terça-feira, 11 de março de 2008

0242) A FC de Augusto dos Anjos (30.12.2003)




Para a maioria das pessoas o nome "ficção científica" evoca apenas o lado popularesco do gênero: os filmes de Lucas & Spielberg, os quadrinhos (de Flash Gordon à Marvel Comics), os seriados tipo Jornada nas Estrelas

A verdadeira ficção científica, no entanto, tem suas raízes nos contos filosóficos dos séculos 17 e 18, e nos chamados "romances científicos" do século 19: obras especulativas e filosóficas, como o Somnium de Kepler (1634), que descreve uma viagem à Lua e as criaturas que ali habitam; Micrômegas de Voltaire (1753), onde dois habitantes das estrelas ironizam a espécie humana; Frankenstein de Mary Shelley (1818), a primeira história de criação da vida em laboratório; etc. e tal.

Augusto dos Anjos, cujos autores preferidos eram Herbert Spencer, Haeckel e outros, criou sua poesia dentro desse ambiente de crenças evolucionistas, em que os pensadores se perguntavam: O que é a humanidade? O que nos distingue dos animais, dos microorganismos, dos vegetais? De onde surgimos? Em quê iremos um dia nos transformar? 

Essa visão em escala cósmica, em escala de milhões ou bilhões de anos, está praticamente ausente da literatura brasileira, na época em que Augusto dos Anjos escrevia; e da poesia brasileira então, nem se fala. 

Augusto era considerado um excêntrico por seus contemporâneos, pelo linguajar científico que empregava. Hoje, podemos perdoar a estranheza com que os poetas daquele tempo o viam. Habituados a citar a mitologia grega, quando queriam mostrar erudição, era natural que se espantassem diante de um poeta que citava Buda, o Rig-Veda, Schopenhauer, Nietzsche e Hoffmann.

A poesia de Augusto pertence ao mesmo mundo cultural dos romances que Olaf Stapledon viria a publicar na década de 1930: Last and First Men e Star Maker, onde bilhões de anos da humanidade futura são descritos com imensa força visionária. 

Augusto falava nas coisas do seu presente: em "telefone", em "escafandro", em "eletricidade". Falava do futuro que começava a surgir nas primeiras páginas dos jornais: "energia intra-atômica liberta", "Raio X", “análise espectral”, "universo radioativo", "íons", "o milagre estupendo da aeronave". 

Mais do que ser o poeta da Morte, que também foi, ele era o poeta da metamorfose, da transformação; e seu desespero diante da Morte era menor que sua angústia diante dos seres que, podendo transformar-se em algo superior, estacionam ou regridem.

Augusto visualizava a si próprio vagando pelo universo “vestido de hidrogênio incandescente”; imaginava a Humanidade sofrendo “a espionagem fatídica dos astros”. Para ele, o firmamento era “uma caverna oblonga em cujo fundo a Via-Látea existe”. 

Ao erguer os olhos para as estrelas, Augusto não via as “virgens mortas” dos parnasianos. Via, antecipando Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick, “a gestação daquele grande feto que vinha substituir a Espécie Humana”. Tido como doido, era o único poeta brasileiro que vivia no mundo real.






0241) A colonização do subconsciente (28.12.2003)




Com o passar do tempo (Im Lauf der Zeit) é o melhor filme de Wim Wenders, juntamente com Paris, Texas. Há uma cena em que dois personagens estão sentados num bar, ou numa estação de trem (não lembro direito; vi o filme em 1979), bebendo em silêncio, como alemães que se prezam. Um deles começa a cantarolar o blue “Love in Vain”, uma pequena obra-prima de Robert Johnson que os Rolling Stones tornaram famosa no mundo inteiro no seu álbum “Let it Bleed”. O outro reconhece a música, fica escutando, sorri, e depois comenta: “Os ianques colonizaram nosso subconsciente”.

Está resumida nesta breve cena a história do século 20. O capitalismo norte-americano, depois da II Guerra Mundial, saiu carimbando o mundo inteiro com o “American way of life”. Sua maior conquista não foi comprar estatais falidas ou derrubar protecionismos alfandegários, mas fazer com que os invadidos se apaixonassem pelo invasor, pela sua música, pelas suas roupas, pelas suas bebidas, pelos seus filmes, pelas suas revistas, pelos seus automóveis, pelo seus cigarros, pelos seus livros, pelas suas cidades, pelas suas canções. É um amor imposto, talvez, a ferro e fogo, na guerra surda e invisível do capitalismo selvagem. Mas amor é amor, e digo isto com sinceridade, porque é amor o que sinto pelo cinema norte-americano, pela música norte-americana, pela literatura norte-americana.

Como não sou débil mental, me precavenho estendendo este amor à França, à Rússia, à Inglaterra, à Espanha, a Portugal, ao escambau, ao mundo todo, e, last but not least, a este obstinado cinema brasileiro, a esta onipresente música brasileira, a esta inimitável literatura brasileira. Com isto, tento atenuar as sinetas pavlovianas que nossos amigos do Norte implantaram na minha cabeça. Quantas vezes me vi gastando uma nota preta para importar dos EUA o original de um gibi que li quando tinha cinco anos, ou um disco que tocava na Borborema quando eu tinha 10. Tenho amigos que moram num apartamento de 4 quartos onde dois cabem à família e os outros dois à coleção de livros de ficção científica (ou de elepês de jazz; ou de quadrinhos; ou de filmes, fotos, cartazes de filmes).

Apaixonamo-nos quando somos pequenos demais para ter um filtro crítico ou ideológico, e o detalhe shakespeariano desta tragédia é não há amor mais puro do que este. Quando vejo um filho meu comprando um disco de música pop ou um videogame, penso: “Vai comprar de novo no relançamento, daqui a dez anos; e vai comprar de novo na reedição comemorativa, daí a mais 10; e vai comprar de novo quando estiver da minha idade, só porque isso lhe traz de volta recordações boas.” Estas últimas décadas viram a alvorada de um mundo novo: um mundo onde se descobriu que em vez de vender para adultos cheios de conceitos e preconceitos é melhor vender para os cerebrozinhos livres, virgens e escancarados das crianças. Começou conosco. E não vai parar tão cedo.

0240) Jazz (27.12.2003)





("Bill Evans" by John Froehlich)

São 13:44 e o pianista de jazz senta-se ao teclado. 

Alguém lhe pede que faça um improviso: os gravadores estão ligados, os microfones estão em posição. Ela começa a passear os dedos pelas teclas. 

O jazz já foi descrito como o encontro entre a imensa capacidade improvisativa dos africanos e a imensa riqueza de combinações da escala musical européia, materializada no piano. São mil anos de evolução musical em duas linhas paralelas que se encontraram nos Estados Unidos no século 20.

Aconteceu com o jazz o mesmo que aconteceu com outras criações culturais norte-americanas, que foram descobertas, valorizadas e mantidas vivas pela Europa. 

Os negros americanos, de Louis Armstrong a Dizzie Gillespie, faziam uma música dançante, alegre, mas cuja complexidade rítmica e harmônica não era percebida pela maioria do público. Foi preciso que os intelectuais franceses, mais embebidos de uma cultura musical erudita, percebessem que quem estava ali não era simplesmente um grupo de crioulos alegres e bem-humorados fazendo uma música de baile. Eram músicos tão sofisticados quanto qualquer músico erudito, só que fazendo uma música diferente. 

No jazz, estruturas de grande complexidade são propostas, e os músicos em seguida ficam ali no palco, entregues a si mesmos, e com a obrigação de criar alguma coisa dentro daqueles “motes” sonoros.

Música é engraçado. Parece tão pouco – e parece tão muito. É o mesmo que ocorre quando a gente se senta diante do outro teclado, o do computador. São apenas 23 letras! Como diabo alguém conseguiu escrever A Divina Comédia inteira, usando apenas 23 letras? 

Me lembra o comentário seco do maestro Rogério Duprat, quando um dia um crítico achou dois arranjos dele muito parecidos um com outro: “As notas musicais são sete.” Duprat sabia que não são somente 7, e mais, sabia que o que conta não são as notas em si, e sim as infinitas possibilidades de variação em estruturas que ficam um grau de complexidade acima das simples notas. 

Assim como na escrita verbal existem apenas 23 letras, mas existem centenas de milhares de palavras, e as combinações possíveis entre essas palavras tendem (no caso da vida humana, ah meu Deus, tão curta) ao infinito.

É nessa faixa mais complexa, e inesgotável, que ocorre o improviso musical e o improviso verbal. Ele nunca será o mesmo, porque no momento de improvisar o artista (músico ou poeta) recorre a faixas diferentes da consciência, que nunca estão exatamente da mesma forma. São os fatos do dia, são os rostos em volta, são as emoções daquele instante único e irrepetível, são os assuntos conversados há meia hora no camarim; tudo isto cria em sua mente uma teia sempre diversa de associações de idéias. 

Toda sua experiência de vida e sua memória cultural volta a ser filtrada desde o momento em que começa a improvisar (e não há dois momentos destes que sejam iguais) até o momento em que se ergue do teclado, às 13:58.






