quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

1486) Zeca tuas ventas (18.12.2007)



A cervejaria Brahma está se excedendo na própria falta de assunto e de idéias. Tempos atrás tentou inventar uma moda – que não pegou nem vai pegar – de mudar o nome da “quarta-feira” para “zeca-feira”, sendo Zeca, no caso, uma alusão a Zeca Pagodinho. A quarta seria o dia de Zeca – o dia de tomar cerveja. Agora, inventaram outra – que não vai pegar, nem pegou – de chamar a “happy hour” (aquela saidazinha com os amigos após o expediente) de “Zeca hora”. Eu estou com vontade de fazer uma aposta. Cada vez que eu ouvir alguém chamando espontaneamente a quarta-feira de zeca-feira, ou uma “happy hour” de zeca-hora, eu passo um dia inteiro sem beber cerveja.

Vamos examinar esse papo de zeca-hora, o que está indo ao ar. Começa com uma suposta boa intenção, a de substituir por uma expressão em português mais uma dessas coisas que dizemos em inglês para bancar os cosmopolitas e nos diferenciarmos da plebe rude que não sabe pronunciar essas coisas. Na hora de trocar “happy hour” por alguma coisa, a propaganda escorrega quando a traduz por “hora alegre”. Não é, amigos. “Happy hour” quer dizer “hora feliz”, o que não é a mesma coisa. Alegria é quando estamos satisfeitos, eufóricos, mas com a consciência de que se trata de um momento passageiro. Felicidade é quando estamos na mesma situação mas pensamos que esse estado vai perdurar indefinidamente. Para resumir: a gente diz que “está alegre” e diz que “é feliz”.

Traduziram errado – mas não por ignorância, visto que todo publicitário brasileiro é alfabetizado em inglês, e só aprende a língua de Zeca Pagodinho para se comunicar com os nativos. É porque “hora feliz” não lhes proporcionaria o duplo sentido que “hora alegre” proporciona, e que eles exploram no anúncio, sugerindo que “hora alegre” é coisa de homossexual.

Por que? Ora, porque a palavra “gay”, antes de designar homossexual, era um inofensivo adjetivo que significava “alegre”. O uso foi se desviando desde o século 19 para indicar promiscuidade e vida dissipada (“gay house” era bordel, assim como chamamos as prostitutas de “mulheres de vida alegre, ou vida airada”). O uso moderno de “gay” como substantivo indicando um homossexual masculino é da década de 1970, e tem contaminado em retrospecto muitos textos antigos, principalmente letras de músicas, em que o sujeito cantava “Oh, today I am so gay...” ou coisas que o valham. (A palavra vem do francês “gai”, alegre, e é um adjetivo de pouco uso em português, vide “A gaia ciência”, tradução do livro de Nietzsche, ou “A ingaia ciência”, poema de Drummond)

Vai daí que os publicitários da Brahma, querendo combater a expressão “happy hour”, não tiveram como questionar “hora feliz” e inventaram que é “hora alegre”, para nos ameaçar com a pecha de homossexual e nos impingir esse desajeitadíssimo “zeca-hora”. É por essas besteiras e outras que um inglesismo como “happy hour” tem tudo para se fixar em nosso idioma nos próximos cem anos. Zeca-hora o quê, rapaz.

1485) O Burocrata Troglodita (16.12.2007)


Quando as tribos crescem, é preciso que alguém encare a espinhosa tarefa de dar-lhes Ordem, antes que o Caos tome conta. Ainda mais hoje, no tempo pré-histórico, quando não dispomos das facilidades de catalogação do mundo moderno: computador, Internet, livro de ponto, expediente, protocolo, e manifestações de apreço ao Sr. Diretor. Não obstante, a chama do pensamento criador já brilha em nossos cérebros hominídeos!

