quarta-feira, 31 de outubro de 2012

3018) Como prever terremotos (31.10.2012)





Cientistas italianos foram condenados por não terem sido capazes de prever com segurança, em 2009, um terremoto que matou quase 300 pessoas, na cidade de L’Aquila. Os cientistas eram membros da Comissão Nacional para Previsão e Prevenção de Grandes Riscos, e incluía pessoas ligadas às áreas de sismologia e vulcanologia. A sentença alegou que eles deram declarações contraditórias quanto à possibilidade de que, depois que ocorreram alguns pequenos tremores, viesse um terremoto maior. Sem um alerta formal, a população ficou em casa, e muita gente morreu. Foi o maior terremoto ocorrido na Itália desde 1980.

O caso estava em julgamento desde então, e a sentença de condenação (da qual os advogados, claro, já recorreram) provocou uma inquietação danada nos círculos científicos.  Os cientistas ficam numa encruzilhada dos diabos numa situação assim.  Por um lado, um dos aspectos de que a Ciência mais se orgulha é de sua capacidade de prever resultados de experiências ou de fatos do cotidiano, pela simples compreensão das leis físicas que o determinam. Quando a Ciência entende um processo, ela é capaz de dizer: “Se as coisas estão assim, em tal-ou-tal momento ficarão desta outra forma”.

O problema é que justamente em áreas como sismologia (e vulcanologia, meteorologia, etc.), nunca se pode ter uma certeza absoluta. É um mundo parecido com o dos fenômenos sociais, das ciências humanas: o que se tem são condições básicas, indícios eventuais e tendências futuras.  Conhecendo as condições, é possível interpretar os indícios recolhidos hoje e imaginar que tipo de consequência futura eles podem ter. Mas isso nunca é uma certeza.  Com relação ao clima e às profundezas do subsolo, as variáveis envolvidas são numerosas demais para permitir uma “profecia” – e a Ciência nos acostumou a pedir profecias, certezas.

Os cientistas disseram que um terremoto naqueles dias era improvável, e que não dava para considerá-lo nem uma certeza nem uma impossibilidade. A grande quantidade de mortos e o fato do julgamento ter sido local, inclusive o juiz, o promotor e o público, pode ter influído no veredito. O cientista inglês Malcolm Sperrin afirmou: “Se a comunidade científica vai ser penalizada por ter feito previsões incorretas, ou por não prever com exatidão um evento que veio a ocorrer, então a atividade científica vai se ver restrita somente a certezas, e os benefícios decorrentes de descobertas em campos desde a Medicina e a Física serão bloqueados”. A Ciência está pagando o preço da imagem que sempre procura vender ("o que eu descubro tem utilidade prática”), para poder conseguir verbas e financiamentos.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

3017) Laerte: La Earth (30.10.2012)




(Laerte, foto de Rogério B. Huss)


A Terra, o nosso planeta, é vista como uma personagem feminina em movimentos influenciados pela contracultura, o feminismo, o misticismo, a ecologia e a preocupação com o meio ambiente. A Mãe Terra é uma criatura viva (alguns chamam a isto “a hipótese de Gaia”), e o princípio feminino seria o princípio básico da existência. Pode-se pensar numa situação em que na humanidade só existam mulheres e elas consigam de algum modo se auto-fecundar e gerar novos seres; mas não se pode pensar numa humanidade composta apenas de homens. Biologicamente, a humanidade consiste nelas, e nós somos acessórios necessários, por enquanto, à reprodução da espécie. (Mas que isto não nos esmoreça, companheiros, em nosso cumprimento do dever!)

Laerte Coutinho é um dos grandes quadrinhistas brasileiros, criador dos “Piratas do Tietê”; surgiu em revistas como Circo, Chiclete com Banana e outras, numa geração de desenhistas que incluía Angeli, Glauco, Adão Iturrusgarai, etc.  Há dois ou três anos começou a se vestir de mulher, e diz ele que deu mais entrevistas nos últimos tempos do que ao longo de toda sua longa carreira de desenhista (Laerte tem 61 anos). Laerte decidiu assumir sua porção feminina e vestir-se com as mesmas roupas que as mulheres se vestem, ir ao banheiro feminino, pedir para ser tratado como “ela” e “a senhora”, etc.

Laerte virou gay? Foi a primeira pergunta que foi feita e a mais irrelevante, até porque ser gay está aos poucos virando uma coisa muito comum e muito aceita no país. Há focos de resistência, mas diminuem a cada década. O que não é comum no país é um homem vestir-se de mulher e sair à rua – sem ser no carnaval, no teatro, numa festa à fantasia, num filme ou em qualquer situação onde possa ser invocado o pretexto de que era mera brincadeira ou encenação.

Diz Laerte (revista Continuum, Itaú Cultural, # 39, out/nov): “Os costumes estão se transformando. Está ficando claro para todo mundo que orientação sexual e gênero são coisas distintas. Não há um vínculo único. A idéia de que todo cara que se vestir de mulher é gay não existe. Tenho muitas amigas que são travestis e são heterossexuais. Não gostam nem têm atração por homem. Ver o gay como mulherzinha é um insulto antigo, fora de moda. Às vezes, tentam ser mais masculinos que o próprio homem”. Quando as executivas da Av. Paulista e de Wall Street começaram a usar terninhos, nos anos 1980, viram essa inserção no mundo masculino como uma promoção, mas era uma promoção que mantinha a hierarquia – ser masculino era necessariamente ser superior. Quando um homem se veste de mulher a inquietação é maior, porque assim a falsa superioridade é desmentida.


3016) "Filhos da Esperança" (29.10.2012)




É um dos melhores filme recentes de ficção científica, e tinha me passado completamente despercebido. Talvez porque o título brasileiro é meio piegas (o original é Children of Men). Dirigido por Alfred Cuarón (Y tu mamá también, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban) e baseado num romance de P. D. James, é uma história de futuro próximo (o ano é 2027) em que por alguma razão que não fica explicada (nem precisa) a fertilidade humana desapareceu, bebês deixaram de nascer, e a humanidade caminha para o envelhecimento. Quebra financeira, empobrecimento de todos os países, atentados terroristas, e grupos clandestinos defendendo hipóteses para-religiosas mirabolantes.

