terça-feira, 24 de outubro de 2023

4995) Cada qual com as suas manias (24.10.2023)



(Seu Nilo)
 
Toda pessoa tem direito a uma mania mansa, uma mania inofensiva, algo que na pior das hipóteses consome seu tempo livre e uma fatia de seu orçamento. Tem gente que coleciona chaveiros, latas de cerveja, cartões postais, selos. Tem gente que coleciona recortes de jornal. Tem gente que anota resultados de futebol, de eleições, de corridas de cavalos.
 
Meu pai era charadista e cruzadista, ou seja, gostava de resolver (e criar) charadas e problemas de palavras cruzadas nas muitas revistas que comprava todo mês, como Brasil Enigmista ou A Recreativa (para ele, Coquetel e congêneres eram para crianças ou amadores.)  Eu contraí esse vírus, e ainda hoje tenho que me conter quando vejo uma “grade” cruzadista pela frente.
 
Por volta de 1960 ele cismou de criar um dicionário de palavras cruzadas, e começou a anotar definições em pequenas fichas pautadas para as quais ele próprio construiu uma porção de gavetinhas de madeira. Não lembro qual era o viés do dicionário; acho que eram palavras organizadas pelo número de letras. Ele dava a mim e a minha irmã Clotilde um “agrado” monetário para a gente copiar definições das dezenas de dicionários que tinha na estante.
 
Aquilo exigia tempo, aquilo ocupava muito espaço, desarrumava a casa, e eu teria uns dez anos quando por motivos que nunca entendi ele desistiu do trabalho e mandou que a gente rasgasse tudo. Eu, que me divertia copiando as fichas, me diverti rasgando-as.
 
Meu pai era expansivo e piadista quando estava de bom humor, mas quando ficava contrariado fechava-se, virava uma ostra, uma esfinge. Cada pessoa tem seu temperamento. O dele era de não fazer confidências, o meu é de não fazer perguntas. Nunca me passou pela cabeça, a não ser postumamente, chegar para ele e perguntar: “Por que o senhor desistiu do dicionário?”.
 
Outra mania que ele tinha era o futebol, e esta eu herdei de corpo inteiro. Ele se entusiasmou loucamente com a Copa do Mundo de 1958, e comprava todas as revistas que traziam matérias sobre a Copa da Suécia: Manchete Esportiva, Fatos & Fotos, A Gazeta Esportiva Ilustrada... (Acho que a Revista do Esporte, em formato menor, só surgiu depois.)
 
Não só comprou como encadernou todas. E para mim a Copa de 1958 (cuja comemoração em tempo real presenciei meio aturdido, porque tinha apenas 7-8 anos) se transformou depois numa aventura literária. Eu pegava um daqueles enormes volumes encadernados, sentava no sofá, e passava uma manhã inteira lendo as detalhadíssimas reportagens sobre cada jogo, com mil fotos, diagramas ilustrativos de cada gol da Seleção, cartuns, piadas, entrevistas... e as páginas assinadas pelos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho.
 
Em 1961 nos mudamos triunfalmente para a “casa própria”, no bairro do Alto Branco.  Nesse tempo meu pai já tinha tantos livros que a mudança foi feita em dois dias: no primeiro dia, uma camionete levou os livros, e no dia seguinte veio o resto da casa. O primeiro dia foi épico. O Alto Branco era (ainda é) uma colina muito úmida, com muita água à flor da terra, muita lama. A camionete atolou a 100 metros da casa, e atraiu a curiosidade de dezenas de garotos desocupados. Minha mãe, atarefada e expedita, coordenou uma força-tarefa com promessa de níqueis e lanches. A vizinhança ficou assistindo a caravana de guris descalços que sobraçavam pilhas de livros e os levavam ao seu destino final, voltando na carreira para buscar mais.
 
“Ah, Fortuna inviolável!...”  A casa não era muito grande, os livros atravancavam tudo, mas havia uma garagem e meu pai nunca dirigiu carro, de modo que ergueram na garagem uma parede e uma porta. Os livros desceram para lá. A umidade porejava das paredes. Em poucos anos, as coleções de Manchete Esportiva etc. foram sendo corroídas por manchas de mofo. Era um papel-jornal barato, vulnerável. Enormes crateras esverdeadas se abriam no sorriso largo de Vavá, no choro de Pelé abraçado a Gilmar, na calma hitchcockiana de Vicente Feola, no cigarro no canto da boca de Nelson ao comentar “Meu Personagem da Semana”.
 
E a coleção de dezenas de volumes capa-dura foi trasladada melancolicamente para o lixo, enquanto eu reprimia os inevitáveis trocadilhos tipo “o mofo deu”. Meu pai nada dizia (pelo menos na minha frente). Acendia um cigarro e olhava a paisagem.
 
