quinta-feira, 14 de maio de 2009

1030) Davi e Golias (5.7.2006)



O duelo entre Davi e Golias geralmente é visto como a vitória do pequeno contra o grande, do fraco contra o poderoso. Virou uma metáfora freqüente no futebol, no boxe, etc., e se mistura ao conceito da vitória do pobre contra o rico, do oprimido contra o opressor, etc.

O episódio (no 1o. Livro de Samuel) pode ser visto de outra forma. Davi matou Golias com uma pedra arremessada por uma funda, sem ter que se arriscar entrando no raio de ação das armas do adversário. Sua vitória é simplesmente a vitória do duelista que possui armamento superior, tecnologia superior. É a vitória do mais moderno, que usa a tecnologia de forma eficaz, e com isto reverte uma situação de aparente desvantagem material.

Uma objeção pode ser levantada: a de que a tecnologia do guerreiro filisteu era superior à do pastorzinho israelita. Afinal, a Bíblia descreve com detalhes o capacete, a couraça, as botas e o escudo usados por Golias (todos de cobre), e sua lança de ferro. Era decerto a melhor tecnologia disponível na época, senão Golias não sairia a provocar o exército de Israel, dizendo que se algum israelita o derrotasse os filisteus concordariam em deixar-se escravizar. Por outro lado, a funda de Davi era uma arma tradicional, que naquele tempo já estaria sendo usada há milhares de anos sem modificações. Um pedaço de couro amarrado a duas tiras, e cinco pedrinhas redondas: uma arma de baixa tecnologia, portanto.

Isto recoloca a questão nos seguintes termos: tecnologia superior não é necessariamente a mais recente, a mais cara, a de maior potencial quantitativo. É a tecnologia mais eficaz para uma situação específica. Qualquer pessoa sabe que a tecnologia superior para matar uma barata não é um revólver, é um chinelo. Nos últimos cem anos, vimos inúmeros exemplos de guerrilhas que derrotam exércitos com tecnologia mais poderosa, mas inadequada para o terreno, o clima, a distribuição de forças, etc. Na Bíblia, Davi chega a experimentar, antes do combate, armamento similar ao do gigante, mas desiste: “E Saul vestiu a Davi das suas armas e pôs sobre a sua cabeça um elmo de cobre, e o guarneceu de couraça. Cingido pois Davi com a espada de Saul sobre seus vestidos, começou a ver se poderia andar assim armado: porque não estava acostumado. E disse Davi a Saul: Eu não posso andar assim, porque não tenho uso disso” (I Samuel, 17, 38-39).

A vitória de Davi é a vitória do duelista que consegue evitar o choque em condições que favorecem o adversário e sua tecnologia, e dá um jeito de travar o combate de tal maneira que sua própria tecnologia, aparentemente inferior, revela-se como a única eficaz. Não é uma simples vitória do “pequeno” contra o “grande”, a qual acaba sempre sendo vista em termos meios românticos como uma prova de que os fracos podem derrotar os fortes. É a vitória da tecnologia mais eficaz e do planejamento, e isto tanto pode ser posto em prática pelos pequenos quanto pelos grandes.

1029) Eu defendo Parreira (4.7.2006)


(ilustração: Nei Lima)

Já sei que muita gente vai botar minha cabeça a prêmio por causa disto, mas eu defendo Carlos Alberto Parreira, que sempre achei (e continuo achando) um dos melhores técnicos do Brasil, mesmo discordando, como discordo, de algumas escalações e opções táticas suas nesta Copa. Talvez não seja o técnico ideal para a Seleção, concordo. Parreira é um homem culto, inteligente, ético, emocionalmente equilibrado, e bastam estas características para desqualificá-lo para uma função onde o sujeito precisa de malandragem, habilidade conspiratória nos bastidores, discurso duplo, ética dupla, mentalidade imediatista, talento para impor a própria vontade dando murro na mesa, em vez de argumentando. Concordo: não é a cara de Parreira.

Felipão teria substituído Cafu, Ronaldo, Roberto Carlos, seus heróis do Penta? Duvido muito. Felipão é o tipo emocional, vê o time como uma “família”, e não iria desprestigiar os primogênitos que lhe deram fama. Parreira convocou a geração da Copa das Confederações (Cicinho, Robinho, Gilberto) mas não teve força política para impô-los. Talvez tenha sido vítima de excesso de cautela (um defeito seu), e pensou: “Pois é, quem me garante que os garotos não vão amarelar?” Optou pelos veteranos, e os veteranos esverdearam.