Leitores de FC hão de lembrar que o livro Greybeard de Brian Aldiss (1964), traduzido no Brasil como “Herdeiros da Terra” (Bruguera) e como “Jornada de esperança” (Ed. Abril) tem a mesma premissa, e seu protagonista, o Barba Grisalha, é o ser humano mais jovem num mundo onde todos têm cabelos brancos. O filme de Cuarón se abre mostrando na primeira sequência a morte do ser humano mais jovem dessa época, um garoto de 16 anos. O mundo está em caos mas a Inglaterra, na base da Lei Marcial, consegue manter um arremedo de ordem, principalmente barrando a entrada de milhões de imigrantes ilegais. (Ainda existem milionários – um deles salvou e trouxe para casa o “Davi” de Michelangelo e a “Guernica” de Picasso). O protagonista, Clive Owen, recebe a incumbência de conseguir papéis falsos para uma garota imigrante e escoltá-la até a fronteira.

É uma história violenta, com tiroteios, mortes brutais, muito suspense. E é um filme totalmente diferente dos chamados “filmes de ação” de hoje em dia, os filmes-sobre-carros-explodindo. Cuarón usa para o suspense um recurso clichê, a corrida contra o tempo – os personagens têm dois dias para chegar num ponto tal, clandestinamente, sendo perseguidos por diferentes grupos. Os tiroteios são intensamente reais, porque ao invés do “BUUUUUM!” dos tiros em Dolby-stereo de hoje em dia as armas fazem aquele “pá” meio abafado que corresponde a um tiro de arma de fogo de verdade. Há planos longos de perseguição, dirigidos com primor. O mundo onde tudo isto se passa é lúgubre, tenso, sofrido. É uma mistura de V de Vingança, Blade Runner, 1984, Esperança e Glória (aquele filme de John Boorman sobre a infância em Londres durante a Guerra).

É um dos melhores filmes sobre futuro próximo e sobre crise populacional que vi em todos os tempos. Se todo filme de ficção científica fosse feito com essa simplicidade e realismo, talvez a gente pudesse deixar de usar Star Wars como o ícone do gênero.


3015) Os jeans e a FC (28.10.2012)




Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.

Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.


sábado, 27 de outubro de 2012

3014) Cifrões eletrônicos (27.10.2012)





Uma das coisas boas do capitalismo (sistema tão perseguido nesta impiedosa coluna!) é o fato de que ele se esforça o tempo inteiro para descobrir maneiras mais fáceis e mais fluidas de produzir, de transportar, de estocar, de expor, de vender, de cobrar, de entregar.  Vive disto, não é mesmo? – então tem mais é que aplainar os caminhos pedregosos que ligam estes processos. 

O dinheiro eletrônico surgiu para eliminar a necessidade de transferir sacos cheios de moedas metálicas de um continente para outro.  As máquinas de cartão de crédito foram um passo adiante, e agora existem sistemas como o Square em que qualquer celular pode se transformar numa maquininha dessas. Você pluga na entrada dos fones de ouvido a engenhoca eletrônica, passa ali o cartão bancário, digita seus dados (ou aperta sua impressão digital), e presto! – o dinheiro foi transferido. Para isto, claro, o celular precisa baixar o aplicativo correspondente.  O Square é uma criação de Jack Dorsey, que é também um dos criadores do Twitter. Numa matéria da Wired (http://bit.ly/KUEM27), Dorsey argumenta que os novos smartphones têm muito mais poder de processamento do que um Banco inteiro de décadas atrás, e seria bobagem não aproveitar isso para disseminar o ato da venda eletrônica.

Gigantes da transação eletrônica como PayPal e VeriFone rapidamente copiaram a inovação, e Jennifer Miles, vice-presidente desta última, admitiu: “Square pegou uma indústria sonolenta, que há anos vinha fazendo as coisas sempre do mesmo modo, e introduziu uma inovação; mas é um processo que pode ser replicado”. Também faz parte do capitalismo essa disposição constante em copiar o que o concorrente fez e está dando resultado. Dorsey não liga. Ele parece fixado (como Steve Jobs, um dos seus gurus) na maneira mais simples e prática de fazer as coisas. Diz ele: “O desafio que eu coloco para nossa equipe de produção é criar um aplicativo que eles mesmos queiram usar. Isto é uma coisa que eu aprendi na Apple. É a razão pela qual eles estão o tempo todo surpreendendo os usuários”.

O sistema de livre concorrência obriga à produção de muita bobagem desnecessária, mas em seu lado positivo ele cria uma mentalidade de design, de excelência, de aperfeiçoamento em busca da melhor forma de fazer as coisas. As futuras sociedades socialistas devem ficar de olho nesse aspecto do capitalismo. A concorrência criativa força as melhores mentes a buscarem as melhores soluções, e em certo ponto isso se torna uma corrida estética, à procura da beleza e da funcionalidade, e deixa para trás a acumulação onívora de capital, a sede predatória pelo lucro incessante.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

3013) Tarzan 100 Anos (26.10.2012)





(1a. edição em livro) 


O romance Tarzan dos Macacos foi publicado pela primeira vez no número de outubro de 1912 da revista The All-Story Magazine e iniciou uma das franquias mais bem sucedidas da pulp fiction e da cultura de massas. Edgar Rice Burroughs publicou cerca de 20 romances envolvendo o lord inglês perdido na selva ainda criança e criado pelos macacos africanos. Ao que se diz, foi ele o primeiro escritor a ganhar um milhão de dólares produzindo ficção popular. ERB criou outras séries de grande sucesso: as aventuras de John Carter em Marte, adaptadas há pouco para o cinema, e as histórias de Pelucidar, o reino subterrâneo.

Na revista Million (set-out 1991), Brian Stableford dá um balanço na obra desse típico escritor “pulp”. Diz ele que o núcleo do mito de Tarzan está nos dois primeiros livros (Tarzan of the Apes, 1912; The Return of Tarzan, 1913), e que nos romances seguintes Burroughs limitou-se a repetir situações. Quando tentou introduzir novidades, os resultados foram bizarros, e ele dá como exemplo Tarzan e os Homens-Formigas (1924), Tarzan no Centro da Terra (1930), Tarzan e o Homem Leão (1934). Diz ele também que Tarzan e a Cidade Proibida (1938) é obra de um ghost-writer, o qual, ainda por cima, tinha pouca familiaridade com o universo do personagem.

