quarta-feira, 6 de março de 2024

5039) O Enterro do Diabo (6.3.2024)



 

O vilarejo de Macondo, perdido na selva da Colômbia, tornou-se famoso em Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel Garcia Márquez; mas já havia nascido, em essência e medula, no livro de estréia de Márquez, La Hojarasca (1955), que no Brasil saiu com os títulos “O enterro do diabo” e “A revoada”.
 
Macondo é um microcosmo pulsante de memórias afetivas, tanto coletivas quanto individuais, colhido em parte na Aracataca onde Márquez passou sua infância, em parte nas memórias dos avós que por algum tempo o criaram em sua companhia, e em parte na história delirante da Colômbia, um país relativamente pequeno (tudo é relativamente pequeno comparado a esse mastodonte geopolítico que herdamos) mas com uma topografia contraditória (mar, selva, montanha) e uma história de violência absurda assimilada ao cotidiano. 
 
Li agora a tradução de Joel Silveira para a Editora Record (15ª. edição, 1999). Ele explica numa nota sua opção de tradução para o título, “A Revoada”, uma vez que a tradução ao pé da letra seria “A folharada”. Esse fenômeno descrito pelo autor é a migração maciça de gente que se segue à criação de uma fonte de renda em grande escala, tal como as famosas corridas-do-ouro (Serra Pelada, etc.) ou construção de grandes obras (Canal do Panamá, Brasília, etc.). É um tsunami de gente disposta a tudo, e sem vínculo com ninguém. 
 
O prólogo do livro diz:
 
De repente, como se um redemoinho tivesse plantado raízes no centro do povoado, chegou a companhia bananeira, perseguida pela hojarasca. Era um aluvião revolto, alvoroçado, formado pelas sobras humanas e materiais dos outros povoados, restolhos de uma guerra civil que parecia cada vez mais remota e inverossímil. (...) [Eram] os escombros de numerosas catástrofes anteriores à própria invasão. (...) [H]omens que amarravam a mula na grade do hotel, trazendo como única equipagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e que poucos meses após já tinham casa própria, duas concubinas e o título militar que lhes ficaram devendo por haver chegado tarde à guerra. (p. 7) 
 
A companhia bananeira, ou United Fruit Company, é o vilão tradicional da obra de Márquez. Uma frota alienígena de poder incomparável, que desce sobre os tesouros locais, suga tudo que pode e vai embora, deixando os despojos para que alguém enterre. Uma invasão que traz no início o surto vertical de prosperidade, faz pipocar fortunas a torto e a direito, e parte: 
 
Aqui ficava uma aldeia arruinada, com quatro lojas pobres e escuras, ocupada por gente desempregada e rancorosa a quem atormentavam a lembrança de um passado próspero e a amargura de um presente deprimido e estático. Não havia nada no porvir a não ser um tenebroso e ameaçador domingo eleitoral. (p. 118) 


(Aracataca)

Copiando esses trechos agora meu olhar detecta o autor de 20-e-poucos anos, tão propenso a parelhas de adjetivos.  Márquez passou anos reescrevendo La Hojarasca, cuja inspiração inicial foi a viagem feita em 1952 com sua mãe para vender a casa da família em Aracataca. É o episódio que abre seu livro de memórias Vivir Para Contarla (Bogotá: Editorial Norma, 2002). 
 
O autor trabalhava como jornalista em Barranquilla, e começou a transportar para este livro a influência de suas leituras de Faulkner, Virginia Woolf e outros autores modernos que estava descobrindo junto com seu círculo de amigos. 
 
O livro foi recusado em Buenos Aires (na Editorial Losada) por Guillermo de Torre, o cunhado de Jorge Luis Borges, mesmo com uma ressalva elogiosa: “É preciso reconhecer no autor seus excelentes dotes de observador e de poeta”. Márquez chorou pitangas nos bares de Barranquilla, mas sobreviveu. Os amigos o consolaram lembrando que o mesmo Guillermo de Torre havia recusado nada menos que o Residencia en la Tierra, de Pablo Neruda. 
 
Antes de ser publicado, o romance era uma maçaroca amarrotada que o jovem autor levava para todo canto. Durante algum tempo, sem ter como pagar aluguel, Márquez descobriu um hotel de prostitutas onde um casal pagava $ 1.50 de diária. Tornou-se tão habituê, e amigo dos funcionários, que chegava desacompanhado e pagava o mesmo preço. A certa altura, já sem dinheiro, deixava o manuscrito de refém (“guarde isso, é meu bem mais precioso, quando eu pagar você me devolve”), mas tinha onde dormir. 




E o livro? Numa entrevista de 1977 a “El Manifiesto”, Bogotá, ele diz: 
 
Tenho grande carinho por esse livro, e pelo sujeito que o escreveu. Posso vê-lo perfeitamente: é um rapaz de 22 ou 23 anos, acredita que nunca mais vai ter uma chance de escrever nada na vida, que esta é sua única oportunidade, e trata de enfiar tudo ali, tudo que recorda, tudo que aprendeu de técnica e de malícia literária em todos os autores que leu. 
(Garcia Márquez habla de Garcia MárquezI, Bogotá, Renteria Editores, 1979)
 
Ele bebeu principalmente em Faulkner, sentindo uma certa sintonia de espírito entre o seu Caribe e o Sul Profundo do escritor norte-americano. La Hojarasca usa o artifício faulkneriano de várias vozes narrativas que se entrelaçam o tempo inteiro, contando uma só história, às vezes descrevendo a mesma cena, que surge enriquecida por três olhares diferentes: um Coronel idoso, sua filha adulta e seu neto de dez anos. 
 