É fácil escalar onze jogadores. O que não é fácil é escalar onze empresas. Um jogador de Seleção (ainda mais a Brasileira!) é uma empresa bem grandinha. É a ponta de um iceberg formado por equipes de trabalho, assessores, empresários, publicitários, gerentes de Banco, empresas associadas em mil projetos beneficentes, de propaganda, educativos, sociais. Por trás de qualquer um dos nossos 23 craques existe, no Brasil e na Europa, um exército de centenas de sujeitos poderosos e influentes para quem o sucesso pessoal do seu sócio, cliente ou patrocinado é mais importante do que o do time em que ele joga. Se pensarmos que grande parte desses interesses tem sede na Europa, dá para entender melhor essa febre de recordes pessoais enquanto a Seleção Brasileira se arrasta em campo.

Toda a beleza do futebol está dentro das quatro linhas. O que existe em volta delas, principalmente numa Copa, é uma história de arrepiar os cabelos de brasileirinhos zé-ninguém como eu e você, caro leitor. É parecido com a história financeira da construção de Brasília. Com as quedas-de-braço diplomáticas que culminaram no Tratado de Versalhes. Com a partilha do Oriente Médio após a II Guerra Mundial. Briga de cachorro grande. A Copa de hoje é o banquete do Capitalismo Tele-Esportivo: patrocínios, direitos de transmissão, contratos de propaganda, expansão de mercados.. É o regabofe dos executivos, enquanto os ronaldos e ronaldinhos de periferia jogam a grande cartada dos seus parcos 15 anos de vida útil. Parreira? Coitado, o único erro dele foi ter aceitado, sabendo que o Brasil não era mais o franco-atirador de 1994, e sim um Titanic cheio de ouro, cercado por uma frota de navios-piratas.

1028) A palavra paradigma (2.7.2006)



Certas palavras têm uma história fácil de traçar. A palavra “maracutaia” era uma expressão antiga e obscura, usada na região de Garanhuns; mas pulou triunfante para as vitrines do Aurélio depois que Luiz Inácio Lula da Silva, candidato a presidente em 1989, usou-a numa entrevista. Como já havia um enorme desgaste (pelo uso freqüente) de termos como negociata, falcatrua, trambique, etc., o vernáculo acolheu de braços abertos a recém-chegada. E quem não se lembra do ex-sindicalista e ex-Ministro do Trabalho Rogério Magri, um Severino Cavalcanti com físico de Schwarzenegger? Um belo dia ele declarou que uma determinada Lei era “imexível”, o que lhe valeu injustas gozações por parte de algumas pessoas, como se a língua brasileira não fosse produto coletivo de gente com o mesmo nível cultural do hercúleo Ministro.

Passei batido e não registrei a data em que a palavra “paradigma” entrou no futebol brasileiro, mas não duvido que tenha sido na década de 1980, e lanço aqui meu palpite triplo sobre o seu inaugurador: Sebastião Lazaroni, Paulo Autuori ou Vanderlei Luxemburgo. Volta e meia lá vem um deles (ou seus seguidores estilísticos, como Oswaldo de Oliveira ou Levir Culpi): “Nosso time precisa mudar de paradigma, porque não está valorizando a posse de bola...” Modelos e atrizes também declaram, peremptórias: “Achei que era a hora de adotar outro paradigma, e pintei o cabelo”.

De minha parte, fui apresentado a este vocábulo no livro de Thomas S. Kuhn A estrutura das revoluções científicas (Ed. Perspectiva, SP, 1982), livro tão genérico que pode ser entendido até por um sujeito sem formação científica como eu. Para Kuhn, paradigma é um conjunto de noções consensualmente aceitas por uma comunidade científica. É a “verdade dos fatos” que vigora naquele momento específico, mas que pode ser substituída, se aparecer uma explicação melhor. Um paradigma geralmente é aceito porque ao surgir responde um número satisfatório de questões que estavam pendentes, e com isto atrai um número expressivo de seguidores. Por outro lado, esta nova situação gera novos problemas, que irão manter os cientistas ocupados pelos anos seguintes, e poderão ser (em tese) solucionados futuramente pelo surgimento de um novo paradigma, mais completo e mais satisfatório. Exemplos clássicos disto são, na astronomia, o paradigma Geocêntrico (o Sol gira em torno da Terra) que vigorou durante séculos, mas quanto mais as observações astronômicas evoluíam mais os cálculos “não batiam”, se ele fosse tomado como ponto de partida. Surgiu então, com Copérnico, o paradigma Heliocêntrico (a Terra gira em torno do Sol), e de um momento para outro todos os cálculos e todas as observações diretas se encaixaram às mil maravilhas.

Um paradigma é o chão onde os cientistas pisam; é a crença fundamental que faz sua atividade ter sentido. Para destruí-lo, é preciso substituí-lo por outro, para que a Ciência não venha a boiar no vácuo do Absurdo.