O charme de Tarzan, diz Stableford, é que ele tem o coração de um leão e a mente de um aristocrata, e os dois não estão em conflito. Ao conhecer as capitais européias ele as despreza e volta para a selva natal, porque os parâmetros morais na selva são mais elevados do que os das cidades. Tarzan é a mais bem sucedida fantasia do “bom selvagem” não corrompido pela civilização.  Sua selva é uma construção bizarra, impossível de encontrar na vida real: muitos dos animais em Tarzan dos Macacos, inclusive os leões, não habitam a floresta. Seus macacos são um composto imaginário de diversos tipos. A primeira versão do livro tinha inclusive tigres que um editor prudente achou melhor suprimir.

Stableford diz que em geral compara-se Tarzan com Mowgli, o menino-lobo do Livro da Selva de Kipling, ele também um bebê criado e adotado pelos animais selvagens. A comparação mais precisa (diz ele) seria no entanto com o Peter Pan de James Barrie – alguém que vive numa Terra do Nunca e só é capaz de ser feliz dentro dela. Peter Pan e Tarzan se decepcionam com o mundo civilizado, um mundo forjado pelos adultos, em torno de problemas adultos, ambições e hipocrisias adultas, concessões e negociações típicas dos adultos. Voltar para a selva ou para a Terra do Nunca é voltar para um mundo de aventuras sem risco e violência sem culpa, característicos da infância.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

3012) A frase de Feynman (25.10.2012)



(Richard Feynman)


A gente sempre imagina (os livros escolares têm grande parte da culpa) que a humanidade está constantemente evoluindo da ignorância para o conhecimento, da barbárie para a civilização.  Diria Augusto dos Anjos: “Ilusão trêda!”.  A barbárie não desaparece com o surgimento da civilização: é diluída por ela, assim como o leite já existente numa xícara não desaparece quando derramamos café dentro dela. Civilização e barbárie, ignorância e conhecimento, tudo isto continua a ser produzido sem parar. Varia apenas o ritmo e a intensidade de cada um.

É confortável pensar que a evolução humana é uma lei da natureza, mas as idéias confortáveis são tão perigosas quanto os paraísos artificiais. Não duvido nada que nas próximas décadas aconteça alguma catástrofe planetária (calma, estou virando a boca pra lá), de natureza econômica ou ecológica, e em um simples século a gente perca tudo que aprendeu. Como teria dito uma vez Einstein: “Não sei que armas serão usadas na Terceira Guerra Mundial, mas na quarta serão arcos e flechas”.

Perguntaram ao físico Richard Feynman (procurem meus artigos sobre ele no Mundo Fantasmo): Se algum cataclismo destruísse todo o nosso conhecimento científico, mas você pudesse deixar para os homens futuros uma simples frase, que frase seria essa?  Que informação essencial, comprimida numa pequena cápsula, permitiria reencontrar o caminho perdido da ciência?

Feynman respondeu que um ponto de recomeço importante seria a hipótese atômica, ou seja, o nosso conhecimento sobre a matéria de que o Universo é feito. E ele sugeriu a frase: “Todas as coisas são feitas de átomos, minúsculas partículas que giram em movimento perpétuo, atraindo-se umas às outras quando estão a pequena distância, mas repelindo-se quando tentamos apertá-las umas de encontro às outras”. Para Feynman, esta descrição contém uma quantidade enorme de informação sobre o mundo. O fato da matéria que parece sólida consistir em “grãos” invisíveis, separados por espaços vazios; o fato de esses grãos manterem relações de energia entre si (atração e repulsão); o fato de que, quando tentamos interferir no equilíbrio das partículas, essa energia reage de maneira violenta (como quando pegamos dois ímãs e tentamos forçar suas extremidades iguais uma de encontro à outra).

Feynman esgota o assunto? Claro que não. Biólogos, astrônomos, geneticistas etc. iriam certamente propor outras frases, outras fórmulas. Bem que poderíamos compilar uma antologia delas e gravá-las em todas as línguas, em todas as montanhas, em todas as memórias. Uma nova Tábua de Esmeralda, preservando as células-tronco do conhecimento, para fazer o mundo nascer de novo.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

3011) Contracapa de post (24.10.2012)




&  quando você toma a primeira cerveja do dia antes mesmo de levantar da cama, está na hora de revisar parâmetros  &  não sei onde a generosidade me surpreende mais, se entre os abastados, se entre os mendigos  &  comemorar aniversário é fazer um risco a mais na parede da cela  &  pensavam que iam me prender e eu saí voando com gaiola e tudo  &  eu gostaria de dar um pulinho rápido no futuro só para saber como vão chamar a época em que eu vivi  &  sou do tipo que se remexer na cesta de lixo do escritório traz de volta metade das coisas  &  um submarino repleto de pássaros coloridos  &  passei a vida me preparando contra catástrofes que nunca aconteceram, ou seja, deu certo  &  a roda só foi inventada quando havia cem pessoas pensando naquilo o tempo inteiro  &  um túnel com lojas de shopping nas paredes laterais  &  a imagem fala à razão, o som fala ao inconsciente  &  hoje em dia só quem acha um mecenas são os bobos da corte  &  certas pessoas são como os guindastes, levantam tudo mas se caírem não se levantam sozinhos  &  o governo oferece pacote completo: anistia, amnésia e eutanásia  &  o simples fato do sujeito concordar em ir para a guerra já o torna merecedor de uma medalha por bravura  &  todo escritor devia ter uma luzinha vermelha na testa que piscasse furiosamente sempre que ele está trabalhando  &  uma pistola de dois canos e uma faca de duas lâminas  &  o sertão é divino e a cidade é maravilhosa  &  uma dor serve também para nos garantir que o resto do corpo não está doendo  &  uma tragédia é um drama do qual a gente não consegue rir tempos depois  &  a vida é uma guerra sem exército inimigo  &  o poeta é um mero para-raios, esperando a poesia acontecer  &  Wall Street está durando mais do que o Muro de Berlim  &  em História deveríamos dizer sempre “um segmento de fato”, porque fatos não têm começo nem fim  &  o que mais precisamos na vida é de coisas que não nos deixem ficar pensando no significado da vida  &  o pavão é tão burro que não sabe que é bonito, pensa que aquilo quer dizer força  &  se eu pegasse dois dias de cadeia por cada piada politicamente incorreta que já falei, ia ter de reencarnar pra poder pagar tudo  &  ver futebol sem torcer por nenhum dos dois times é como tomar cerveja sem álcool  &  o melhor lugar para esconder dinheiro é gastando  &  tão samurai que lhe basta uma pena de ganso para estripar um exército inteiro  &  eu bebo a vida naquelas canecas de agarrar com a mão inteira  &  por aí tem candidato a prefeito que não conseguiria mestrar um jogo de RPG  &  um olho de vidro com um aquário dentro onde nadam peixes cegos  &


terça-feira, 23 de outubro de 2012

3010) A retórica da FC (23.10.2012)



(ilustração: John Schoenherr)


O fantástico e a ficção científica se baseiam numa retórica em que, como observou Samuel R. Delany, expressões metafóricas são usadas de um modo literal. Na literatura comum, expressões como “voltar ao passado”, “virar bicho”, “ser um morto-vivo”, “atravessar paredes”, “ler o pensamento” são metáforas. No fantástico e na FC, tudo isto acontece ao pé da letra. Ademais, essa retórica especial combina palavras comuns para formar sentidos inesperados, e Delany dá o célebre exemplo da frase de Heinlein: “The door dilated”. A porta se dilatou. O leitor de FC deve ser alguém capaz de imaginar um mundo em que as portas são aberturas na parede que se dilatam e depois se fecham de novo.