0239) Improviso e texto pronto (26.12.2003)




(xilogravura: Marcelo Soares)

Suponhamos que você é convidado a dar uma entrevista na TV. Após a costumeira introdução, o apresentador se vira e pede: “Conte para a gente como foi sua infância, seus estudos, seu início na carreira profissional.”

É uma pergunta bem genérica, não tem perigo de faltar assunto. E é sobre um assunto que você conhece bem, que é você mesmo; talvez, aliás você seja o maior especialista mundial nesse assunto. O que você faz, para responder? Puxa do bolso um papelzinho onde, prevendo a pergunta, preparou a resposta? Duvido. Você pode responder muito bem, ou muito mal; mas não duvido de que achará normal ter que improvisar uma resposta.

Improvisamos verbalmente durante todo o tempo, e são bem poucas as ocasiões em que precisamos decorar um texto para depois repeti-lo em público. Somos repentistas, somos improvisadores.

O que nos distingue, então, dos cantadores repentistas? Duas coisas:

1) eles cantam, eles se acompanham de instrumentos; não apenas estão falando, mas proporcionando um espetáculo que envolve outros elementos;

2) eles improvisam em verso, usando modelos fixos, onde as sílabas tem que ser ou X ou Y, e onde as rimas têm que ser de tais ou tais maneiras.

Não se improvisa em verso “livremente”. Não se improvisa em prosa. Existem formas conhecidas por todos (sextilha, décima, quadrão, mourão, etc.), e qualquer erro é tão visível quanto um erro no futebol.

O repentista, seja ele um partideiro carioca, um cantador de viola, um embolador de coco, é uma espécie de malabarista ou acrobata. Ele é forçado não apenas criar na hora, mas tem que fazê-lo dentro de modelos já existentes, não pode ser como lhe der na telha.

É uma habilidade que exige ao mesmo tempo inspiração e habilidade, que obriga o poeta a ter riqueza de imaginação e domínio da técnica (percepção de estrutura, repertório rico de rimas, domínio métrico na hora de cantar, etc.).

O que ocorre é que, ao longo dos anos, os próprios repentistas vêem-se improvisando sobre temas recorrentes, que sempre retornam. Se eu fôr à TV e alguém me perguntar: “O que você acha da cultura popular nordestina?” vai ser muito difícil eu não ter o que dizer, porque já o disse centenas de vezes. E vai ser difícil também dizer algo original – pelo mesmo motivo.

Isso acontece também com os cantadores. “Seu Zé, cante uma coisinha sobre Frei Damião...” “Companheiro, fale das lutas sociais do homem nordestino.” “Amigo, cante alguma coisa de roedeira e saudade...” 

As circunstâncias são numerosas, os pedidos são variadíssimos, mas há temas que sempre retornam, sempre retornam. E o que era improviso vai sendo lembrado, requentado e servido, não por preguiça ou mau-caratismo, mas porque é uma profissão, é algo que muitas vezes o poeta tem que fazer várias vezes por semana.

Algum texto pronto existe em sua memória, e mede-se o grau de auto-exigência do poeta pela sua disposição em repetir, sim, mas nunca exatamente da mesma forma.






0238) A tragédia da vida (25.12.2003)



(ilustração: Arthur Tress)

Não existe nada mais educativo do que ouvir anedotas. Não me refiro às piadas de sacanagem que os homens contam em mesa de bar, embora estas também tenham seu lado propedêutico. Qualquer piada é uma pequena cápsula de filosofia existencial.

Como a história do garoto de 8 anos que a família precisava levar ao dentista. O dente inchado, doía muito, mas ele morria de medo. Marcaram a consulta, mas ele fincou pé, disse que não ia. Os pais adularam, adularam, até que o pai veio com o argumento irrespondível: “Olhe, Paulinho, você vai ter que ir. Nós já marcamos a consulta, e esse dentista é muito caro, a consulta dele é 100 reais.”

O menino enxugou as lágrimas e concordou. Foi, submeteu-se à tortura do tratamento. No fim, depois do “pode cuspir”, levantou da cadeira, enxugou os olhos, e perguntou timidamente ao dentista: “E meus 100 reais?...”

Não acho que exista parábola mais edificante para a gente contar aos filhos. Porque isto é a vida, não é mesmo? A gente passa a vida inteira se submetendo às maiores provações, aos piores sacrifícios, sempre de olho num prêmio prometido. Na hora do balanço final, a gente descobre que não só não vai ter prêmio, vai ter um prejuízo, e ainda vai pagar juros e correção monetária.

Outra história (esta verídica) fala de um garoto de seus quatro anos que a família matriculou na escola pela primeira vez. Desconfiado, o garoto dizia que não queria ir estudar em escola nenhuma. Os pais providenciaram tudo: uniforme, livros, lápis de cor... Tudo foi usado como isca. Explicaram que ia ser legal, que uma professora ia ensinar coisas interessantes; que na escola ele teria muitos amiguinhos novos; que havia uma coisa ótima chamada “hora do recreio”, onde todos brincariam do que quisessem; e patati, e patatá.

No primeiro dia de aula, acordaram-no às 6 da manhã. Uniforme, café, ida à escola. Quando ele voltou, estava feliz: tinha adorado tudo. Fêz mil comentários, e tal. No outro dia, a mãe voltou a chamá-lo às 6: “Joãozinho!... Tá na hora?” Ele acordou: “Hora de quê?” A mãe: “De ir para a escola.” E o guri, perplexo: “Oi... de novo?”

Eu sempre obriguei meus filhos a irem ao colégio. Não porque eu creia na necessidade de sabermos extrair raiz cúbica ou de recitar de memória os membros da Regência Trina Provisória. Os ensinamentos que tive no colégio dissiparam-se tão rapidamente que às vezes sinto um calafrio de horror ao folhear um livro de Oswaldo Sangiorgi ou de Borges Hermida, e saber que perdi ali tantas tardes ensolaradas que poderia ter dedicado ao futebol ou ao jogo de botão.

A função do colégio, no entanto, não é nos ensinar química ou botânica. É nos mostrar que todo sofrimento na vida é pago – mas pago por nós mesmos. E que não importa quantas vezes você tenha passado por ele: vai ter que passar outra vez, e outra, e outra. “Está na hora.” “De quê?” “Ora, está na hora de fazer sua coluna do jornal.” “Oi... de novo?...”







0237) Santo nome em vão (24.12.2003)




Por que diabo a gente só escuta no rádio música falando de amor? Não é por nada não, mas parece que alguma ditadura baixou um decreto. É proibido falar de outra coisa. Quem fizer uma música sem falar de amor pode até escapar de ser preso, mas vai ser olhado com desprezo, zombaria ou comiseração. O sambista Nei Lopes chama isso de “globalização pop”, uniformização de produtos. Amor é um assunto que qualquer pessoa entende, não importa a nação, a raça, o sexo, a religião, a condição social. (Há populações para quem este nosso conceito de amor é ininteligível; mas concordo com o compositor quando ele reclama que isso acaba tornando a música “monotemática”.)

Se houvesse pelo menos uma espécie de disputa para ver quem diz coisas mais interessantes a respeito, talvez o resultado fosse até bom. O problema é que parte-se de outra generalização a-ferro-e-fogo: é preciso dizer coisas que todo mundo entenda, e, como o povo é burro, só entende o que já vem ouvindo a vida inteira. Daí, as letras viram uma reciclagem de clichês. Não é só no pop: é no samba, é no forró, é no rock-and-roll. E tome lugar comum. Para não dizerem que sou mal-humorado, eis as palavras de um dos nossos grandes cantores e compositores românticos, Caetano Veloso: “Por que será que fazem sempre tantas canções de amor, e todo mundo canta canções de amor? De minha parte, às vezes não aguento: 99 e um pouco mais por cento das músicas que existem são de amor” (“Canção de Protesto”, gravada por Zizi Possi)

E no entanto o curioso é ver o quanto esse tema tão universal é particularizado, tem em cada autor um perfil diferente. Quer ver, leiam e analisem os poemas de amor de João Cabral, ou os de Augusto dos Anjos. O amor de um não é o mesmo do outro. Mesmo poetisas que compartilham uma certa afinação de espíritos, como Cecília Meireles e Emily Dickinson, sentem, praticam e cantam o amor cada qual à sua maneira. Na música popular, existe uma diferença química e física entre uma canção de amor de Bob Dylan e uma de Vinicius de Morais. Mas para quem liga o rádio ou vê na televisão de hoje, a música popular está parecendo a URSS no regime stalinista. Você se hospedava no Hotel Stálin, pegava a Avenida Stálin, entrava na estação Stálin do metrô, ia até a Praça Stálin e, no Teatro Stálin, assistia uma encenação da “Vida de Stálin”.

Ao preparar sua Antologia Pessoal, Carlos Drummond a organizou em torno de 9 capítulos, ou temas: o indivíduo (“Um eu todo retorcido”), a terra natal (“Uma província: esta”), a família (“A família que me dei”), a amizade (“Cantar de amigos”), o trabalho poético (“Poesia contemplada”), brincadeiras verbais (“Uma, duas argolinhas”), o amor (“Amar amaro”), os problemas sociais (“Na praça dos convites”) e o sentido da existência humana (“Tentativa de exploração e interpretação do estar no mundo”). Se fosse um CD, já dava para fazer 9 faixas sem repetir. Dêem uma folga ao amor, que ele já tá dessa finurinha.

