ª, e na 10ª. sílabas.

 

I-ma-GI-no-Bra-SIL-ser-di-vi-Di(do)

Eo-nor-DES-te-fi-CAR-in-de-pen-DEN(te)

 

Coloquei em negrito as sílabas com acentuação mais forte. A última sílaba, que coloquei entre parênteses, não é contada por ser (no caso) uma sílaba átona – só se conta até a última sílaba tônica, que no exemplo acima são respectivamente DI e DEN.

 

Complicado? Sim, é uma estrofe que vem sendo elaborada e praticada há seculos. Difícil de fazer, ou até mesmo de compreender? Sem dúvida. Como diz Zé Ramalho, “se fosse perto, todo mundo ia”.

 

O mote é quando a gente sugere ao cantador a última ou as 2 últimas linhas do verso, para que ele improvise o resto. É uma tradição, um hábito, um desafio.

 

Você está bebendo num bar às 4 da manhã e o garçom se aproxima querendo fechar. A mesa está cheia de cantadores. Aí você diz:

 

Seu garçom, por favor, mais uma Brahma

que eu só saio depois do sol nascer!

 

Esse é o mote. Seriam as linhas 9 e 10 da estrofe, e aí todo mundo se assanha, cada um querendo fazer o verso mais “tampa”. Faz parte da cultura.

 

Em 1980, no Bar de Seu Manu (atualmente Bar de Genival), em Campina Grande, eu estava com alguns cantadores, e Ivanildo Vila Nova se queixava das discriminações contra os nordestinos, narrando algum episódio recente. No fim desabafou:

 

– Era melhor separar logo os dois, em dois países diferentes.

 

E eu disse:

 

– Pois vou lhe dar o mote: Imagine o Brasil ser dividido / e o Nordeste ficar independente.

 

Todo mundo achou graça. Ele estava de saída, mas decorou. No outro dia, trouxe algumas estrofes rabiscadas no papel. (Porque esses motes não são apenas para glosar de improviso. Se você gostar do mote, leva pra casa, e escreve. É como eu faço.)

 

Ele produziu várias glosas, eu escrevi outras, e um dia Elba Ramalho me viu cantando numa mesa de bar e decidiu gravar. Foi um grande sucesso no show Coração Brasileiro, no Canecão, em 1983 (quando eu já estava morando no Rio), e foi gravado ao vivo e incluído no disco seguinte dela, Do Jeito Que a Gente Gosta (1984).

 

Por que eu disse acima que “não é uma canção”?

 

Uma canção é uma coisa mais ou menos redonda, pronta, fechada. Depois de feita e gravada, ninguém mexe mais. (Há muitas exceções, é claro.)

 

Mas quando a gente dá um mote assim, o mote começa a circular. Outras pessoas começam a fazer glosas. Eu mesmo, quando vejo um mote bonito, decoro e quando chego em casa tento escrever algumas glosas. E é de bom-tom, de boa educação, citar sempre que possível o autor do mote. Embora muitos deles a gente não consiga rastrear de quem é.

 

Tem motes maus de 40 anos atrás que eu vejo hoje sendo sugeridos aos cantadores, eu estou na platéia, e ninguém sabe que o mote é meu. Não tem problema. Cultura oral. O poeta passa e o verso fica.

 

Depois da gravação de Elba Ramalho, Ivanildo lançou um disco com Severino Feitosa, onde gravou as estrofes dele. Porque eram muitas. Na época do show de Elba, eu mostrei para ela umas 20 estrofes diferentes e ela gravou 6. No disco dela, as primeiras 4 são de Ivanildo, e são minhas as duas últimas.

 

Depois disso, Ivanildo produziu muitas outras estrofes, e eu também.

 

Aqui, versos só de Ivanildo, gravados em dupla com o grande Severino Feitosa:

https://www.youtube.com/watch?v=CvMAJnwF16s


São minhas por exemplo, estas outras, que ninguém gravou:

 

Se São Paulo é a tal locomotiva

que carrega estes mais de 100 milhões

então deixe pra trás estes vagões

que lhe tornam a carga cansativa.

