sexta-feira, 3 de agosto de 2018

4373) "O Homem Que Subiu em Aeroplano Até a Lua" (3.8.2018)





Uma das primeiras histórias brasileiras de viagem à Lua é a do folheto de cordel O Homem que Subiu em Aeroplano Até a Lua (NHUFQDN). A edição mais antiga que já vi foi uma de 1923, atribuída a João Martins de Athayde. Foi essa a atribuição que usei num artigo, “A Ficção Científica no Cordel”, que fiz para uma antologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Volta ao Mundo da Ficção Científica, ed. Edgar Cézar Nolasco e Rodolfo Rorato Londero, Campo Grande: UFMS, 2007).

No arquivo online da Casa de Rui Barbosa (RJ) pode-se consultar e ver a capa de outra edição, de “6-10-47” (ver ilustração acima), igualmente atribuída a Athayde sob a dúbia rubrica de “editor proprietário”. No entanto, checando tempos depois a Literatura Popular em Verso da própria Casa vi que Sebastião Nunes Batista, que entende do assunto mais do que eu, atribui a autoria a Leandro Gomes de Barros – como tantas outras obras de Leandro, talvez, de que Athayde se apossou editorialmente.

O texto completo, digitalizado:


(Leandro x Athayde)

O folheto em si é uma aventura onde a ida à Lua tem duas partes. A primeira é um pretexto para um conflito armado entre terrestres resolutos e selenitas indóceis. Uma aventura de cinema mudo, escrito numa época em que talvez ainda fosse possível entrar num cinema do Mercado São José e assistir um “filme de efeitos especiais” de George Méliès. A segunda parte é uma fantasia.

Antes da viagem ser realizada, somos levados à oficina de Baratão, o herói da história. É uma mistura dos famoso “Marcos e Obras” inexpugnáveis com uma certa “ciência gótica”, em que nomes de mecanismos ou de processos técnicos são invocados “do nada” para dar colorido imagético, para dar prosseguimento à história, ou para resolver uma enrascada descritiva.

O bueiro da officina
era grosso e tão comprido
como a Torre de Babel
de ferro só construído!
O motor era um damnado
corria tão apressado
que só se ouvia o zunido.

Essa officina fazia
espadas, lanças, couraças,
cada um canhão pavoroso
que tinha mais de cem braças
e um tiro desse canhão
derrubava um batalhão
nem que tivesse mil praças.

Uma vez foi Baratão
aos engenheiros e disse
que inventassem um motor
que até a lua subisse
gritou a todos zangado
que o motor fosse inventado
nem que a cachola partisse.

A engenhoca é entregue um mês depois, porque no cordel tudo ocorre tão magicamente como no velho cinema mudo. A realidade exibida ali é tão frágil que a gente tem medo de fazer um só questionamento e ela vir abaixo. Não se deve tocar nunca numa bolha de sabão, nem mesmo se ela for retangular, suspensa no escuro.


(Le Voyage dans la Lune, Georges Méliès, 1902)

A narrativa tem menos de Julio Verne do que de Terry Gilliam (são muito afins com o cordel , p. ex., os contos do Barão de Munchausen). Quando o aeroplano fica pronto, ele resulta numa coisa muito próxima àquele monstrengo de avião que o milionário Howard Hughes construiu na marra, e Scorsese fez um filme.

Era uma coisa horrorosa
a tal machina inventada,
uma légua de comprida
depois que ficou armada; (...)

Baratão vai à Lua e os detalhes podem ser consultados online no saite da Casa de Rui Barbosa. A “máquina” pousa mas todos continuam adormecidos a bordo, o que anima os selenitas a atacá-los; mas eles não são terrestres à toa, e a reação é pesada.

Daí a pouco foi sangue
que fez lagoa no chão...

Uma escaramuça mortal não muito diversa da que H. G. Wells imaginou para os seus First Men on the Moon (1901). Romance, aliás, adaptado para o cinema em 1919 por Bruce Gordon. Como Leandro morreu em 1918, não poderia ter assistido o filme. Athayde sim, pois só morreria em 1959, e além do mais era frequentador assíduo dos cinemas do Recife.


(The First Men on the Moon, de Bruce Gordon, 1919)

A narrativa tem uma guinada interessante rumo à segunda parte. Estes selenitas iniciais, que destroem a nave, logo dão lugar a uma estrada, uma cidade, um palácio, e um Sultão, pai de uma bela princesa, chamada Amante. (Digressão: O rei benévolo ou desconfiado, e a princesinha em oferta: estes arquétipos são mais difíceis de destruir do que um andróide.) Vira uma história romântica das Mil e Uma Noites, e Baratão, plenamente à vontade na diplomacia, pede e consegue a mão da moça.

A história, que neste segmento vinha totalmente oriental, com certa coerência, no momento de emoção maior vê a mão nordestina do autor ficar pesada:

Quando Amante soube disso
de alegria desmaiou
nesse dia foi um frêvo
e todo povo dançou
foi banquêtes mais banquêtes
buscapé bomba, foguêtes
toda a corte formou.

O casamento tem as mesmas imagens singelas das histórias sonhadas dos prinspos e das prinspas do sertão:

Uma enorme carruagem
dois mil carros enfeitados
os arreios dos cavallos
eram todos prateados
as igrejas repicavam
e todas flores jogavam
sobre os noivos acclamados.

Imagens que lembram o “Romancinho” de Cecília Meireles, o poema da mocinha pobre que corre à beira da estrada para ver passar o filho do rei.

O triunfo final da fantasia é que nem passa pela cabeça de Baratão consertar o aeroplano (que os selenitas escangalharam) e voltar para a Terra.

Personagem de fantasia se assimila mais facilmente ao reino que descobre. Quem geralmente quer voltar de qualquer maneira é o personagem de ficção científica.  Foi profetizado e cumprido, com imaginação sociológica, por John Kennedy: “Vamos levar um homem até a Lua – e trazê-lo de volta em segurança”.

“Trazer de volta para a Terra” é um preceito humanista da corrida espacial, relacionado ao “nenhum homem será deixado para trás” dos soldados em combate.

Os norte-americanos nunca perdoaram os russos por Laika, e apesar de alguns problemas retumbantes a NASA parece ter sido mais cuidadosa com a vida humana do que o programa espacial soviético. Mas como Baratão pertence a outra estirpe, não fez a menor questão de voltar ao nosso planeta:

Quem duvidar dessa historia
vá na lua perguntar
por signal toda a familia
de Baratão ha de encontrar
si a vida lá for boa
e si não ficar à tôa
não queira mais lá voltar.






(Le Voyage dans la Lune, Georges Méliès, 1902)