Uma imagem como “pistola de raios desintegradores” (anos 1920?) é um produto dessa retórica, concebido numa época em que “pistola” era algo banal, e “raios” eram um aspecto do mundo físico intensamente estudado pela ciência, resultando em descobertas divulgadas pelos jornais (mais do que hoje, aliás). A noção de que raios pudessem desintegrar não era absurda, portanto, e o fato de poderem ser produzidos (por que fonte de energia? com que tipo de controle?) em algo do tamanho de uma pistola era uma conveniência narrativa. A literatura mainstream não dispunha dessas licenças retóricas. Tinha que se restringir ao já existente, ou ao que um dia existira.

Uma vez, escrevendo um conto de FC ambientado em outro planeta, eu quis fazer um personagem, que precisava conversar com uma autoridade qualquer, dizer: “Onde tem uma cabine telefônica?”. Vi logo a bobagem de usar a expressão “cabine telefônica” num futuro cheio de espaçonaves mais velozes do que a luz, e com dezenas de raças (e culturas, e tecnologias) alienígenas. Falei: “Onde tem um emissor de presença?”. E logo o personagem era levado a uma sala escura, e na extremidade oposta aparecia a imagem do escritório do figurão. “Emissor de presença” é uma tecnologia retórica para empregar o mesmo procedimento (comunicação à distância) evitando expressões datadas. “Emissor” tem parentesco linguístico com “transmissor” (que também poderia ter sido usado). E “presença” sugere algo mais que a simples reconstituição sonora da voz – sugere algo como um Skype, que sob diferentes nomes e formas foi um dos primeiros sonhos telecomunicatórios da FC. A retórica da FC nos obriga a descartar as expressões comuns e criar novas combinações de termos (ou mutações das palavras já existentes) para forçar o leitor a, assimilando a palavra ou expressão desconhecida, assimilar o conceito inesperado e novo. Assim surgiram “máquina do tempo”, “ciberespaço”, “andróide”, “steampunk”, etc.


domingo, 21 de outubro de 2012

3009) "A Volta do Parafuso" (21.10.2012)





Esta noveleta de Henry James (1898) é um clássico da literatura de terror, e teve uma ótima adaptação para o cinema (Os Inocentes, Jack Clayton, 1961 – aqui, uma boa e informativa crítica de Colm Tóibín: http://bit.ly/SXIoxz). É a história de uma governanta que vai cuidar de um casal de crianças (10 e 8 anos) numa mansão assombrada pelos fantasmas de um casal de criados que, quando vivos, estavam fazendo tudo para perverter o garoto e a garota. A governanta vê os fantasmas; as crianças parecem não vê-los, e tudo conduz a um desfecho trágico.

Já correu um Açude Velho de tinta a respeito desse livro, que é um dos grandes exemplos do que a gente chama “o fantástico todoroviano”. A teoria de Tzvetan Todorov é de que uma história legitimamente fantástica é aquela que permite o tempo inteiro duas leituras: uma leitura sobrenatural (os fantasmas existem de fato) e uma leitura realista (tudo não passa de um delírio provocado pela sexualidade reprimida da governanta). As duas leituras estão entrelaçadas, e qualquer pessoa que queira defender uma delas encontrará numerosas pistas ao longo do texto.

Um aspecto que se discute menos sobre esta pequena grande história é que James foi um dos primeiros e melhores formuladores da teoria que hoje chamamos “Não Mostrar o Monstro”. Quando queremos assustar o leitor, é melhor a abordagem indireta, que sugere mas não afirma, implica mas não descreve, deixa tudo à imaginação do próprio leitor. Amigo de Robert Louis Stevenson, James talvez tivesse em mente, ao escrever, o clássico Dr. Jekyll e Mr. Hyde que o amigo publicara em 1886, e onde a natureza exata das perversidades de Mr. Hyde não fica bem clara.

Diz James, no prefácio à edição de Nova York de A Volta do Parafuso: “Já vimos, em ficção, uma forma magnífica de malfeito ou, melhor ainda, de mau comportamento, atribuída, vemo-la prometida e anunciada como se fosse pelo bafo quente do Abismo – e então, lamentavelmente, reduzida ao âmbito de alguma brutalidade específica, uma imoralidade específica, uma infâmia específica retratada. (...) [Para evitar isto,] basta tornar bastante intensa a visão geral que o leitor tem do mal, calculei – e essa já é uma tarefa charmosa – e sua própria experiência, sua própria imaginação, sua própria compaixão (pelas crianças) e horror (dos falsos amigos delas) lhe fornecerão, de forma satisfatória, todos os pormenores. Faça-o pensar no mal, faça-o pensar por si, e você estará livre das frágeis especificidades”. O que é induzido e sugerido se multiplica em um milhão de fantasias de horror nas mentes de um milhão de leitores. E cada horror será personalizado.




sábado, 20 de outubro de 2012

3008) Anonymous (20.10.2012)





O que é o Anonymous, ou, talvez, quem são os Anonymous?  Eles não têm nome: têm “nicks”, “usernames” ou “logins”; não têm rosto, têm máscaras de Guy Fawkes. Nos últimos anos, têm sido o pesadelo e a nêmesis de governos, polícias, corporações. Invadem saites, roubam informações secretas e as divulgam para o mundo inteiro, bloqueiam ou desfalcam contas bancárias, convocam manifestações de rua e de praça. As autoridades os chamam de neo-terroristas, mas eles nunca (ao que eu saiba) tiraram vidas humanas. Atacam a informação e a propriedade privada. São uma bomba-de-nêutrons ao contrário: fazem ruir as infra-estruturas e deixam as pessoas intactas. Estiveram presentes na Primavera Árabe, apoiaram o saite Wikileaks em suas campanhas de vazamento de informações econômicas e militares, combateram departamentos de polícia e a Igreja da Cientologia.