Por exemplo: um debate acirrado, que está pegando fogo aqui na caverna, é o que se trava entre duas correntes do pensamento organizatório. De um lado, temos os partidários da Ordem Alfabética, e do outro os defensores da Ordem Cronológica. Estes surgiram primeiro, em virtude da nossa percepção empírica do suceder dos dias e noites. Tivemos várias reuniões em volta à fogueira (nosso “locus” de debate por excelência, até porque fica mais fácil livrarmo-nos dos dissidentes). Eu havia nomeado um Grupo de Trabalho para preparar um cronograma das atividades da tribo. Um dos grandes problemas de nossa era paleolítica é a interminável discussão de todas as manhãs, que nos faz perder um tempo enorme antes de sairmos à procura de alimento. Existem duas correntes filosóficas principais: os Ineditistas, para os quais aquele dia é um dia que nunca aconteceu antes, e os Recursivistas, para os quais todo dia é uma repetição deteriorada do dia anterior. Ambos parecem ter carradas de razão – pelo menos, ambos têm carradas de argumentos. Quando chegamos a um impasse mais espinhoso, a tarde já descamba, e os jovens já estão de volta trazendo mel, frutos silvestres, e de vez em quando um javali abatido.

Ordenei ao Grupo de Trabalho que fizesse uma lista de todos os eventos da vida da tribo, para que tivéssemos certeza se determinado fato já tinha ocorrido ou não. O grupo pôs logo mãos à obra, e dentro de breve tempo tínhamos catalogado uma quantidade impressionante de informações, tais como “Chuva apaga fogueira”, “Aranhas invadem caverna”, “Mulher 17 tem bebê”, etc. Como ainda não dispomos da escrita, ficamos na dependência da memória dos membros do grupo, que a certa altura começaram a confundir-se, misturando “Raio carboniza árvore” com “Raio carboniza árvore”, dois fatos ocorridos em anos diferentes, mas que catalogados assim parecem uma repetição.

Surgiu então a teoria da Ordem Alfabética, cujo grupo sugeriu nomearmos membros da tribo para a memorização dos fatos começados por uma mesma letra. Esta foi uma evolução notável, porque tivemos que inventar o alfabeto, mesmo sem podermos imaginar os espantosos desdobramentos futuros de uma tão simples medida. O problema, agora, é que, por alguma razão que desconhecemos, os fatos enumerados em ordem alfabética estão numa tremenda desorganização cronológica; e vice-versa. O que parece sugerir a hipótese, muito perturbadora até para uma mente troglodita, de que quanto mais a gente busca ordem numa direção mais vulnerável fica ao caos, na direção oposta.

1484) “Utz” (15.12.2007)


Este esguio romance de Bruce Chatwin tem o encanto indefinível das narrativas que parecem no umbral de um gênero, mas não dão o passo decisivo que as deixaria aprisionadas dentro da armadilha de uma convenção literária. Utz é uma biografia romanceada? Ou a história da vida de um indivíduo imaginário? É um livro sobre a Guerra Fria? Sobre a psicologia do colecionador? É a improvável história de amor entre um patrão e uma criada de meia idade?

Kaspar Utz foi um judeu tcheco, com parentes vagamente nobres, que ainda jovem começou a colecionar porcelanas de Meissen, um tipo de porcelana de extrema pureza que produz peças belíssimas. Não era rico, mas formou sua coleção aproveitando a bancarrota alheia: “Guerras, pogroms e revoluções oferecem excelentes oportunidades para o colecionador”. (Assis Chateaubriand e o Masp que o digam.) Vivendo sob o regime comunista em Praga, Utz consegue freqüentes salvo-condutos para ir à França, pretextando tratamento médico. Poderia fugir, não voltar nunca mais. Por que não o faz? Para não perder sua coleção.

A história começa com o funeral de Utz e a narração de como os dois se conheceram. (O livro é narrado na primeira pessoa; Chatwin é um desses jornalistas-autores que nunca nos dão certeza do quanto é fato e do quanto é ficção em seus relatos.) Ele é apresentado a Utz, conhece sua primorosa coleção, percebe a relação esquisita de Utz com sua fidelíssima e mal-humorada governanta. Utz o recebe meio a contragosto. Os dois discutem a obra de Kafka, discutem política, discutem alquimia, discutem a lenda do Golem (o homem artificial criado do barro, como as peças de porcelana), ironizam os europeus ocidentais que vão à Tchecoslováquia para analisar os dissidentes políticos como se estes fossem espécies em extinção.