Devo ter herdado um pouco disso tudo, não só das manias como do estoicismo. Não sei onde foram parar as centenas de fichas técnicas de filmes que anotei em meus tempos de cineclube (Diretor/Produtor/Roteiro/Música/Fotografia/Elenco), nem os incontáveis cadernos onde copiava com fervor religioso os jogos do Treze (data/local/juiz/renda/gols do 1º. Tempo/gols do 2º. Tempo/placar final/escalação do time).
 
Perderam-se ao longo das minhas muitas mudanças de cidade em cidade. Espalharam-se com meus livros de bolsos, minhas revistas de contos policiais, meus Argonautas, meus Vampiros, para não falar nas pilhas de Pasquim, Opinião, Movimento, Versus, Flor do Mal, Rolling Stone... Meu tesouro se espalhou pelo tempo afora, tal como o Tesouro de Agra que hoje repousa no fundo do Tâmisa.
 
Quando alguém vem na minha casa e diz: “Puxa vida, você tem muitos livros, e acumula muito papel”, eu respondo baixinho: “Isto é apenas a ponta de um iceberg que derreteu”.
 
Todo maníaco é um obstinado, dizem os tratados médicos. Meu pai não desistiu e durante a década de 1970 iniciou um novo projeto faraônico: o Dicionário do Que, um dicionário inverso que ele datilografou em stêncils e rodou no mimeógrafo-a-tinta que mantinha no quarto dos fundos da casa do Alto Branco.
 
Cabe aqui, para os leigos (as pessoas normais) uma explicação sobre os dicionários inversos. Quando a gente vai resolver uma “palavras-cruzadas”, a gente se depara com uma definição que nos encaminha para a resposta. “Pedra de sacrifício”, é o que nos pedem: e a gente cedo ou tarde descobre que é “ara”. Minha iniciação à obra de Sigmund Freud veio ao descobrir que “o substrato instintivo da psique” é “id”.
 
Ora, muitas dessas pistas se iniciam pela palavra “Que”, esse coringa verbal que é para nosso idioma um problema e uma solução. “Que tem duas pernas” = não demoramos muito a entender que a palavra é bípede. Entretanto, os dicionários comuns são organizados em função da palavras, e não de suas definições. Sem saber a palavra, jamais encontraremos a definição-pista.
 
Vai daí que os cruzadistas dedicam-se a compilar “dicionários inversos”, organizados a partir das definições, e indicando no fim a palavra correspondente. Meu pai se dedicou a organizar todas as definições começadas com “Que...”, um projeto babélico, borgiano. Bem ou mal, ele produziu alguns volumes mimeografados, que distribuiu entre seus confrades da TERNOR (Tertúlia Nordestina), um grupo de aposentados bonachões que se dedicava ao mesmo passatempo.
 
Corta para a década de 1990, eu já morando no Rio de Janeiro, trabalhando como redator da TV Globo. Discutíamos pautas para os programas, e alguém sugeriu uma matéria sobre clubes de decifradores de charadas e palavras cruzadas: “é um pessoal excêntrico, mas simpático”. Eu me ofereci para pesquisar, e certa tarde bati à porta de um desses clubes, numa transversal da Av. Rio Branco. Havia dois ou três senhores conversando, entre poltronas, estantes e um balcão. Expliquei que era da TV (o que sempre produz um alvoroço de solicitude), estava fazendo uma matéria...
 
Mandaram-me sentar, crivaram-me de perguntas. Tive que demonstrar o meu conhecimento do assunto – e olhe, nunca me faço de rogado nesse departamento. Quando falei que meu pai pertencia à TERNOR, soltaram exclamações de familiaridade.
 
– Qual o pseudônimo dele? – perguntaram. (Todo charadista se assina com pseudônimo, mesmo que sua identidade seja conhecida de todos).
 
Respondi:
 
– “Pequeno Polegar”. Ele inclusive compilou um dicionário inverso, chamado Dicionário do Que.
 
Os caras arregalaram os olhos. Um deles foi à estante e não demorou a trazer o volume com capa de papelão, que folheei e reconheci, comovido. Apertaram minha mão, serviram-me cafezinho, responderam tudo que perguntei. A matéria da TV acabou saindo de pauta, mas aquela tarde foi ganha. Não estou sendo demagógico se disser que ver um livro meu na vitrine de uma livraria carioca me dá muito prazer, mas ainda menos do que tive ao encontrar naquela salinha modesta o resultado da mania mansa de Seu Nilo, e a vindicação das muitas noites que passou compilando (sem ambição de glória, sem cobiça de fortuna) o seu livro de areia.