Os Anonymous são o novo Anarquismo – sem bombas, mas sempre infernizando a vida dos arquiduques. Uma multidão espontânea, não-coordenada, sem líderes; na verdade são um conjunto de subgrupos de hackers e agitadores, que agem cada qual por conta própria e mandam a conta ser cobrada à griffe. Num artigo na revista Wired de julho (http://bit.ly/LVLPbf) Quinn Norton analisa esse aspecto sem-forma do movimento. Em junho de 2011 o FBI prendeu e cooptou “Sabu”, um ativista de intensa participação; até que isto foi revelado em março de 2012, “Sabu” entregou uma infinidade de companheiros. Isto quebrou a espinha do movimento? De jeito nenhum. Nos Anonymous, nenhum indivíduo é insubstituível. Conan Doyle dizia que nenhuma corrente é mais forte do que o mais fraco dos seus elos. Os Anonymous parecem ser uma corrente que só pode ser quebrada se todos os seus elos o fôrem, simultaneamente.

Quinn Norton comenta que o grupo é uma “do-ocracy”, uma “fazer-cracia”, onde tudo converge para ações específicas: “indivíduos propõem ações, outros se juntam a eles ou não, e depois a bandeira dos Anonymous é hasteada sobre o resultado. Não há ninguém para dar a permissão, nenhuma promessa de louvor ou de crédito, portanto cada ação deve ser sua própria recompensa”. É um anarquismo eletrônico, sem líderes, não hierárquico, não vertical. Ordens são dadas e obedecidas dependendo do contexto – quem obedece hoje pode estar mandando amanhã e obedecendo de novo no mês que vem. Uma combinação de brodagem com ativismo. Até hoje, quem entrava na política o fazia via política estudantil ou política sindical, até chegar na política partidária. Agora há uma geração inteira na faixa dos 15-20 anos que entra na política pela via do anarquismo eletrônico. Sei que nada será como antes, amanhã.



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

3007) A glória secreta (19.10.2012)




(Saul Steinberg)


Fala-se que no Oriente há uma cordilheira de montanhas de calcário escavadas por dentro, formando uma colmeia de galerias. Vive ali um povo frugal e contemplativo. Seus poetas diferem dos de outros lugares pelo fato de que não escrevem: compõem  suas obras mentalmente, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta. Exploradores e turistas europeus já foram admitidos às câmaras internas onde eles vivem sem jamais saírem, alimentados e mantidos pela comunidade.

Lord Gregson informa, em Journeys Through the Lands of the Sun, que foi conduzido ao longo de um corredor por um guia que lhe recomendava silêncio. Os corredores cavados na pedra são baixos, e um europeu precisa curvar-se para atravessá-los. No fim, numa câmara circular com uns seis metros de diâmetro, via-se uma esteira simples, onde um homem estava sentado. Quando Gregson entrou, ele se servia de água de uma bilha, num caneco de barro. Gregson e o guia se sentaram; o homem não pareceu dar pela sua presença. Ficou concentrado, as mãos pousadas sobre os joelhos, e depois de meia hora fechou os olhos e recitou uma longa sequência de frases que deixaram o guia emocionado. Ele explicou depois a Gregson que o homem tinha contado o reencontro entre um homem e seu cavalo. Os dois haviam se perdido numa batalha, muito tempo atrás, e nesse dia o cavalo, reconhecendo o guerreiro no meio de um curral cheio de gente e animais, galopou até ele e se ajoelhou aos seus pés.

Criam histórias assim, para si e para ninguém, ou melhor, para os curiosos (em geral crianças e velhos) que se dão o trabalho de visitá-los. Não têm o direito de escrever, porque escrever seria partir o fio de inspiração que liga o poema ao poeta. O poema (diz aquele povo) pertence ao corpo do poeta, nasce nele, deve morrer com ele. Fala-se que algumas tribos, mais radicais, cortam a língua dos poetas para que nem mesmo a palavra falada quebre esse vínculo.

Isso nos lembra de um dos Buendía de Garcia Márquez, que esculpia peixinhos de ouro delicadamente ourivesados, durante meses, e quando terminava uma dúzia derretia todos e recomeçava. Lembra também o que escreveu Arthur Machen em A glória secreta, quando fala que Cristóvão Colombo, ao descobrir a América, deveria ter jogado ao mar seus tripulantes, voltado sozinho para a Europa e fruído em silêncio, até morrer, seu maravilhoso segredo. E nos permite pensar em civilizações antigas cujas principais conquistas tenham sido do pensamento e do espírito, e cuja existência desconhecemos porque deixaram poucas ruínas físicas, assim como tantos animais invertebrados não deixam fósseis que comprovem sua passagem pela Terra.



3006) Pobre com carro (18.10.2012)



(Pawla Kuczynskiego)


Freud dizia que o dinheiro não traz felicidade porque não é um desejo de infância. Talvez seja por isto que a posse de um automóvel enche de lágrimas felizes os olhos de tantos brasileiros. Desde os primeiros cambaleios infantis esses pobres diabos são induzidos a puxar por um cordão uma traquitana qualquer com quatro rodas e a produzir onomatopéias tipo rom-rom-rom e pi-biiit. 

Para milhões desses desventurados, o carro torna-se o mais multifuncional dos símbolos. Ele é rito de passagem para o mundo adulto, é diploma de ascensão social, é triunfo tecnológico sobre o Espaçotempo, é alcova sobre rodas, é escafandro protetor contra os esbarrões da plebe, é talismã semiótico, é prótese locomotora em quatro dimensões... 

O verbo ser é um conceito abstrato, metafísico, mas ganha carne, osso e metal com este sinônimo reluzente: “ter um carro”.

Muitos amigos meus dizem que pagariam qualquer preço por um frasco de perfume com “cheiro de carro novo”, e só não mango porque eu, por exemplo, gosto de cheiro de livro velho (mas não, não compraria um frasco de perfume, compraria um livro velho – como se tivesse poucos).  

E assim não é difícil entender porque nossas cidades não funcionam, nosso transporte público é uma porcaria, nossos urbanistas fazem as pessoas se adaptarem ao trânsito e não o contrário. 