0236) O anjo exterminador (23.12.2003)




Há dois anos escrevi um livro analisando o filme O anjo exterminador, de Luís Buñuel, e para isto utilizei uma cópia em VHS. Hoje, achei na locadora o DVD do mesmo filme e resolvi dar uma olhada, para avaliar os “extras” e ver se havia alguma melhora na cópia. Melhora não vi nenhuma, e até os erros de tradução nas legendas são praticamente os mesmos. E há algo pior. 

Quem conhece o filme lembra-se da famosa “cena repetida” logo no início. 

É noite: um grupo de ricaços chega na mansão de um deles, após uma ópera, para jantar. Duas empregadas estão indo embora, mas ao ver a chegada dos convidados, elas recuam, escondem-se, esperam que eles todos subam para o andar de cima. Quando saem do esconderijo e tentam sair de novo, são surpreendidas pela chegada de um segundo grupo de convidados. Voltam a esconder-se; mas aí vemos que não, não é outro grupo: são as mesmas pessoas chegando de novo, repetindo as mesmas frases e os mesmos gestos. Depois que eles sobem pela segunda vez, as empregadas por fim conseguem partir.

É uma das cenas mais discutidas do filme, porque não existe nenhuma razão para justificar esse “replay”. Os críticos deram 1.000 explicações; em meu livro, dei a milésima primeira. O diretor deu de ombros, e ficou tudo por isso mesmo. 

Agora, no entanto, essa perigosa transgressão foi corrigida. A cópia recém-lançada em DVD corrigiu o erro. Nela, as empregadas encaminham-se para a porta, recuam diante da chegada dos convidados, escondem-se, e quando eles terminam de subir elas saem do esconderijo, cruzam a porta e vão embora. 

Toda a cena da segunda chegada do grupo foi cortada: um corte muito hábil, por sinal, só perceptível por quem já conhece o filme e lembra da cena.

Dizem que Guimarães Rosa era o pavor dos tipógrafos, porque insistia em escrever as palavras comuns de maneira incomum, fazendo com que os revisores o “corrigissem” o tempo todo. Parece que o mesmo está acontecendo no cinema. Devem existir dezenas de milhares de DVDs do “Anjo”, pelo mundo todo, onde o “erro” de Buñuel foi eliminado. 

Eu acho isto mais perigoso do que a censura. O corte de cenas subversivas é um corte deliberado, de origem ideológica. Num regime em que há censura, sabe-se com grande nitidez quem são os censores, quem são os “inimigos”. 

Num caso como este, contudo, não há censura política. Quem fêz o corte não foi um inimigo ideológico: foi alguém que julgava estar fazendo aquilo para o bem do filme, julgava estar ajudando o diretor. 

Pense num inimigo perigoso! É assim que se comportam os que cortariam (se pudessem) todas as palavras inventadas, os acordes dissonantes, as histórias sem começo-meio-fim, as frases que sintaxe que nada, tudo aquilo que nasce como erro e fica sendo erro até tornar-se uma nova maneira de dizer. Cortar a cena repetida de Buñuel equivale a apagar o bigode da Mona Lisa de Marcel Duchamp.






0235) O último número (21.12.2003)




A imprensa noticia a descoberta do maior número primo. Os números primos são os únicos números que têm existência própria, os únicos que não são formados de outros números. Você não pode dividir o número 19, por exemplo, em partes iguais. Ou ele se divide por 19, ou então por 1. É um número de verdade; como diria algum matemático sertanejo, é um número macho, um número que não abre nem prum trem. Já o número 20, por exemplo, não é número nem é nada. É uma mera duplicação do 10, ou uma quadruplicação do 5, ou uma quintuplicação do 4... Ou seja: um número sem caráter, sem personalidade. A gente só usa porque ele é útil para contar coisas, mas número, mesmo, ele não é não.

Coube ao estudante Michael Shafer, da Michigan State University, descobrir o tal “maior número primo”. Foi um trabalho feito através de uma rede de computadores conectados entre si; cada vez que um desses computadores era ligado, um programa ficava rodando, executando os cálculos, enquanto o usuário fazia seus trabalhos habituais. Foram usados 211 mil computadores, o que permitia ao grupo realizar 9 trilhões de cálculos por segundo.

Fiquei tão impressionado com isto que fui consultar A Experiência Matemática, de Philip Davis e Reuben Hersh, que tem um interessante capítulo sobre os números primos, afirmando que eles “desempenham um papel que é análogo ao dos elementos, em química”. O livro informa que em 1979 o maior número primo conhecido era 2 elevado a 21.701, menos 1. Uma nota do tradutor atualiza o dado: em 1983, o título já tinha passado para 2 elevado a 86.243, menos 1. Dentro do meu exemplar deste livro, encontrei um recorte do “Jornal do Brasil” de 1989 sobre o mesmo assunto. Naquele momento, um computador da Califórnia tinha chegado a outro “maior primo” de dimensões impressionantes – segundo o jornal, “um monstrengo de 65.097 algarismos.” Bem; tudo isto é fichinha perto da descoberta desta semana. O número achado pelo computador do estudante da MSU tem um total de 6.320.430 dígitos, e para transcrevê-lo seriam necessárias cerca de 1.400 páginas.

O grego Euclides provou, em meia dúzia de linhas, que a quantidade de primos, como a dos inteiros, é infinita. Procurar “o maior número primo” é como procurar “o maior número”. Não existe. Para que esse desespero, então? Acontece, companheiros, que não existe raça mais hipnotizável do que a dos matemáticos. Por mais racionais que sejam, vivem obcecados pelas idéias de Ordem, de Série, de Limite. Mesmo sabendo que uma série é infinita, eles sempre pensam: “Tudo bem, não vamos nunca saber qual é o Último Número Primo. Mas... qual será o Próximo?” Vão descobri-lo daqui a mais uns anos; terá 10 ou 20 milhões de dígitos, não importa, e logo em seguida tudo vai recomeçar. É a tragédia do Último Número, de Augusto dos Anjos: “É tarde, amigo! Pois que a minha autogênica grandeza nunca vibrou em tua língua presa, não te abandono mais: morro contigo!”

0234) O house-name (20.12.2003)

Um “house-name”, no jargão editorial, é um autor fictício cujo nome é criado por uma “casa”, ou seja, por uma editora. Não se trata exatamente de um pseudônimo, porque o pseudônimo pertence a um autor. O house-name é uma espécie de marca que pertence à editora, a qual compra por preço fixo textos de autores diversos e os publica sob aquela assinatura fictícia. É um procedimento muito usado no universo da literatura policial, de ficção científica, de terror. Por que? Em primeiro lugar, por motivos financeiros. Autores que fornecem textos para house-names recebem um preço fixo, geralmente irrisório, e não têm mais nenhum direito autoral relativo àquele texto.

Outro motivo é o fato de que, no auge das revistas populares nos anos 30-40, às vezes era necessário produzir quantidades industriais de texto para as aventuras de um herói, por exemplo. Todas as aventuras deste herói seriam atribuídas a um Fulano fictício, e diversos autores se revezariam escrevendo-as. Casos típicos disto, na literatura policial, são as 325 histórias d´O Sombra (do famoso slogan: “Quem sabe o Mal que se oculta no coração dos homens? O Sombra sabe!”), sempre assinadas por “Maxwell Grant”, nome imaginário por trás do qual se escondiam Walter Gibson (autor da maioria das histórias), Theodore Tinsley, Bruce Eliot e Lester Dent. Também famoso (e traduzido no Brasil, nos “pulp magazines” da época) era o Detetive Fantasma, o milionário-justiceiro Richard Curtis Van Loan, cujas aventuras eram assinadas por “Robert Wallace”, e escritas por um exército de 14 autores.

O house-name, embora seja estritamente uma prática de mercado editorial, é mais um exemplo de um fenômeno a que já me referi (“A lenda de Zé Limeira”, 19 de outubro) como a tendência a agregar História a um nome por um processo de cristalização mítica. Não deve ter sido muito diferente o que aconteceu com os poemas atribuídos a Homero, que decerto não era um house-name, mas seria um “nation-name”, um nome-nação, um nome-povo. Criado pela tradição oral de uma cultura e considerado tão real, dentro dela, quanto o mulá Nasrudin na cultura muçulmana. Inventa-se um nome, que pode até ser o de um sujeito em carne e osso, e todo mundo passa a inventar histórias atribuídas a ele. Usamos isto com autores, e também com personagens. Não é assim que, no Nordeste, vem se expandindo a lenda de Seu Lunga (Seu Lunguinha, Seu Mandurinha, Seu Mandury, e outras variantes)? Não importa o nome que lhe dêem neste ou naquele Estado, é sempre o mesmo velho ranzinza, impaciente, “pôpeiro”, que ao ouvir a menor pergunta tem uma reação irritada e totalmente desproporcional. Um autor pode ser tão fictício quanto um personagem. Eu não me surpreenderia se aparecessem provas de que Sócrates, por exemplo, nunca existiu, era apenas uma ficção coletiva de um grupo de filósofos gregos, os quais lhe atribuíam histórias que, por motivos políticos, não gostariam de assinar.