Chatwin tem um estilo enxuto, compacto, e nas 134 páginas do livro (Companhia das Letras, 1990) cria este personagem antipático e fascinante. Seu romance é a história de um fanático que a certa altura da vida, por motivos inexplicáveis, deixa sua maior obsessão se perder. Após a morte de Utz, ninguém (nem mesmo as autoridades comunistas) tem a menor idéia do que foi feito de sua coleção, desaparecida tão misteriosamente quanto o famoso Salão de Âmbar russo, um tesouro que sumiu, não se sabe onde, nem como, nem através de quem, durante a II Guerra Mundial.

O estilo de Chatwin neste livro é notável. É como se ele tivesse escrito um livro de 600 páginas, por alguma razão não pudesse publicá-lo, e tivesse resumido cada um dos seus parágrafos numa frase. Tudo é curto. Mesmo as cenas de vinte páginas nos dão a impressão de terem sido muito mais longas. Tudo aparece ali resumido, condensado, concentrado em frases límpidas, claras, que dão uma informação, passam para a próxima e não tocam mais no assunto. Não parece um romance, geralmente um gênero acumulativo, em que as informações são reiteradas de diferentes formas. O livro de Chatwin é o contrário disto.

1483) Pikachu Metallica (14.12.2007)




Ouvindo o nome a gente nunca o liga à pessoa. Pikachu Metallica é um rapaz de seus vinte e poucos anos, de modos reservados, óculos discretos, vestindo-se como um estudante de Direito, o que de fato é – forma-se no ano que vem. 

Mora com a mãe num apartamento em Botafogo, a vinte metros do Espaço Unibanco de Cinema, do qual é freqüentador assíduo. Foi lá que o conheci junto a um grupo de amigos que estava fazendo hora, tomando cafezinho, à espera da primeira sessão de um filme de Eduardo Coutinho.

Claro que seu nome não é esse; chama-se Marcelo, Maurício, alguma coisa assim. Mas o apelido pegou e não saiu mais. Um dos amigos que estavam com ele naquele dia tinha sido meu aluno numa oficina qualquer. Entre um café com leite e um pão de queijo, começamos a trocar idéias sobre documentário, e me admirei em ver que aqueles caras tão jovens tinham visto a maior parte dos meus clássicos preferidos, desde Flaherty até Chris Marker.

A história de Maurício foi se desvendando aos poucos, principalmente nos dias em que ele não aparecia. 

Me disseram que ele era o ai-jesus da mãe viúva, que lhe fazia todos os gostos. Aos seis ou sete anos foi contaminado, como tantos outros de sua geração, pelo vírus Pokemon, contra o qual a Ciência permanece impotente. Viu todos os desenhos do Cartoon Network, colecionou todos os bonecos, sabia de cor os nomes, as propriedades, a evolução. (Aliás foi ele quem me mostrou a música de Caetano Veloso sobre o Pokemon, gravada por Cássia Eller, aquela que diz “Tenho que pegar, tenho que pegar... Será que ela evolui?”) 

Um dia, exigiu fazer uma tatuagem nas costas. A mãe (carente, devota, apaixonada) cedeu.

O problema é que Marcelo evoluiu. Surgiram as primeiras espinhas, os primeiros pentelhos. As glândulas endócrinas começaram a viciá-lo em hormônios, os tímpanos, afinados como tamborins de escola, passaram a exigir doses cada vez maiores de guitarra e estridência. 

Ele jogou fora todas as quinquilharias da infância e aderiu ao heavy-metal. Só se vestia de preto, usava correntes, o cabelo parecia o da Maga Patalójika. CDs de bandas com aparência Neandertal se empilhavam no seu quarto. A mãe (cansada, míope, costurando o dia inteiro) já nem tinha mais forças para argumentar quando ele, envergonhado da tatuagem nas costas, anunciou que ia fazer outra no peito.

Nada como uma namorada para nos curar de certas deformações masculinas. Quando os decibéis do metal foram amainando, ele conheceu numa festa a tímida Joana. Com uma delicadeza implacável e uma doçura irresistível ela o fez cortar o cabelo, organizar-se, vestir-se feito gente. Ele passou no Vestibular. Entrou para um cineclube. Descobriu Chico Buarque, Duke Ellington, José Saramago. 

Hoje é um rapaz feliz, vai casar depois da formatura. Joana é que não entende por que motivo ele não gosta de ir à praia, e por que, quando está com ela, ele só tira a camisa na escuridão total.