1027) Alô torcida brasileira (1.7.2006)



Meus informantes na Copa têm me repassado informações contraditórias. Todo jornalista tem suas “fontes”, pessoas que lhe dizem o que está acontecendo, e em cuja opinião, honestidade e discernimento o jornalista confia. Mas, o que acontece quando fontes igualmente confiáveis dão retratos antagônicos de uma situação?

Uma das minhas fontes é o jornalista Bronislaw Korchinski (nome fictício, porque não posso revelar sua verdadeira identidade). Me diz ele: “BT, você devia ter vindo para a Copa. A Alemanha é uma festa. Lembra daqueles velhos tempos dos Encontros da SBPC? Lembra do Festival de Inverno de Ouro Preto, ou do Festival de Verão de Areia? Lembra de Woodstock? Pois é algo parecido, só que em torno do futebol, e com três jogos por dia! Os jogos são de mais-ou-menos para medianos, mas isto é o que menos importa. A grande festa está nas arquibancadas. Gente fantasiada de viking, de Mickey, de totem tribal, de odalisca, de Carlitos, de fantasma... Confraternização étnica, torcidas adversárias vibrando juntas, sem briga, sem agressões. Terminado o jogo, vencedores e vencidos vão beber juntos e cantar músicas dos Beatles em inglês estropiado. Ah, se o futebol no Brasil fosse assim! Sem pancadarias, sem torcidas organizadas, sem bombas, sem assaltos, sem gangs de batedores de carteira e de puxadores de carro... A Copa está me fazendo amar de novo o futebol!”

Grande Bronislaw. Quando li seu email, comecei a procurar o telefone de alguma empresa aérea para ver se ainda tinha passagem para Dortmund ou Hamburgo. Mas na mesma hora apareceu outro email, de outra fonte, a quem chamaremos de Lazslo Dubcek. Diz ele:

“BT, estou enojado. Uma Copa falsificada, e o mais falsificado é a torcida. A coisa mais rara aqui é você encontrar quem saiba o que é um escanteio. Não é uma Copa para torcedores, é uma Copa para turistas endinheirados, mocréias e rapazes alegres que pintam a cara, botam uma peruca em cores berrantes e vão rebolar na arquibancada, e o jogo que se dane. Arrisco-me a dizer que 70% dos que estão aqui nunca tinham sentado antes numa arquibancada de futebol. A melhor prova disso é uma das frases que mais ouvi até agora: 'Eu não sabia que futebol era tão bom! Quando voltar ao Brasil irei ao estádio todo domingo!' Coitados, não sabem o que os espera.

“Mas o pior,” prossegue Lazslo, “é você constatar que quase todos estão aqui através de um trem-da-alegria qualquer. São convidados de Bancos, de empresas multinacionais, de governos locais, de assembléias, de montadoras de carros... Vieram para a Alemanha através de algum tipo de jabá. Uns ganharam boca-livre 24 horas por dia; outros ganharam passagem e hospedagem, ou passagem só de ida (e pela Varig!), mas eu sinceramente não sei dizer quem exprime mais o Brasil de hoje, se são as gangs do Pacaembu ou os vôos-da-alegria da Alemanha.” Como eu também não sei, repasso o problema para os caros leitores.

1026) As entranhas do futebol (30.6.2006)



A revista Caros Amigos de junho traz uma reportagem de capa com Juca Kfouri, jornalista esportivo de São Paulo que, segundo ele próprio, sofre dezenas de processos civis e criminais movidos por pessoas que vão desde Ricardo Teixeira, presidente da CBF, até Marcelinho Carioca, o folclórico craque ex-Corinthians, atualmente no Vasco. Li porque gosto da revista e do entrevistado, mas as matérias de Juca Kfouri sempre me deixam meio deprimido. É que no futebol o que me seduz é a festa das torcidas, a dramaticidade das emoções contraditórias, a beleza dos gols e das jogadas de gênio. Ou seja: a arte e o drama do jogo de bola. Mas Juca Kfouri (que aprecia isto tudo tanto quanto eu) vai mais além. Ele discute a política do futebol.

É como você ter uma Ferrari maravilhosa, que passa na rua, escarlate e longilínea, arrancando fiu-fius da galera, aí você pára e abre o capô, para mostrar como ela funciona. Revela-se, aí, o lado sujo e sórdido do automobilismo: engrenagens rudes e toscas, feitas de um ferro abrutalhado, “meladas de óleo”, tresandando um insuportável fedor de gasolina. A magia e a arte vão para o espaço: estamos diante da dura realidade de como os carros se movem.