0233) Spam Music (19.12.2003)

Suponho que a maioria dos meus leitores sabe o que é Spam. É aquela propaganda feita através da Internet valendo-se de algumas peculiaridades deste meio, entre elas a possibilidade de enviar uma mesma mensagem, a custo quase zero, para milhões de pessoas ao mesmo tempo. Isto é o sonho dourado de qualquer marqueteiro, agente de propaganda, divulgador, etc. Mesmo no tempo da propaganda em forma de papel (o volante, a filipeta, o postal, o folheto, o catálogo, etc.) isso já era posto em prática. Quantas vezes fiquei de pé durante 20, 30, 40 minutos numa fila do Correio, vendo à minha frente um office-boy com alguns milhares de envelopes, todos iguaizinhos, com endereços impressos em etiquetas adesivas, passando naquela maquininha, vrum, vrum, vrum, enquanto eu esperava num-pé-e-noutro com minha cartinha única na mão.

O email reduziu este problemas mas trouxe outros. Já cancelei um endereço de email que usava há muitos anos, porque tornou-se impraticável o número de propagandas não-solicitadas que me chegavam. Ao abrir a caixa, havia cerca de 130 mensagens, das quais talvez meia-dúzia fossem mensagens para mim: o resto eram propagandas enviadas para meu endereço. E tem gente que usa esse sistema para divulgar suas próprias armas: oferecem CDs com “3 milhões de endereços”, ou mais, por um preço módico.

A idéia por trás dessa propaganda é muito simples: 99% dos recebedores vão ficar irritados e apagar a mensagem; 1% vão ter algum interesse pelo produto (os números não são exatamente estes, mas tanto faz). Se você manda 100 mensagens não é bom negócio. Mas se você manda 1 milhão de mensagens a relação custo-benefício é mais interessante, pois teoricamente você atinge um por cento disto: 10 mil pessoas vão ficar sabendo que seu produto existe e podem se interessar em comprá-lo.

O mercado capitalista adora essas fórmulas mágicas. O capitalismo é quantitativo por sua própria natureza, adora soluções quantitativas, de força-bruta (v. coluna “A solução Herodes”, 5 de julho). No mercado musical, por exemplo, adota-se algo muito parecido ao Spam. Um CD de Fulano é lançado, e a gravadora suborna centenas de disc-jóqueis Brasil afora, para ter certeza de que a chamada “música de trabalho” vai tocar o dia inteiro. Com tanta repetição, é possível que 99% por cento das pessoas reajam dizendo “P.q.p., eu não aguento mais essa música chata”, mas 1% vai chegar a balcão da loja e perguntar pelo disco. Quando se lida com dezenas de milhões, basta esse um por cento de retorno para justificar toda a despesa. O que ouvimos em nossas rádios, hoje, não passa de um spam sonoro. Impessoal, massificado, pago a peso de ouro, e inspirado no princípio de que vale a pena incomodar um milhão de pessoas para vender um disco a dez mil. O Spam é o carro-de-propaganda (aquele do alto-falante insuportável) do século 21.

0232) Cine-cronicidade (18.12.2003)




(Liv Ullman)


Carl Gustav Jung criou o termo “sincronicidade” para designar coincidências que têm uma significação psíquica especial e que parecem ir além dos limites da mera probabilidade. 

Sugiro o termo “cine-cronicidade” para aquelas ocasiões em que filmes vistos de maneira aleatória, acabam tendo uma cena, ou uma frase, ou um núcleo temático em comum – algo que jamais nos ocorreria lembrar se nos perguntassem “o que os filmes X e Y têm em comum?”

Dois destes, que vi há pouco, são Janela indiscreta de Alfred Hitchcock (1954) e A hora do lobo de Ingmar Bergman (1968). Cada qual à sua maneira, estes filmes me lembraram um famoso epigrama cheio de ternura e ironia do argentino Ernesto Sábato: 

“Enquanto o mundo fôr mundo, haverá um homem que se preocupa com o Universo enquanto sua casa pega fogo, e uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o Universo pega fogo.” 

Não acho que se possa condensar numa cápsula menor que esta a contradição notável entre o temperamento masculino e o feminino. (Aproveito para insistir que nada disso é biologicamente determinado: temperamento masculino e feminino são conjuntos de padrões culturais que assimilamos e imitamos, conscientemente ou não).

Os homens vivem num mundo à parte, um mundo cheio de visões, suposições, hipóteses, experiências mentais que parecem ser mais reais para eles do que a poltrona onde estão sentados ou o pijama que vestem. 

Quer ver, pergunte a um matemático o que é mais real: o teorema de Pitágoras ou os vizinhos do andar de cima? 

Há na mente masculina uma compulsão permanente de se deixar arrebatar por uma idéia, uma teoria, uma obsessão puramente cerebral que as mulheres acham (de acordo com o momento e seu estado de espírito) assustadora, idiota, sinal de infantilidade encruada ou de senilidade precoce. 

As mulheres (lembrem-se, estou trabalhando com abstrações, generalizações), por sua vez, acham que comer a refeição fumegante que acaba de ser posta na mesa é mais importante do que saber se o Universo está em contração ou em expansão. O centro do seu mundo são elas. O centro de um homem é o mundo.

Deformações culturais, sem dúvida; mas é tão belo quando vemos Liv Ullman, com seus olhos calados e súplices, fazendo companhia ao marido que tem que passar a noite em claro para não ficar vulnerável aos monstros que o assaltam. 

É tão bonito quando vemos Grace Kelly, com sua elegância de Park Avenue, pular a janela de um possível assassino apenas pela disposição em embarcar na viagem mental do homem que ama. 

Em ambos os casos, elas abrem mão de seu confortável senso de realidade para mergulhar num pesadelo masculino que não lhes diz respeito e quase as arrasta para a morte. 

Será que é, também, próprio das mulheres essa espécie de amor altruísta, capaz de fazê-las abandonar a tranquilidade de sua casa para pular num Universo que está pegando fogo? Será que são mesmo capazes de mergulhar sem volta num poço sem fundo, apenas para saber em que é que “ele” está pensando?





0231) O editor e o autor (17.12.2003)





(Conan Doyle)

No verão de 1889, John Marshall Stoddart, editor do “Lippincott´s Magazine” da Filadélfia (EUA), chegou a Londres para preparar o lançamento da edição britânica da revista, que atravessava um bom momento comercial. 

Uma das estratégias adotadas foi contactar novos escritores que já tinham seu público mas ainda não eram medalhões. 

Stoddart convidou dois destes autores para um jantar no Langham Hotel: Oscar Wilde, um poeta e contista que àquela altura, aos 35 anos, ainda não tinha escrito as peças teatrais que lhe dariam fama e fortuna; e Conan Doyle, um médico que aos 30 anos já publicara alguns volumes de contos e um romance histórico, A narrativa de Miquéias Clarke, bem recebido pela crítica.

Não conhecemos os detalhes deste jantar, mas sabemos suas consequências. Stoddart encomendou a cada um dos escritores um romance para ser serializado na revista. 

Wilde produziu O retrato de Dorian Gray, que acabaria sendo o único romance que chegou a escrever, e é um desses livros que todo mundo conhece. 

Doyle lembrou-se de Um estudo em vermelho, um obscuro romance que publicara em 1886 tendo como personagem um detetive chamado Sherlock Holmes, e escreveu em apenas seis semanas a segunda aventura do detetive, O signo dos quatro

Os historiadores acham provável que haja uma certa influência das atitudes decadentistas de Wilde no fato de que neste segundo livro Holmes aparece pela primeira vez usando cocaína – o que na época não era crime, apenas algo levemente escandaloso.

Como se vê, editores têm um papel decisivo na história de literatura, mesmo não redigindo uma linha sequer. A função de um editor é tornar possíveis as obras, é estimular os autores, dar-lhe idéias ou pedir-lhes que as tenham. 

Eu poderia ter recorrido a exemplos mais ilustres (o Papa encomendando a Miguel Ângelo a pintura da Capela Sistina), mas preferi lembrar um episódio um tanto obscuro, porque desses episódios obscuros existem milhares, talvez milhões.

As deformações e as brutalidades do sistema industrial-capitalista têm sido tais que produzem imagens distorcidas. Autor e editor são, basicamente, parceiros, e não patrão e empregado. Se não existissem escritores, os editores estariam pedindo esmolas embaixo do viaduto, ou mudariam de profissão; e vice-versa. 

A função do escritor é criar um texto, a função do editor é produzir um livro. O texto é de um, o livro é do outro. O texto é uma obra literária; o livro é um produto industrial que serve para tornar essa obra literária acessível a muita gente. 

Poucas coisas terão sido tão benéficas para a literatura, num momento específico, quanto a existência de um editor cercado de autores cujo talento ele percebe. Bem aventurado o editor que percebe o talento de alguém e lhe diz: “Traga alguma coisa bem legal, e deixe o resto comigo.”