Diz-se mundo afora que “país rico não é aquele onde pobre tem carro, é aquele onde rico anda em transporte público”.  Duvido que vejamos o Brasil ser assim um dia. O sonho dos governos brasileiros e da indústria brasileira é termos um dia 200 milhões de carros para 200 milhões de pessoas. E as cidades que se explodam.

O saite “Livable Streets” (http://bit.ly/1V86RK) faz um apanhado de pequenas mudanças que poderiam ser implementadas em nossas ruas para expandir o espaço humano e controlar melhor o espaço dos automóveis. Isto de nada adianta, contudo, se o país continuar se suicidando com o aumento da produção e venda de automóveis, sob o pretexto de geração de divisas e criação de empregos. 

A psicose automobilística endivida milhões de famílias hipnotizadas pela fantasia de ascensão social e inviabiliza as cidades. Cidades deformadas e desfiguradas pela ideologia individualista do cada-um-por-si, onde usar transporte público ou é uma tortura (onde ele é entregue às baratas) ou é humilhante mesmo onde ele tem boa qualidade. Refugiar-se no carro é a derradeira ilusão da classe média. Ela imagina estar melhorando de vida e está apenas trocando a pobreza por uma engorda-para-abate, uma espécie de empobrecimento financiado que a leva a trabalhar e produzir cada vez mais para ficar com cada vez menos.






quarta-feira, 17 de outubro de 2012

3005) "Breaking Bad" (17.10.2012)




Esta série de TV está em sua quinta temporada nos EUA. (No Brasil, passa no Canal AXN.) Já vi as duas primeiras e estou vendo (a conta-gotas) a terceira. A vantagem de ver as séries com atraso é não ter que esperar uma semana pelo próximo episódio; meu filho baixa e a gente faz uma maratona de dois por noite. Breaking Bad é a história de Walter White, um professor de química, tímido e bundão, que ao saber que está com câncer e tem somente um ano de vida decide fabricar e vender drogas (secretamente) para deixar um pé-de-meia para a família. O diferencial de Walter é que ele é um químico dos mais CDF, e a metanfetamina que ele fabrica é de uma pureza demolidora. Ele e seu “assistente”, um ex-aluno meio rebelde e meio desnorteado, açambarcam o mercado daquela região fronteiriça com o México. onde a história se passa.

A série se vale principalmente de um excelente roteiro e de atores encaixadíssimos nos papéis. Cada personagem tem uma história de vida suficientemente variada e complexa para proporcionar reviravoltas a qualquer momento, e um dos prazeres da série é ver como tudo se encaixa, e como certos fatos têm uma mecânica de tragédia grega – a gente “canta a pedra” com muita antecedência e fica roendo as unhas à espera da sucessão de catástrofes em que se transforma a vida de Walter (o ótimo ator Bryan Cranston) em sua tentativa de levar uma vida dupla de pai de família respeitável e chefão do tráfico nas horas vagas. O título, acho, significa algo como “Chutando o pau da barraca e virando um caba ruim”.

Há uma leve tintura de David Lynch em certas imagens inesperadas, surrealistas, que depois são justificadas dentro da narrativa. A cidade onde tudo se passa, Albuquerque (Novo México), é uma espécie de Campina Grande, com tamanho suficiente para o sujeito ter uma vida dupla sem ser descoberto, mas não tão grande que ele não esbarre com conhecidos nas horas mais impróprias. Walter é um Jekyll-e-Hyde, um obsessivo capaz de destruir vidas humanas para garantir o futuro da esposa, do filho com leve paralisia cerebral e do bebê que nasce durante essa confusão toda. Os chefões são personagens fascinantes,  cheios de complexidade e de nuances, servidos por excelentes diálogos e uma narrativa de cenas curtas, secas, que vão direto no osso. É o mundo da droga fabricada e vendida por caras que jamais a usariam, porque não são malucos. “Eles são adultos, fazem isso por livre arbítrio”, diz um fabricante. Esta crítica ao nosso conceito ingênuo de liberdade é um dos aspectos mais desconfortáveis dessa história brutal, cômica, cínica, emotiva, cruel. Um dos melhores “filmes” sobre drogas. 


terça-feira, 16 de outubro de 2012

3004) O mundo não acabou (16.10.2012)




Enquanto restar um único jornal capaz de publicar a manchete “O mundo acabou!”, o mundo não terá acabado. Notícias sobre o fim do mundo são um passatempo a mais dos jornalistas, porque a toda hora, em algum país, tem um sujeito meio desnorteado interpretando febrilmente sinais aleatórios e dizendo que o Fim está próximo. Como aconteceu agora em Teresina, onde o ex-zelador Luís Pereira dos Santos conseguiu reunir um grupo de 100 pessoas firmemente convencidas de que ele dizia a verdade ao profetizar que o mundo acabaria no dia 12 de outubro. Luís largou o emprego, se desfez dos seus pertences, atraiu essa multidãozinha de crentes e mandou que todos se preparassem. O mundo mais uma vez recusou-se a se acabar e Luís acabou preso. Segundo ele, Deus resolveu fazê-lo passar por uma provação e impediu que o mundo acabasse, apenas para castigá-lo.

Está tudo aí: a megalomania (tudo que Deus faz é por causa dele), a visão do final apocalíptico, a quebra das normas sociais (as pessoas largaram tudo e foram amontoadas em duas casas, as crianças abandonaram a escola), a busca inconsciente da simetria (“Jesus enviou anjos aos quatro cantos”) e a regurgitação do visionarismo bíblico, uma das formas mais poderosas de aliciamento do inconsciente coletivo (“haverá choro e ranger de dentes”, “noites de trevas”, “a Besta sairá do abismo”). No dia aprazado, o mundo continuou indiferente a eles (em geral, essas coisas ocorrem a quem é tratado com indiferença pelo mundo) e a polícia foi lá desfazer a “arca”, com medo de que houvesse distribuição coletiva de veneno (como ocorreu com a seita do pastor Jim Jones, na Jamaica).

