terça-feira, 10 de julho de 2018

4365) Os meninos e a caverna (10.7.2018)




A história dos garotos tailandeses de um time de futebol que ficaram presos nas cavernas durante vários dias chamou a atenção do mundo inteiro.

A gente não sabe o que admirar mais: se a serenidade e a fibra dos garotos e do técnico, que aguentaram firme esse tempo todo, no escuro e no frio: se a coragem e o esforço das dezenas de mergulhadores que se revezaram nos túneis submersos (um deles acabou morrendo); se a solidariedade do governo local e dos agricultores da região, que perderam suas plantações, inundadas pelo esforço de retirar água da caverna, mas não se queixaram.

Como sempre tem alguém querendo punir alguém, muita gente quis botar a culpa no técnico, que teria levado os garotos para uma “roubada”, por imprudência.

Pelas matérias que li, o técnico e vários dos meninos já tinham feito, sem sustos, essa mesma exploração das cavernas. É uma espécie de rito de passagem para eles. A intenção era levar um dos meninos, que estava aniversariando, para inscrever seu nome numa parede remota no fundo da caverna, como outros já tinham feito.

É uma bravata? É, sim. Corre-se um risco? Corre-se. Não acho que seja um risco maior do que fumar cigarro e beber álcool – riscos que eu corro, sabendo o que estou fazendo, sabendo que posso morrer por causa disso. Cada um escolhe os perigos que quer enfrentar.

No Nordeste, para quem mora perto de açudes, existe um desafio tradicional: mergulhar até o fundo do açude e emergir com a mão cheia de barro – para provar que se tocou o fundo. É um risco? É uma bravata? Sem dúvida. Garotos e garotas já morreram afogados por causa disso – ficaram enredados em plantas, ou sei lá o quê.

Chegar na fronteira da morte é uma bravata que jovens do mundo inteiro praticam, desde que o mundo é mundo. Pesando os dois lados da coisa, minha constatação é de que poucos estavam tão bem preparados para isso quanto os “Javalis Selvagens”, nome do time de futebol dos garotos.

É um rito de passagem.

Me veio à mente o belo livro de Alan Garner The Stone Book (1976). É a história de uma menina cujo pai trabalha nas pedreiras, na região de Cheshire (Inglaterra). Numa cena perto do fim do livro, o pai conduz à menina ao interior de uma caverna e dá-lhe instruções sobre o que fazer, quando chegam a uma abertura muito estreita.

Ali, o pai se detém, porque não pode passar; a menina entra sozinha, fica de pé num espaço apertado, e ali encontra marcas feitas por crianças de séculos atrás.

Ela entende que quando se tornar adulta não poderá entrar mais ali, porque estará grande demais e não poderá passar pela abertura – como seu pai não passou, e ele tinha entrado ali quando era menino. É um espaço simbólico a que só se tem acesso na infância, e que se perde ao virar adulto.

Histórias assim têm um significado profundo, e não duvido que na cultura dos garotos tailandeses esse tipo de coisa seja levada a sério.

Nós, que levamos a sério tantos rituais idiotas da vida social urbana, que direito temos de achar que eles estão fazendo bobagem?

Cavernas, grutas e passagens subterrâneas têm um poder simbólico muito grande na cultura dos povos que vivem na sua proximidade.

Perto de Campina Grande, milhares de pessoas se arrastam todos os anos por baixo da Pedra de Santo Antonio, inclusive moças que tentam com isso arranjar um casamento. Se arranjam ou não, não sei, mas qualquer pessoa pode fazer o mesmo, e me lembro dos brilho nos olhos da minha mãe quando voltava para Campina depois de praticar essa pequena façanha.

Não é por acaso que um dos primeiros contos publicados por Guimarães Rosa, Makiné (1930) transcorre na gruta desse nome, que fica nas proximidades de Cordisburgo, sua terra natal.

No conto, um mago fenício tenta controlar os selvagens “peles vermelhas” locais, entra em choque com eles e é forçado a se refugiar no interior da gruta:

Numa cripta escura do algar, o mago procurou o orifício bem seu conhecido, que descia alguns côvados como um poço, para mudar logo depois de direção, escavando-se em comprido corredor horizontal. No fim dessa galeria jaziam os diamantes de Summér, o “Sumé” dos vermelhos.

Gruta que ele já havia celebrado num dos poemas de seu livro Magma (1936; publicado em 1997):

Bafio quaternário. O preto
da imensa noite, anterior ao mundo,
com pesadelos agachados
e pavores dormindo pelos cantos,
enrolados nas caudas de gelatina fria,
vem comprimir o peito e os olhos.
E ao acendermos as velas e as lanternas,
a treva se retrai, como um enorme corvo,
das paredes paleozóicas,
salitradas.
("Gruta de Maquiné")

Quem mora em região de cavernas é como quem mora em região de rochedos, região de rios. Tem com essas coisas uma relação que por um lado é simbólica, por outro lado anímica.

Muito mais perigo do que os garotos tailandeses correm os turistas brancos sedentários que uma vez por ano resolvem saltar de “bungee jump”. (É um direito deles, também; e quem sou eu para dizer que não façam.)

Ainda no capítulo dos romances, uma expressão que me veio várias vezes à mente durante este episódio foi o título do belo romance juvenil de Susan Cooper, o primeiro dos cinco que compõem a série “The Dark is Rising”: Over Sea, Under Stone (1965).

“Acima do mar, por baixo da rocha”. É o ambiente claustrofóbico das grutas à beira-mar, espaços às vezes ocos, às vezes inundados, onde só se pode penetrar com segurança em certos períodos. No livro de Susan Cooper, três garotos mergulham ali para descobrir uma espécie de Graal ou objeto sagrado que lhes foi revelado num mapa.

Toda iniciação envolve um risco. O mergulhador que morreu durante as tentativas de salvamento sabia o risco que estava correndo, e tenho certeza de que não se arrependeria.

Talvez a pior coisa que tenha acontecido aos garotos dos “Javalis Selvagens” tenha sido a fama repentina, a exposição à mídia, a badalação. Uma coisa que me parece totalmente contrária ao espírito budista que eles cultivam.

Em toda iniciação se paga um preço, e torço para que esse preço a ser pago pelos meninos não se revele mais alto do que eles poderão pagar pelo resto da vida.