0230) Te entrega, Saddam! (16.12.2003)




Era domingo; acordei tarde, liguei a TV na GloboNews, só para saber o resultado de Boca Juniors x Milan, que de manhã tinham decidido o campeonato mundial de clubes. A primeira imagem que vi foi de soldados americanos comemorando; em seguida apareceu um indivíduo sendo examinado por médicos, e quando vi aquela barba tive um susto: “Meu Deus do céu! George Bush invadiu Cuba, e prendeu Fidel!” Não era: era o bom e velho Saddam Hussein, alquebrado, hirsuto, com cara de quem tinha passado estes últimos meses naquele campo de concentração que os americanos montaram em Guantánamo para os guerrilheiros da Al-Qaeda.

Vendo aquela cara, entendi mais uma vez por que é que certos sujeitos preferem morrer a se entregar. O grito de Corisco, “Me entrego só na morte, de parabelo na mão!” é bonito e é heróico, mas quem tem fibra para levá-lo ao pé da letra? Não é uma questão de caráter, porque temos desde Salvador Allende até Adolf Hitler, ou seja, de um extremo a outro de uma imensa escala de valores. Tem horas que um sujeito, no momento de sua pior derrota, resolve “não dar gosto ao Cão”, ao inimigo. Prefere morrer do que ser coagido, manietado, rebocado de um lado para outro, exposto às câmaras... “Não,” pensam eles, “não vou dar esse gosto.”

Acho que tem horas que um sujeito percebe o quanto é pequeno. Depois que ficou sem os capangas, sem as raparigas, sem os puxa-sacos; depois que ficou sem os palácios de mármore, sem as estátuas, sem os painéis celebratórios espalhados pela cidade; depois que teve que literalmente se enfiar num buraco embaixo do chão, Saddam Hussein foi caindo na real. Aconteceu com ele o mesmo que aconteceu com aquele personagem de Machado de Assis, que só conseguia se ver no espelho quando vestia a farda de alferes. Sem ela, sua silhueta ficava embaçada, “uma nuvem de linhas soltas, inacabadas”... Com a farda, ele respirava aliviado: voltava a estar nítido e completo.

Pobre de Saddam. Tomaram-lhe a farda. Tomaram-lhe o exército, as riquezas, os filhos, a Guarda Republicana, o ministro que dava entrevistas profetizando vitórias arrasadoras. Depois que lhe arrancaram isso tudo, Saddam viu que não passava, ele próprio, de um capanga de alguém. Quem lhe deu tudo, acabou tirando-lhe tudo de volta. Pau-mandado dos EUA para bloquear a expansão dos aiatolás xiitas do Irã, Saddam já adivinhava que a mordomia não ia durar muito tempo. Foi logo matando quem tinha de matar, gastando o que podia gastar, vivendo sua fantasiazinha de Stálin de quintal. Hoje, a TV mostrou quem ele é de verdade, e tive pena. Como também terei pena de George W. Bush (ou de quem o suceder) quando lhes fôr tirada também a farda. Quando não tiverem mais o dólar, o FMI, os exércitos high-tech, a borduna econômica e militar com que intimidam e encurralam o mundo. Nesse dia, Bush & Cia. ficarão sabendo que valem tanto quanto um elias-maluco qualquer que se vendeu ao Diabo e pensou que era o próprio.

0229) Um cheirinho de vez em quando (14.12.2003)

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Dias atrás eu estava no meio de um grupo, num ambiente de trabalho. Chegou um motorista que veio buscar uma encomenda, e ficou falando com um e outro, andando por entre as mesas. Havia um maço de cigarros por ali; ele pegou, olhou, levou ao nariz e pôs o maço de volta na mesa. O dono do maço disse: “Pega um, velho.” E ele: “Não, obrigado, eu deixei de fumar.” O outro: “Há quanto tempo?” E ele: “Dezesseis anos. Mas sabe como é que é... de vez em quando eu pego, só pra dar um cheirinho.”

Gostei desta idéia. Nenhum viciado é igual ao outro: o vício é sempre uma soma única entre a droga e a pessoa que a usa. Alguns garantem que para abandonar um vício é preciso queimar todas as pontes e apostar todas as fichas numa decisão sem retorno. Outros aconselham o método Martinho da Vila, ou seja, “devagar, devagarinho”: deixa de beber cachaça, depois deixa o uísque, fica só na cerveja, depois vai reduzindo aos poucos... 

Enfim: cada caso é um caso, como em tudo na vida. Não há fórmulas, ou melhor, há milhões de fórmulas, e é mais fácil inventar uma do que tentar examinar e testar todas as que foram inventadas pelos outros.

O exemplo do motorista não deixou de me lembrar também o de certos casais que já vi. São casais que se gostam mas têm diferenças intransponíveis, e vivem em briga constante. Separam-se, e quando separados descobrem que não conseguem viver longe um do outro. Voltam a ficar juntos; mas, inevitavelmente, voltam a brigar. Qual é a solução? Muito simples: separam... mas de vez em quando um dos dois vai lá, só pra dar um cheirinho.

Os adeptos das soluções radicais me lembram o casal do filme de Truffaut, A mulher do lado. Dois antigos apaixonados, hoje casados com outras pessoas, se reencontram anos depois, e a paixão volta com força total. O final é trágico, e ainda lembro a frase final do personagem de Gérard Depardieu: “Ni avec toi, ni sans toi”. Ou seja: “Não consigo viver com você, nem sem você”. Uma bela tragédia no molde clássico do século 19: tragédias onde não é o Destino que impele as pessoas à destruição, mas o fato de que elas vivem um conflito entre sentimentos opostos, e em vez de diluir ou dissipar estes sentimentos preferem exacerbá-los até serem destruídas por eles. Ou seja, Romantismo literário em estado puro.

Vejo isso diariamente com esse pessoal que fuma. Encontro Fulano no bar, de olhos encovados, mãos trêmulas. Qual é o problema? “Parei de fumar,” explica ele, “estava fumando 3 maços por dia, e tem 5 dias que não fumo.” Vendo o estado lastimável do amigo, pergunto: “Bom, se eram 3 maços, não custa nada você reduzir pra, digamos, 10 cigarros por dia. É lucro!” Mas não. Dizem eles que é a armadilha química, e eu acredito. Não depende da nossa vontade; mas se dependesse era tão bom! Era só cortar o excesso que faz mal, e, se a saudade apertasse, ir dar um cheirinho de vez em quando.


0228) O Grito de Munch (13.12.2003)




Os leitores devem conhecer, mesmo de relance, o famoso quadro “O grito”, de Edward Munch. Para quem não está ligando o nome à “pessoa”, é aquela pintura, em cores violentas e borradas, onde aparece em primeiro plano a silhueta alongada de uma pessoa calva, não se sabe se homem ou mulher, vestida de preto, com as mãos tapando as orelhas e a boca alongada num uivo silencioso que quase chega a incomodar nossos tímpanos. Ela está numa ponte que corta diagonalmente o quadro; na extremidade oposta vêem-se dois vultos, que podem ser dois meros transeuntes, mas que para mentes paranóicas como a minha assumem uma presença ominosa, ameaçadora. Por trás disto tudo, um céu de violentos borrões avermelhados. Depressivo, angustiado, com uma vida cheia de tragédias, Munch vivia num permanente tumulto mental, e em seus quadros temos um vislumbre do mundo como ele o enxergava.

Agora, astrônomos da Texas State University, depois de cuidadosas pesquisas, anunciam que o céu vermelho pintado por Munch era vermelho de fato. O “Grito” é de 1893 (na verdade, há vários quadros, pois Munch, como muitos outros artistas, produzia mais de uma versão da mesma pintura). O prof. Donald Olson lembra que de novembro de 1883 a fevereiro de 1884, os céus da Europa ficaram cobertos pela cinza vulcânica da erupção do Krakatoa, onde hoje é a Indonésia, inclusive em Oslo (Noruega), onde Munch pintou o seu quadro. Jornais da época mencionam os crepúsculos avermelhados devido à cinza vulcânica no ar. Os astrônomos afirmam ter localizado a ponte que aparece no quadro, e que o ponto de vista assumido pelo pintor está voltado exatamente para sudoeste, ou seja, a direção exata da Indonésia.

Existem dois tipos de pessoas no mundo (sei disso porque pertenço a ambos): as que acham que tudo que é atribuído à imaginação tem uma base factual (como o Prof. Olson e seus colaboradores), e as que acham que todos os fatos que observamos são contaminados pelo tumulto de idéias e emoções que borbulha o tempo inteiro em nossa mente (como era sem dúvida o caso de Edward Munch). Este não é o primeiro nem será o último caso de cientistas pragmáticos explicando o “por quê” de determinados aspectos de uma pintura. Já vi teorias provando que o sorriso da Mona Lisa se devia a ela estar grávida, ou que as cores deste ou daquele pintor se deviam ao fato dele beber absinto.

Saber que existia no interior de Minas um vaqueiro chamado Manuelzão, e que Guimarães Rosa o conheceu, deve provocar um suspiro de alívio nesses pesquisadores, que até então se deparavam com a perturbadora hipótese de que Manuelzão não passasse de uma invenção do artista. O mesmo se dá com o céu de Oslo, pintado por Munch. Sabemos agora que o céu era vermelho mesmo, e que Munch não estava inventando. Ou então, vai ver que Deus teve a idéia de um quadro, mas, como não sabe pintar, produziu uma erupção no Krakatoa e levou Munch até a ponte para que ele o pintasse. Deus adora uma manobra complicada.