O “diabo” que deve ser enterrado é o centro misterioso da história: um doutor que, no tempo da prosperidade, aportou em Macondo e de início se instalou na casa do Coronel, mediante uma carta de recomendação do “Coronel Aureliano Buendía”, visto no livro como alguém inquestionável, absoluto, merecedor de todo o respeito. 
 
O doutor exerce e depois abandona a medicina no povoado, mas passa a ser odiado pela população quando, durante uma das refregas da guerra civil, nega-se a atender os feridos. O romance começa com a notícia da morte do doutor, que a esta altura morava em completo isolamento, e um belo dia amanheceu enforcado. A população faz votos para que ele apodreça, mas o Coronel, por dever de honra, chama a filha e o neto para acompanharem o corpo até “a última morada”. 


 
É uma novela densa e curta de 140 páginas, e nela surge inteiro o retrato de Macondo, um povoado poeirento, silencioso, queimado por um sol implacável, imóvel como um lagarto sobre uma pedra, percorrido por lembranças de violências brutais e por segredos que ninguém comenta. 
 
Uma das questões centrais do livro é: deve-se tratar com humanidade alguém que foi desumano? Um canalha morto tem direito a sepultura, ou deve ser deixado apodrecendo ao léu até nada mais restar dele?  O livro tem uma epígrafe bem a propósito, da Antígona de Sófocles, onde o drama da personagem é dar sepultura a seu irmão Polinice. Quando é o irmão de Antígona todo mundo acha que ele tem esse direito, mas, e se um ex-nazista cai morto na rua, deve ser levado ao Caju ou deve ser arrastado para o terreno baldio mais próximo, onde os urubus se encarregarão do resto? 
 
O “doutor” (não se sabe seu nome) é uma dessas figuras escusas, um homem carrancudo, de poucas palavras que se instala como quase-dono na casa do coronel, usa-o, depois joga-o fora, e é esse mesmo Coronel que depois irá afrontar Macondo inteiro para levá-lo feito gente ao cemitério. 
 
A esposa do Coronel, num momento em que não suporta mais aquele hóspede antipático instalado na sua casa, queixa-se ao marido: 
 
– É uma heresia continuar alimentando-o. É como se estivéssemos alimentando o demônio.
E eu, que sempre tivera para com ele um complexo sentimento de piedade e admiração (pois, embora não queira desfigurá-lo agora, havia muito de pena naquele sentimento) insistia:
– Temos de suportá-lo. É um homem sem ninguém no mundo e que precisa ser compreendido. (p. 74) 



O Coronel, um dos narradores, prende-se ao doutor por reverência ao coronel Buendía, e em parte por aquela solidariedade masculina tão latino-americana, em que os homens constituem uma espécie de maçonaria inquebrantável, mesmo quando sacaneiam uns aos outros. A filha do Coronel, aliás, teve o garoto, um dos narradores da história, mediante um casamento fracassado com um espertalhão que queria apenas os favores do coronel. É ela quem narra: 
 
Eu não conhecia meu noivo, nunca estivera sozinha com ele. Martín, no entanto, parecia vinculado a meu pai por uma entranhada e sólida amizade e este falava daquele como se fosse ele e não eu quem ia casar-se com Martín. (p. 95) 
 
O Martín casa, engravida a esposa, consegue encaminhar os negócios que tinha em mente e desaparece para sempre. E o Coronel, anos depois, comenta assim o caso: 
 
Chegou a minha casa com um paletó de quatro botões, segregando juventude e dinamismo por todos os poros, envolto numa luminosa atmosfera de simpatia. Casou-se com Isabel em dezembro, onze anos atrás. Já se passaram nove anos desde que se foi com a pasta cheia de obrigações assinadas por mim, prometendo voltar logo que tivesse realizado a operação que se havia proposto e para a qual contava com a garantia dos meus bens. Já se passaram nove anos, mas nem por isso tenho o direito de pensar que ele era um velhaco. Nem por isso tenho o direito de pensar que seu casamento foi apenas uma jogada para convencer-me de sua boa fé.  (p. 106) 
 
A “revoada” é a revoada de predadores, seja o tipo selvagem (como o Doutor) ou o tipo doméstico (como Martín). São todos vampiros, estão ali em busca da riqueza, do anonimato, ou de ambos. Macondo é um lugar como a Amazônia brasileira de hoje, um fim de mundo onde é possível sumir do mundo e reaparecer com outra cara, outro nome, e muito dinheiro no bolso. 
 
É o Macondo onde vai se gestar, daí a uma década, o épico de Cem Anos de Solidão: uma terra de homens alucinados por miragens: a Pátria, a Amizade, a Honra, a Riqueza, a Palavra Dada. Quando se disser, nesse livro subsequente, que o Coronel Aureliano Buendía liderou trinta e sete revoluções armadas e perdeu todas, não está se falando apenas em insurreições republicanas ou em sublevações militares – é o grão de loucura instalado no DNA daquele povo, cujo corpo vive neste mundo de cá, mas cuja mente vive num mundo alucinatório que só eles enxergam.