Eles vão ter a iniciativa:

ser puxados por boi, cavalo e gente

talvez andem bastante lentamente

mas seu rumo é seguro e conhecido;

imagine o Brasil ser dividido

e o Nordeste ficar independente.

 

Todo ano no Rio de Janeiro

chegam levas e levas de migrantes

são milhares de braços retirantes

que fabricam montanhas de dinheiro;

pois que o Rio prossiga em seu roteiro

e o Nordeste não seja um afluente

que conduz mil riquezas na torrente

e nem mesmo no mapa é conhecido;

imagine o Brasil ser dividido

e o Nordeste ficar independente.

 

Se houver essa tal separação

através de um acordo ou um tratado

o Brasil se verá desobrigado

de amparar esta imensa região;

e o Nordeste será uma nação

mais vistosa, mais rica e mais contente,

sem ninguém que lhe humilhe e lhe sustente,

sem um pai, um patrão ou um marido;

imagine o Brasil ser dividido

e o Nordeste ficar independente.

 

A música foi proibida pela Censura Federal (era o último ano da ditadura militar) por “pregar o separatismo”. E muita gente no próprio Nordeste adotou essa perspectiva: “Vamos separar!”.

 

Quando pedem a minha opinião sobre o assunto, digo sempre que a simples separação não adiantaria de nada se o Nordeste continuasse sendo o paraíso de desigualdade social que é ainda hoje. Se separarem, comecem fazendo uma Reforma Agrária rigorosa, taxando as grandes fortunas, moralizando a administração pública etc. Se não, continuarão iguais ao Brasil.

 

Acho possível que isso aconteça? Não. Essa canção, para mim, é uma canção meio de ficção científica, na base do “What if...” perguntando: “E se... (tal e tal coisa acontecesse, como seria?)”.

 

E atentem para o mote. Imagine o Brasil ser dividido. Imagine there’s no heaven. É um sonho hippie, impossível como tantos, necessário como todos.

 

Letra (gravação de Elba Ramalho):

 

Versos de Ivanildo Vila Nova:

 

1

Já que existe no Sul este conceito

que o Nordeste é ruim, seco e ingrato

já que existe a separação de fato

é preciso torná-la de direito.

Quando um dia qualquer isto for feito

todos dois vão lucrar imensamente

começando uma vida diferente

da que a gente até hoje tem vivido.

Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.

 

2

Dividindo a partir de Salvador

o Nordeste seria outro país

vigoroso, leal, rico e feliz

sem dever a ninguém no exterior.

Jangadeiro seria o senador

o cassaco-de-roça era o suplente

cantador de viola o presidente

e o vaqueiro era o líder do partido.

Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.

 

3

Em Recife o Distrito Industrial

o idioma ia ser Nordestinense

a bandeira de renda cearense

“Asa Branca” era o hino nacional

o folheto era o símbolo oficial

a moeda, o tostão de antigamente

Conselheiro seria o Inconfidente

Lampião o herói inesquecido.

Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.

 

4

O Brasil ia ter de importar

do Nordeste: algodão, cana, caju,

carnaúba, laranja, babaçu,

abacaxi e o sal de cozinhar.

O arroz e o agave do lugar

a cebola, o petróleo, o aguardente:

o Nordeste é auto-suficiente

e seu lucro seria garantido...

Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.

 

 

(Versos de Braulio Tavares:)

 

5

Se isso aí se tornar realidade
e alguém do Brasil nos visitar
neste nosso país vai encontrar
confiança, respeito e amizade;
tem o pão repartido na metade
tem o prato na mesa, a cama quente:
brasileiro será irmão da gente
venha cá, que será bem recebido...
Imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.

 

6

Eu não quero com isso que vocês
imaginem que eu tento ser grosseiro
pois se lembrem que o povo brasileiro
é amigo do povo português.
Se um dia a separação se fez
todos dois se respeitam no presente
se isso aí já deu certo antigamente
nesse exemplo concreto e conhecido,
imagine o Brasil ser dividido
e o Nordeste ficar independente.