0227) A elipse da mente (12.12.2003)





Perdão, leitores. Num artigo recente (“O centro do mundo”, 9 de dezembro) cometi um erro elementar, pelo qual venho pedir desculpas publicamente. Escrevi: “Para as pessoas como eu, o mundo não é um círculo, que só tem um centro: é uma parábola, que tem dois centros, ou dois focos: o olho que vê e o objeto que é visto, ou a mente que pensa e o objeto que é pensado.” Meu erro foi confundir uma elipse com uma parábola. Uma voz maquiavélica me sussurrou ao ouvido: “Esquece, rapaz. Nem 10 por cento dos teus leitores sabe a diferença. Esse pessoal entende de Geometria o que tu entende de motor-de-automóvel. Se tu anunciar um erro, perde a credibilidade”. Mas logo uma outra voz, mais maquiavélica ainda, me sussurrou no ouvido oposto: “Exatamente! Já pensou, você vir a público e assumir um erro que ninguém notou? Eles vão pensar: Olha que rapaz íntegro! Ninguém tinha percebido, mas ele veio a público, retratou-se...”

Bom; o debate continua, mas tenho que ir em frente. Não é parábola, é elipse. Elipse é aquele troço parecido com um círculo, só que mais baixinho e mais largo. E com dois focos, em vez de um único centro. Uma elipse me lembra uma célula prestes a se dividir em duas (não vou arriscar o nome disso, senão erro de novo). A célula cresce, seu núcleo se torna mais denso, e aí começa um processo de divisão no qual a célula, que tinha a forma aproximado de um círculo com um centro, ganha a forma aproximada de uma elipse com dois focos, que vão cada vez se afastando mais um do outro, até que – pop! – as duas se separam.

Mesmo assim acontece com a mente de certas pessoas. Eu diria que uma das características do Homem Moderno, o que quer que seja isto, é o talento para a despersonalização, para o deslocamento de um centro para outro, do Eu para o Outro. Pensar como se eu não fosse eu. Agir como se eu fosse Fulano. Me botar no lugar de Sicrano e tentar imaginar quem é ele, o que pensa, por que age assim. As pessoas comuns dos séculos anteriores não tinham essa capacidade. Hoje em dia, qualquer garoto, qualquer transeunte é capaz dessa façanha.

Edgar Allan Poe fundou a literatura detetivesca baseando-se na capacidade do detetive em colocar-se no lugar do criminoso e deduzir, de suas ações passadas, seus pensamentos presentes e suas ações futuras. Toda a moderna Teoria dos Jogos baseia-se nesse princípio de deslocamento e re-identificação. E os jogos propriamente ditos, desde o xadrez até os jogos de baralho, também exigem do jogador que ele possa “sair do seu centro”, deixar provisoriamente de ser ele mesmo e entrar (metaforicamente) na mente do adversário. O Eu moderno é o “Eu Dividido” do psicanalista R. D. Laing, é o “Eu Profundo e outros Eus” de Fernando Pessoa, é o “Eu sou ele, como você é ele, como você é eu, e nós somos todos juntos” de John Lennon, é o “Eu e Eu” de Bob Dylan, o “Eu é um Outro” de Rimbaud. O que para uns é loucura, para outros é o jeito futuro de ser.

0226) A pureza do interior (11.12.2003)


(Norman Rockwell, "Antenne")

Alfred Hitchcock considerava um dos seus melhores filmes Sombra de uma Dúvida, onde Joseph Cotten faz o papel de Charlie, um charmoso assassino que seduz e estrangula viúvas ricas. O filme começa com ele pegando suas economias e fugindo para a Califórnia, onde mora sua irmã mais velha, que o idolatra. Ali, Charlie pretende levar uma vida tranquila, numa cidadezinha do interior. Mas não demora e dois detetives vão ao seu encalço; sua sobrinha (freudianamente também chamada Charlie) começa a suspeitar dele, e tudo se precipita para um clímax previsível.

Hitchcock dedica o filme ao co-roteirista Thornton Wilder, que pegou a sinopse inicial de Gordon McDonnell e a ambientou numa típica cidadezinha norte-americana. Este foi um dos aspectos que mais interessaram o cineasta: mostrar “o Mal que se oculta no coração dos homens”, e que invade mesmo os ambientes mais pacatos e provincianos. No filme, Tio Charlie é o sujeito cosmopolita, fino, viajado, cujas experiências não deixam de fascinar e embevecer seus parentes interioranos; ao mesmo tempo, ele tem algo de oculto em seu passado. Tem conhecimento das maldades do mundo, e isso o torna um homem perigoso.

Thornton Wilder é o autor de Nossa Cidade, um clássico do teatro americano em que ele começa mostrando a face idílica e termina mostrando a face trágica de Grover´s Corners, uma “cidadezinha qualquer”. É uma equação cruel: modernização = passagem do tempo = morte. Nas cidades pequenas, no meio rural, a modernização tanto pode ser um sinal de vida quanto de morte. Modernização significa que florestas serão abatidas, velhos prédios serão demolidos, profissões tradicionais serão extintas, objetos domésticos serão substituídos. As novidades que vêm de fora podem ser vistas como o nascimento do Novo, mas também como a morte do Antigo, de tudo aquilo que tinha sido, até então, o mundo em que vivíamos.

E as novidades da Cidade Grande vêm, também, tingidas de maldade, de materialismo, de desprezo pelo ser humano. Num dos diálogos mais arrepiantes do filme, Tio Charlie diz à sobrinha: “Não se iluda com o mundo, Charlie. Arranque as fachadas destas casas, e verá que dentro delas só existem porcos.” No primeiro momento de alegria com a chegada do tio, Charlie diz: “Eu sinto que dentro de você existe algo que ninguém mais sabe, alguma coisa secreta e maravilhosa, e eu vou descobrir o que é.” É a fascinação infantil do provinciano diante dos mistérios da mente cosmopolita, que logo é substituída pelo terror infantil do provinciano quando a resposta a estes mistérios abala suas ilusões éticas e morais. O mundo lá fora é mau, diz Hitchcock pela boca do Tio Charlie. Existia uma pureza nas cidadezinhas norte-americanas que não duraria por muito tempo, como se o universo das ilustrações ternas e realistas de um Norman Rockwell fossem sendo invadidas aos poucos por personagens de Quentin Tarantino. O filme, por falar nisso, é de 1943.

0225) A economia Rube Goldberg (10.12.2003)




Um amigo meu chegou com uma idéia genial. Ele descobriu um salão de festas de uma escola onde ele era amigo da diretora. O filho dele tem uma banda, portanto pode ser obrigado a tocar sem cachê numa festa do pai. Ele tinha feito uns trabalhos para uma rádio e a rádio não pagou, de modo que ele podia trocar isso por spots de divulgação da festa. Era uma festa para tantas pessoas, o ingresso era tanto, a cerveja era tanto... Eu perguntei: “E tu acha que vai lucrar quanto com isso?” Ele disse: “Se tudo correr bem, dá pra tirar uns 300 reais.”

Rube Goldberg foi um cartunista americano cuja especialidade eram quadrinhos que ele chamava invenções. Por exemplo: uma invenção para o sujeito apagar a luz do quarto sem levantar da cama. O cara está deitado na cama, e liga um ventilador. O vento empurra um barquinho numa bacia de água. No barquinho há uma vela acesa, que a certa altura fica exatamente por baixo de um barbante esticado. O barbante se queima, se parte, e libera uma bola de ferro que escorre ao longo de uma calha, e quando chega lá embaixo aciona um trampolim que arremessa para o alto uma bola de gude. A bola de gude cai dentro de um cercadinho onde há um rato, e o assusta; o rato, ao tentar fugir na direção oposta, desequilibra uma plataforma, fazendo tombar um paralelepípedo onde está amarrado um barbante, cuja outra ponta está presa ao interruptor. O paralelepípedo cai, estica o barbante, e puxa para baixo o interruptor, apagando a luz.

A descrição acima não corresponde exatamente a nenhum desenho de Goldberg; inventei de memória, pegando detalhe deste ou daquele desenho, porque o Mestre criou centenas de variantes sobre este tema, onde detalhe como estes se recombinavam ao infinito. Sua fórmula básica é: um excesso de mecanismos para produzir um mínimo de efeitos. É um mundo absurdo? Não mais do que o mundo da economia popular, onde se inclui a frenética atividade de jovens que têm bandas, grupos de teatro, equipes de vídeo, todos querendo criar “arte e cultura”, e fazendo da escassez de recursos um incentivo a mais para ter idéias brilhantes.

Isso às vezes é uma atividade tão engraçada e insensata quanto as invenções de Rube Goldberg. Existe algo de patético nisto, mas existe algo de gloriosamente vivo, de incontivelmente criador. Os caras querem fazer, e vão lá, e fazem. Um produtor profissional passaria meia dúzia de cheques, sem se levantar da cadeira, e resolveria tudo. A galera não tem essa opção. O jeito é pedir emprestada, ao amigo que trabalha na oficina, uma perua velha que o dono não foi buscar, e usá-la para pegar um amplificador que vai ser emprestado ao pastor evangélico da esquina, em troca do uso da igreja para passar um curta que um amigo baixou da Internet e outro passou para DVD. Tudo isso pra ver um filme? Tudo isso pra viver, amiguinhos. O Deus que criou este mundo não rezava pela cartilha de Henry Ford. O nome de Deus é Rube Goldberg.