Luís é doido? Um pouco mais do que eu, que há alguns anos estou vendo sinais do fim do mundo por toda parte. (Até quando os governos conseguirão fabricar trilhões de dólares para saciar a Besta Especulativa? Até quando devastaremos o planeta sem que a rebordosa caia sobre as cabeças dos nossos filhos e netos?). Como não sou doido, faço de conta que o mundo não acabará nunca e fico aqui escrevendo meus artigos, abrindo minha cerveja e acompanhando o Campeonato Brasileiro. Luís pertence àquela classe social cuja existência é uma luta perpétua contra o afogamento. Fim do mundo é apenas descer mais um degrau. A classe média se diverte com o calendário maia porque está confiante de que agora os ventos sopram ao seu favor, e pode brincar de ter medo. Por baixo dela, existem os eternos sobreviventes provisórios do Moedor de Gente, que se agarra na Bíblia como a uma boia salva-vidas.  Para eles, o mundo acaba todo dia e recomeça todo dia, e não se sabe qual das duas coisas é mais terrível.


domingo, 14 de outubro de 2012

3003) O fantasma que envelheceu (14.10.2012)




Fantasmas não existem num plano ultraterreno, invulneráveis ao tempo.  A prova disso pôde ser constatada na casa de D. Rigoberta Agra, na av. Floriano Peixoto, perto da catedral. É uma das primeiras mansões “art-nouveau” da cidade, construída na era opulenta do algodão. 

Ali morreu de uma febre, com três anos, o pequeno Gilbertinho – um golpe que abalou e finalmente dispersou a família. D. Rigoberta foi a primeira a avistá-lo, anos depois, brincando com soldadinhos invisíveis num canto do salão. Correu para abraçá-lo e desmaiou. 

As aparições se sucederam numa média de duas ou três por ano. A arrumadeira, D. Lígia, o avistou um dia entretido com um livro de Monteiro Lobato. Aprendera a ler sozinho. Viram-no depois de calção, chutando recursivamente uma bola de encontro à parede dos fundos. Nunca conseguiram aproximar-se dele, que desaparecia.

Foram rezados terços e novenas, foi aspergida água benta, mas D. Rigoberta afirmava que o menino era feliz; deixassem-no viver em paz os pedacinhos daquela vida que lhe coube. 

Gilbertinho continuou crescendo; em breve já era um rapaz, sentado pensativo sobre a balaustrada. Gostava de observar o ir e vir das pessoas rumo à esquina da Maciel Pinheiro, e não perdia o corso durante o carnaval.  Jamais transpunha os limites da mansão, onde parecia residir a fonte oculta de força que o mantinha. D. Rigoberta faleceu, e à saída do féretro Gilberto, nessa época já de bigode, foi visto por trás da janela do segundo andar.

A casa ficou com outro neto, Valfredo, quando este casou com Silvana. Em algumas cartas ele mencionou que Gilberto agora dava preferência aos quartos de hóspedes, eternamente vazios, e opinou que a presença humana o incomodava. 

Percebeu também que Gilberto trajava roupas de acordo com o figurino do momento, e teorizou (gostava de ler teosofia, ocultismo) que a aparência física de um fantasma é criada por nós mesmos, com farrapos de memória, quando sentimos sua presença – que é necessariamente imaterial e invisível.  “Gilberto está aqui, mas a imagem que percebemos só existe em nós, como as cores do arco-íris”, afirmou ele numa palestra que fez no Encontro Para a Nova Consciência.

Valfredo e Silvana envelheceram. Gilberto também. Nas últimas vezes tinha a barba toda branca e caminhava com dificuldade. 

De acordo com os registros da família, a última pessoa a avistá-lo foi a filha do casal, Thayssa, que o viu várias vezes cochilando sentado na grama do jardim, entre as flores. O mesmo lugar onde perdura hoje, principalmente ao anoitecer, uma luminosidade sem forma, pairando como um fogo-fátuo ou como o reflexo, numa vidraça distante, de um sol que já se pôs.


sábado, 13 de outubro de 2012

3002) Lionel Messi (13.10.2012)




Ele tem sido eleito o melhor jogador do mundo, e mesmo que não volte a sê-lo este ano isto não faz diferença. Continuará jogando o mesmo futebol brilhante que joga há anos. 

O argentino Messi mostra mais uma vez o quanto o talento é uma coisa única, pessoal, intransferível. Ninguém nunca jogou como ele; e o mesmo pode ser dito de Pelé, Maradona, Platini, Beckenbauer, Di Stefano, Leônidas, Heleno de Freitas. Podemos até comparar o estilo de A com o de B, mas cada um deles tem qualidades e limitações que estão ausentes no outro. 

Messi e Maradona são argentinos, canhotos, baixinhos, velozes; tanto armam quanto são artilheiros; driblam com esfuziante facilidade, finalizam com variedade desconcertante. Parecidos – e diferentíssimos.

O saite ESPN publicou uma longa reportagem de Wright Thompson (http://es.pn/UHBxKc) sobre a complicada relação de Messi com sua cidade natal, Rosário. 

Diz o jornalista que rodou um dia inteiro na cidade sem encontrar a menor referência a Messi, nem mesmo no "VIP", um bar-restaurante pertencente à família dele. Não há estátuas, nem fotos nas vitrines, nada. 

Num bar temático sobre esporte, perto da rua onde ele foi criado, as janelas têm fotos de Muhammad Ali, Maria Sharapova e Rafael Nadal. Thompson inicia então um trabalho detetivesco para rastrear a razão dessa indiferença.

Messi despontou num time infantil chamado ”A Máquina de 87” (o ano em que todos os jogadores nasceram), e que perdeu apenas um jogo durante quatro anos. Os outros garotos cresceram; Messi não. O Newell’s Old Boys investiu durante algum tempo num tratamento hormonal, mas depois desistiu, e o pai de Messi o levou para o Barcelona com 13 anos. 

Este breve resumo reproduz a história de milhares de meninos (brasileiros inclusive) no mercado da bola de hoje. Todos são bons; a Europa dificilmente compra um adolescente perna-de-pau. Todos são arrancados da família e do país antes de virarem gente. 

Messi não se sente à vontade em Buenos Aires; e quando retorna a Rosário, encontra-se apenas com a família e com os ex-companheiros da “Máquina de 87”. O resto da cidade o ignora. Por que? “Nunca ganhou nada para a Argentina”, resmunga com desprezo um torcedor.

Esta é (segundo Thompson) a maior diferença entre Messi e Maradona. Maradona nunca retorna à favela onde foi criado, mas como despontou como craque no próprio país e lhe deu uma Copa, é considerado um Deus. 

Messi é tímido, caladão, ausente, e sem uma bola nos pés parece um autista. “Estrangeiro aqui como em toda parte”, sua biografia fraturada lhe deu o destino de sentir-se em casa apenas quanto pisa no gramado, e de saber quem é apenas quando a bola chega aos seus pés.








sexta-feira, 12 de outubro de 2012

3001) Em tradução livre (12.10.2012)




Ridicularizar erros de tradutores é um passatempo informal dos resenhadores de livros. Como me incluo em ambas as categorias, posso proclamar minha neutralidade. Ou, melhor ainda, meu completo envolvimento com os dois lados desse cabo-de-guerra. 