Assim é o futebol. Briga de cachorro grande, e a cachorrada não é pouca. Foi-se o tempo em que Nilton Santos, já campeão do mundo pelo Brasil, pegava o ônibus para ir treinar no campo do Botafogo. Vejam bem: não morro de saudades desse tempo. Admiro a simplicidade da geração de Nilton Santos, mas imagino que todos os craques daquela geração gostariam de ter ganho salários mais justos. O problema com o Brasil é a nossa mania de 8-ou-80. O que se vê hoje em dia é uma indústria gigantesca em torno dos nossos boleiros, que são jovens, em geral são pobres, e de repente se vêem diante de verdadeiras fortunas de um dinheiro que não conseguem dimensionar. E o jovem craque, das duas uma: ou é farrista e torra o dinheiro todo em uísque, carro-do-ano e rapariga, ou então é um rapaz honesto, arrimo de família, mas a pressão em seus ombros não é menor, porque tem que dar casa para os pais, casa para os irmãos, pagar os estudos dos sobrinhos, pagar plano médico para algumas dezenas de parentes, montar escolinha para tirar da rua as crianças de sua cidade, e por aí vai.

As seduções são muitas, e o dinheiro que rola é um Amazonas. Sou um crítico feroz dos salários extravagantes do nosso futebol. O Flamengo pagar 80 mil mensais para Obina? Tenha santa paciência. Mas pior ainda é a Máfia dos empresários, dos cartolas, dos dirigentes que levam na mão grande o dinheiro das bilheterias, das negociações escusas de contratos, patrocínios e vendas de jogadores. Juca Kfouri cita o caso de um jogador que ele criticou por se fazer acompanhar de um empresário pouco escrupuloso. O atleta aceitou a crítica e disse: “Eu sei, Juca, mas pra negociar com bandido eu preciso de um que seja tão bandido quanto eles”. Brazil-ziu-ziu!

1025) The book is on the table (29.6.2006)



Livro traduzido é como filme dublado. O Mercado e a Lei os consideram como “a mesma obra” em relação ao original, mas é uma mesma obra em que algo de essencial foi substituído. Mesmo que seja com o consentimento do autor, como em geral é, mesmo que tenha sua aprovação ou até sua participação no processo, é outra coisa.

Quando lemos “Guerra e Paz” em português temos a sensação da presença da Rússia através da história, dos personagens, dos ambientes, mas vemos tudo através do filtro da língua portuguesa-brasileira, que tem sua própria sonoridade, seu próprio ritmo, suas próprias ramificações de significado a partir de cada palavra. Na tradução de uma obra assim, o melhor é que a língua torne-se transparente, invisível, chame o menos possível a atenção para sua brasileiridade, para que o leitor possa ter a ilusão tácita de que está lendo a obra como ela foi escrita em russo. Até que ponto isto é possível? Lemos: “O enorme exército marchava através da estepe”. Tudo OK. Mas a palavra russa para “estepe” deve ser tão intraduzível quanto a palavra “caatinga”, em termos de ressonância social, psicológica, afetiva.

Dizem que Ezra Pound aprendeu português só para ler “Os Lusíadas” no original. Eu já tive vontade de aprender alemão só para ler Brecht e Kafka, dois dos meus autores preferidos, e que, a rigor, nunca li. Não desmereço o ofício dos tradutores. É difícil, ingrato e mal pago. É como ser goleiro: um único erro pode apagar todos os seus acertos. Você trabalha como um galeota, rema dezesseis horas por dia, acorrentado ao convés, e quem chega ao porto é o Autor, para ser recebido com festas. E se ele chegar atrasado, ou em más condições, a culpa é sua.

The book is on the table. O livro é o dicionário Estrangeirês-Português, que os leigos imaginam que é tudo que é necessário para transpor na ordem certa as palavras escritas por Sófocles, Dostoiévski, Confúcio ou Schopenhauer. O problema é que a cada linha de texto descobrimos sempre que não é uma simples questão de saber qual é a palavra nossa que equivale a cada palavra deles. Trata-se de reproduzir nuances de sentimento, modismos de fala, hábitos sociais... Alguém pode me dizer como um inglês traduziria “cafuné” ou um suíço traduziria “pirangueiro”?

A coisa mais chata para um tradutor não é quando ele não acha uma palavra no dicionário. É quando ele acha mas a única maneira de traduzi-la é deixá-la no original e recorrer à famosa “nota ao pé da página”: “Espécie de arbusto da África Setentrional, cujas folhas têm propriedades medicinais...” Não existe aqui, portanto não temos palavra equivalente, e é preciso substituir por uma descrição. O que não se traduz, descreve-se. O mais engraçado é que o tradutor tem uma sensação de derrota quando oferece tais explicações ao leitor; e o leitor (algum leitor) dá um sorrisinho de mofa, pensando com seus botões: “Arrá! Não soube traduzir!” Não, amigos, é pior do que ser goleiro.