0224) O centro do mundo (9.12.2003)




Críticos literários e cinematográficos usam volta e meia a mesma expressão para se queixar de um livro ou filme: “Não consegui me identificar com o protagonista.” Isto parece ser um critério importantíssimo para eles, e até compreendo, porque é uma experiência muito interessante quando durante uma narrativa conseguimos nos identificar com o protagonista. É como se tudo aquilo estivesse acontecendo com a gente, como se fôssemos nós o centro vivenciador daquela história.

Essa identificação pode ser porque achamos o personagem parecido conosco; razão pela qual os manuais de literatura infanto-juvenil nos aconselham a usar protagonistas nesta faixa de idade, porque criança não tem facilidade para se identificar com personagens adultos (será mesmo?). Pode ser também porque o protagonista, mesmo não se parecendo nem um pouco conosco, reúne algumas qualidades que gostaríamos de ter, ou pelo menos de vivenciar através de uma obra de ficção: daí que garotos gostam de se identificar com o Homem Aranha e adultos gostam de se identificar com James Bond.

Gosto muito de filmes ou livros onde me identifico com o protagonista, mas gosto igualmente de filmes ou livros onde não me identifico com nada ou com ninguém. Pode ser o enredo que me atrai. Ou a ambientação social construída pelo autor. Ou a mensagem filosófica, ou o humor, ou o estilo narrativo... Existem mil outras coisas que me atraem numa história, e essa tão badalada “identificação com o personagem” é apenas uma delas, e nem de longe a mais importante.

O que me parece é que existe um certo tipo de leitor para quem o mundo tem apenas um centro: ele próprio. Não digo que estes indivíduos sejam egoístas, mas são pessoas acostumadas a pensar apenas em seu próprio nome. Não têm o hábito de se colocar no lugar de Fulano ou Sicrano, e tentar imaginar como é que Fulano ou Sicrano pensam, e por que cargas dágua Fulano e Sicrano reagem assim ou assado. Essas pessoas fazem de si próprias o centro do mundo, e não arredam pé. São protagonistas. A vida é uma história narrada na primeira pessoa: Eu.

Outros são o contrário disso. Despregam-se com facilidade de si mesmos para imaginar-se no lugar de outros. Não precisam, vendo um filme, identificar-se com ninguém em especial, porque ao observarem tudo identificam-se com tudo que lhes surge diante dos olhos. Identificam-se com o Mundo do Filme. Para as pessoas como eu, o mundo não é um círculo, que só tem um centro: é uma parábola, que tem dois centros, ou dois focos: o olho que vê e o objeto que é visto, ou a mente que pensa e o objeto que é pensado. Para estas pessoas, é natural que seja assim. O perigo com elas é que podem resvalar para a dissociação mental, a esquizofrenia. Uma célula viva, quando desenvolve dois núcleos, tende a virar duas células. Nossa mente corre um risco parecido, mas algo em nós precisa desta bendita capacidade de sair do Centro do Mundo, de se despregar de nós mesmos.

0223) Os anjos de Miami (7.12.2003)






(William Blake, "O Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol")



Uma guerra cósmica acontece neste momento nas ruas de Miami. O palácio de Deus foi destruído por uma ofensiva maciça dos demônios, e Deus desapareceu, deixando a Terra entregue a um batalhão de anjos que tentam proteger os humanos, especialmente os menores abandonados que dormem pelas calçadas. Um dos demônios mais ameaçadores é a “Bloody Mary”: uma criatura aterradora, com órbitas vazias que gotejam sangue negro. Ela persegue as crianças, auxiliada por demônios menores que usam numerosos portais para alcançar nosso mundo: geladeiras abandonadas, espelhos, e jipes Cherokees com vidros fumê. Num caso bem documentado, Satã, disfarçado de turista rico, foi surpreendido por um grupo de anjos perto de Ocean Drive: eles o agarraram e o prenderam no fundo do rio. No mesmo instante, as águas do rio ficaram vermelhas, e chifres brotaram da cabeça de Satã.

Crianças de seis, oito, dez anos de idade são as únicas testemunhas desse Armagedon invisível. Elas contam as mesmas histórias, mesmo pertencendo a grupos que nunca tiveram contato direto uns com os outros, grupos espalhados por cidades como New Orleans, Chicago e Oakland (Califórnia). Em todas estas cidades funcionam abrigos mantidos pelo Exército da Salvação, e os pesquisadores que entrevistam essas crianças têm registrado a presença das mesmas histórias, dos mesmos eventos, até da mesma terminologia. Por exemplo, as crianças sempre se referem às criaturas sobrenaturais como “espíritos” e nunca como “fantasmas”.

Para os antropólogos que pesquisam a propagação das Lendas Urbanas, o termo “poligênese” designa o surgimento simultâneo de histórias fora do comum e semelhantes, em lugares distantes. A mitologia dos meninos de rua de Miami (onde a pesquisa se concentra) usa, por exemplo, imagens extraídas do folclore mexicano: eles também dão à Bloody Mary o nome de “La Llorona”, “a chorona”, um fantasma tradicional da Cidade do México, a mulher que assassinou os próprios filhos ao ser desprezada pelo amante. Outros pesquisadores vêem traços de Iemanjá na imagem da “Blue Lady”, um espírito feminino protetor, vestido de azul, que “é linda, boa, inteligente, vive no mar, e só aparece para as crianças.”

As crianças afirmam que a guerra está quase perdida. O céu não mais existe, e a melhor sorte para quem morre é ir morar no acampamento dos Anjos, numa floresta nas proximidades de Miami, mas é preciso depositar no túmulo da pessoa um pedaço de folha de palmeira, que serve como salvo-conduto. As crianças dizem que, mesmo assim, é preciso não desesperar, pois existe um exército angelical vindo em seu socorro. A escritora Virginia Hamilton observa que essas crianças se sentem com a responsabilidade de responder às mais terríveis das perguntas: “Por que ficar do lado do Bem, quando vemos o Mal vencendo de ponta a ponta? E se eu for morto, como posso fazer com que minha vida tenha alguma importância, mesmo depois que eu não exista mais?”

0222) Tarantino, meu patrão (6.12.2003)




Tenho boas e más notícias: o mundo do futuro vai ser parecido com o mundo onde acontecem os filmes de Quentin Tarantino. Não vai ser no mundo inteiro, por igual; mas esse mundo mental está emergindo por todo o planeta. 

Imaginem um trecho em alto mar, aquela superfície interminavelmente lisa, ilusoriamente plana de um dos “convexos oceanos”, como os chamava Jorge Luís Borges. Ali, começam a surgir ilhas, emergindo das águas, umas grandes, outras pequenas, outras lá adiante, quase isoladas. Elas surgem e não param de se elevar, são arquipélagos que em breve revelam ser apenas o picos de uma cordilheira submarina que se eleva. 

Porque é isto que está acontecendo. Ilhas de violência aparentemente independentes entre si estão todas ligadas por baixo, todas fazem parte de uma imensa plataforma submarina que está vindo à flor da água. Que plataforma é essa? Não sei: estou apenas descrevendo o que enxergo através deste meu binóculo futurologista.

Uma dessas ilhas é o mundo dos personagens de Quentin Tarantino, que são como crianças grandes, capazes “de horrores e de ações sublimes”, como dizia Bilac. 

Os personagens de Tarantino passam horas discutindo sobre canções populares, seriados de TV e desenhos animados. São crianças fascinadas pelo mundo pop da cultura-de-massas, dos refrigerantes, dos automóveis. Esse lado infantilóide dos norte-americanos já foi explorado por muitos diretores, mas sempre com uma visão crítica, objetiva, intelectual. 

Tarantino talvez seja o primeiro grande diretor que fala tanto de fora quanto de dentro desse universo: ele crê no que seus personagens crêem.

É um mundo de violência gratuita, não porque existe ódio gratuito, mas porque as pessoas estão entediadas, ou têm prazer naquilo, ou acham que a violência é a maneira mais rápida e cômoda de lidar com um contratempo. 

Uma violência de quem foi criado vendo desenhos animados, nos quais se tem a impressão de que nenhuma violência ocorre, pois os personagens são de borracha ou de massa-de-modelar: são explodidos, esmagados, metralhados, picados em pedacinhos, mas num piscar de olhos se recompõem e voltar a brincar. 

Os “cartoons” invadiram o mundo real, e um dos aspectos do talento de Tarantino é ser capaz de glorificar essa violência infantil e ao mesmo tempo de encarar suas consequências, como quando deixa um personagem baleado esvair-se em sangue durante os 90 minutos que dura “Cães de Aluguel”.

Este filme e “Pulp Fiction” mostraram que Tarantino tem concepções próprias e muito eficazes sobre narrativa, estrutura de roteiro, idas-e-voltas temporais, duração do tempo de uma cena, direção de atores, longos diálogos mesclados a longas improvisações. É sua contribuição maior ao cinema, em apenas dois filmes. 

Mas esta é talvez a parte consciente, intelectual de Tarantino. É sua parte instintiva, de menino levado, de garoto punk fascinado por consumo e crueldade, que faz dele um dos primeiros diretores do século 21.







0221) A revista Caras (5.12.2003)

Tem gente que não presta. Quando a revista “Caras” surgiu, um amigo meu, desses que fazem piada até com a mãe que está na UTI, teve a brilhante idéia de lançar uma revista parecida onde apareceriam aquelas garotas de bustiê que frequentam a discoteca Help, as neguinhas da Lapa, e as massagistas das termas do centro do Rio. E pronto: a revista ia se chamar “Baratas”. Acho que ele só não levou a idéia adiante porque nessa mesma época Ziraldo lançou a “Bundas”, fruto de um raciocínio verbal parecido: “Quem mostra a bunda em Caras não mostra a cara em Bundas”.

“Caras” surgiu da ampliação de uma classe média que sonha com a burguesia, cultiva um ideário de vida que ela julga ser o da burguesia, pesquisa e imita atitudes de consumo que parecem ser da burguesia; vive para isto. Alguém irá erguer o dedo e dizer: “Que a classe média brasileira nunca sofreu tanto quanto agora! Que os salários estão achatados! Que o poder aquisitivo caiu!”. Sem dúvida. Só que isto acontece com aquela parte da classe média formada por funcionários públicos, professores, jornalistas, pequenos comerciantes, etc. Se vocês prestarem atenção a essa galera de “Caras”, verão (cadê os sociólogos para anotar, tabular e quantificar esse troço?) que existe uma classe média com dinheiro pra gastar. Ela gravita, por exemplo, em torno das grandes empresas estatais ou multinacionais, em torno do “império das telecomunicações” (incluindo aí as grandes redes de TV, as empresas de telefonia celular, a indústria informática), em torno do esporte-com-patrocínio, em torno do comércio de importações e exportações, e em torno do mercado do show business, que vai muitíssimo melhor de saúde, como um todo, do que seu sub-conjunto “indústria fonográfica” – pois pode-se piratear um CD, mas não um show.

A isto junta-se o exército das inquilinas da noite, o qual inclui gatinhas comovedoramente belas, peruas que parecem quadros expressionistas, madames embalsamadas, deusas ciborgues fabricadas por clínicas e academias, e em torno delas os inescrutáveis senhores de black-tie ou dinner-jacket, fumando cigarrilhas e sorrindo para um ponto vago além da câmara. Existe nisto tudo o tradicional egoísmo das elites, mas a crueldade social implícita nesse culto às celebridades não poupa ninguém. Vips e fãs são todos dissolvidos num mesmo caldo de infantilização, de sonho com uma vida que seja só recreio, só festa, festa, festa. São o nosso Baile da Ilha Fiscal, que nunca acabou. Existe um lugar do Brasil onde a todo instante uma festa como aquela está acontecendo; é uma ilha da fantasia, um castelo sustentado por quinhentas colunas sociais, um salão das mil e uma noites onde é sempre noite, onde as mulheres estão sempre recém-perfumadas e o burburinho das conversas nunca pára de se misturar à música. Ali se realiza o sonho infantil da vida sem trabalho, da escola onde só há recreio, da festa “que não tem hora para acabar”. É o Brasil sonhando! Sonha, Brasil.

0220) O escriba tetraplégico (4.12.2003)

Eu tenho às vezes a impressão de que ando através do mundo como um cego anda através do Louvre. Ele ouve passos, vozes, exclamações de espanto e de deleite ressoando sob aquelas abóbadas, ou espalhando-se por aqueles imensos corredores e escadarias. Ao fundo de tudo, ressoa aquele murmúrio, contínuo, como um rio que corre, aquele rumor permanente de vozes, meio shopping, meio salão de ópera. O visitante cego sabe que está passando por um lugar inesquecível, e a tagarelice extasiada à sua volta chega até a inebriá-lo um pouco; mas não é a mesma coisa.

Pois é assim que eu sou no mundo da Informática. Convivo com pessoas que enxergam o que se passa nesse mundo, onde eu só me locomovo às apalpadelas. Em termos de consumo high-tech não valho muito mais que um macaco amestrado. Leio o manual, executo os programas, olho os tutoriais, preencho os campos da maneira que me pedem, e clico OK. Pronto!... Os problemas só acontecem quando eu clico neste condenado deste OK, e surge a frase: “A conexão com o servidor foi interrompida.” Fico órfão da Vida Real durante o resto da noite, corroído pelo desespero. Os sujeitos normais dizem algo como, “Ora, era só ter trocado o índice de configuração dos parâmetros!”, ou “Viu se os cabos estavam bem apertados?” ou “Veja se o DSL e o Enet estão alinhados.” Isto me deixa mais humilhado ainda. Não saber como se faz uma coisa boba é até suportável, mas não saber uma coisa que ninguém mais sabe abaixa muito a minha crista.

É assim que fico, quando não consigo conectar a maldita Internet Rápida, o milagre cibernético que tornou mais real a nossa vida. Quando dá certo é uma maravilha. As telazinhas brotam na ordem certa, no lugar certo, como bolhas-de-sabão retangulares onde basta clicar OK para que desapareçam em paz, cumprida a sua missão. E aí é correr pro abraço, é abrir as caixas de mensagens, os Explorers, o escambau. De repente, não estou mais cego, surdo, mudo, tetraplégico e amnésico. De repente os campos de força do Universo estão fluindo pelos cabos telefônicos até o meu monitor brilhante, de onde pulam (sem fio! sem cabo! sem trapézio!) direto para minhas retinas e meus neurônios, inundando-me com a Mente do Mundo.

Mas quando não conecta... Eu já publiquei um conto (“Breves histórias do tempo”) sobre um sujeito que tem uma meningite quando bebê e fica imobilizado do pescoço para baixo. Quando fica adulto, é um cara mais ou menos na condição do cientista Stephen Hawking ou do ator Christopher Reeve. Torna-se escritor, usando um computador que digita tudo que ele fala; uma rede distribui eletronicanente seus textos, como intermináveis telenovelas, em tempo real, via Net. Hoje, ficar sem Internet é como se alguém desligasse o computador desse sujeito, deixando-o sozinho, aquela cabeça sem corpo pensando no meio da treva, querendo o mundo de volta, a Vida Real de volta.

0219) Conselhos aos roteiristas (3.12.2003)



(ilustração: Jennifer Collier)

Duvido que exista uma classe profissional mais aconselhada do que roteirista de cinema. Quem der uma passada pela Internet vai constatar a existência de milhares de livros e de saites ensinando os segredos desta profissão. Há desde obras gerais com títulos como “Como contar uma história” até as que ensinam a escrever comédia urbana, western clássico, ficção científica. A indústria cresce, técnicos competentes fazem falta, e multiplicam-se não só as escolas profissionais como os cursos por correspondência. Não duvido ver qualquer dia títulos tipo “50 Perseguições – Escritores e Cineastas Dissecam Sequências Clássicas” ou “As 11 Cenas de Sexo Que Mudaram o Cinema”.

Uma das recomendações mais frequentes nos manuais de roteiro que circulam por aí ou nos saites especializados dos EUA é um dos postulados básicos do cinema americano: “use protagonistas com quem o público possa se identificar”, ou “faça com que o público se preocupe com seus personagens”. Este último conselho se exprime com mais clareza em inglês (“make the public care about your characters”), porque este “to care about” tem nuances emocionais mais ricas do que simplesmente “preocupar-se com” ou “interessar-se por”. O filme precisa fazer com que o público tenha uma relação afetiva com os personagens, passe a prestar atenção a tudo que sucede com eles, tente prever consequências, reações, preocupe-se com o que vem em seguida, e assim por diante.

Isto será um princípio universal? Duvido muito. Uma crítica muito frequente na voz dos norte-americanos é que não conseguiram de identificar com os personagens, porque estes eram negativos ou desagradáveis. Balela. Quem vai ver a série O silêncio dos inocentes vai para curtir a companhia de Hannibal Lecter, e não para se identificar com a agente Starling, embora possa torcer sinceramente por ela. E o grande cinema, a grande literatura, estão cheios de personagens com quem não é fácil se identificar.

Essa necessidade de identificação é necessária para que o espectador “compre” tudo que o filme põe à sua frente. Existem momentos durante um filme em que sabemos que estamos numa sala, comendo pipoca, ladeados por amigos ou parentes, olhando um retângulo luminoso e barulhento onde algo interessante acontece. Em outros momentos não estamos ali: estamos, por exemplo, andando ao longo de um corredor e chegando perto de uma porta por trás da qual algo nos espera. Não é mais um filme. Deixamos de ver o retângulo luminoso; entramos nele, suas bordas se diluíram à nossa passagem, o mundo real agora são as imagens coloridas e os sons intoleravelmente nítidos em nossos tímpanos. Quando o ator, ou o roteiro, ou a direção hábil nos arrastam lá para dentro, somos a soma balbuciante e confusa entre nossos emoções e as ações do personagem. Só quando estamos na platéia, olhando o retângulo, podemos ver tudo de fora, com a objetividade inexpugnável do psicanalista ou do crítico.