Traduzir não é uma ciência exata, e nem chega a ser uma ciência – é uma arte a mais na periferia da literatura. (Só nos resta lutar por um mundo onde a resenha de livros seja feita como arte também.)

Muitas pessoas de fora do mundo literário têm uma visão engenheira do que seja traduzir. Para elas, há uma correspondência ponto-a-ponto entre quaisquer duas línguas, de modo que basta ir ao dicionário e copiar o ponto que corresponde a cada palavra ou expressão do texto original. 

Na verdade, o que temos é uma nuvem turbilhonante de significados instáveis, em inglês ou russo, e a tarefa de produzir uma nuvem de dinâmica parecida, em português. O significado é uma resposta evocada na memória verbal de cada indivíduo por uma palavra ou expressão. 

Ninguém tem dois repertórios iguais, e um dos milagres da Civilização, mais do que a eletricidade ou o cimento armado, é o fato de que sejamos capazes de nos entender quando falamos. Isso se deve talvez ao fato de que dois terços de nossas comunicações verbais são uma imensa reiteração do óbvio, do visível e do já sabido.

Em seu blog Todo Prosa, Sérgio Rodrigues anuncia o Prêmio Nobel concedido ao chinês Mo Yan, cita seu livro Life and death are wearing me out e diz: “Algo como ‘A vida e a morte estão acabando comigo’”. 

Esse ‘algo como’ é a típica linguagem defensiva (equivalente a dizer “Em tradução livre: ...”) com que a gente se protege quando os engenheiros da língua, de Webster em punho, questionam a expressão usada. Que aliás me parece correta, e eu não traduziria por outra – embora alguém pudesse preferir, sei lá, “estão me matando aos poucos”, ou, paraibanamente, “estão me deixando numa peínha de nada”.

Tradução livre é o álibi que invocamos quando, escrevendo às pressas, jogamos no papel nosso primeiro impulso verbal de reconstituição em português do que acabamos de ler, sem ligar para os regulamentos. 

Toda tradução deveria ser livre. Ser livre não garante que seja a tradução correta, nem que seja a melhor tradução; mas não ser livre também não garante coisíssima nenhuma. 

Quando o tradutor joga a toalha e diz: “É algo como...”, seu único e fugaz consolo é pensar que o autor original, seja Mo Yan ou Marcel Proust, tinha algo turbilhonando em seu cérebro, e, depois de muita luta em busca das palavras mais evocativas, da melhor cadência, da melhor arquitetura sintática, resignou-se também a dizer: “É algo como...”.









quinta-feira, 11 de outubro de 2012

3000) O máquina de escrever (11.10.2012)



Volta e meia a imprensa faz matérias com um sujeito porque ele publica cinco livros por ano. Não entendo essa admiração, porque se me pagassem bem eu publicaria não cinco, mas dez.  Quem publica livros em excesso pertence sem dúvida à escola asimoviana do “Revisar, nunca!”.  Isaac Asimov gabava-se de escrever um conto do começo ao fim sem voltar atrás, e quando escrevia “The End” no final colocava as páginas num envelope e as remetia para uma revista. Segundo ele, o sujeito que fica agonizando durante uma semana em cima de uma frase, procurando a forma ideal, nunca vai publicar o livro, e eu atesto que é verdade, oferecendo a mim mesmo como o melhor exemplo. (Já que nunca alcançarei sucesso popular, persigo a perfeição, que é mais acessível.) O problema é que nem todos, aliás bem poucos, têm um primeiro-texto tão limpo, tão claro e tão bem acabado quanto o de Asimov.  Tenha os defeitos que tiver (e tem vários), o texto do Doutor é profissionalmente impecável.

Não sei se é o caso de James Patterson, que um artigo de Danilo Venticinque na revista Época aponta como o escritor mais bem pago do mundo.  Diz ele que os 102 livros de Patterson “venderam 220 milhões de exemplares e o levaram 63 vezes à respeitada lista dos mais vendidos do The New York Times – um recorde na história do jornal”. Descontando o fato de que não tenho a mínima confiança nessas listas de “mais vendidos” da imprensa (são todas fajutas), é um número interessante. Patterson lançou 14 livros em 2011. Como ele consegue?

Nas telenovelas, um autor centraliza o enredo, cria os personagens, e uma equipe fica encarregada do trabalho braçal de escrever as cenas linha por linha. Alexandre Dumas trabalhava assim. O autor é o capitão do navio, que determina o curso, e tem sempre em mente todas as variáveis, para tomar as decisões estratégicas; o redator é o cara a quem cabe escrever a cena da briga ou a cena do namoro, de acordo com as instruções recebidas. Edgar Wallace e Erle Stanley Gardner, mestres do romance policial, ditavam os capítulos no gravador e mandavam datilografar. São autores que funcionam bem em voz alta. Outros preferem trabalhar em dupla: Ellery Queeen é o pseudônimo de Frederick Dannay, que escrevia sinopses detalhadíssimas de 40 páginas, e Manfred Lee, que a partir delas escrevia as cenas, as ações, o diálogo.

Quando um sujeito faz 10 romances por ano isso quer dizer apenas que ele descobriu o formato ideal de trabalho para si próprio. Se os livros são bons ou ruins, é outra questão. O importante é que os livros sejam escritos e publicados, até porque só depois disso é que se pode avaliar se são bons ou ruins.



quarta-feira, 10 de outubro de 2012

2999) A canção ou o disco (10.10.2012)



Um aspecto interessante da criação artística é a importância das obras que são na verdade um conjunto, um feixe de obras menores.  Eu sempre digo aos jovens poetas que a obra de arte é o poema, e não o livro de poemas. Cada poema deve ser trabalhado para si mesmo, sem pensar em mais nada, a não ser o que está sendo dito e como está sendo dito. Quando vamos organizar um livro de poemas, no entanto, é preciso harmonizar essas obras, encontrar um conjunto com variedade, que seja interessante e produza uma impressão forte no leitor. O livro de poemas é uma obra associativa; a gente não o escreve, apenas o organiza em função de um material já existente.

O mesmo se dá com o livro de contos e com o álbum de canções.  A crítica de rock já debateu muito o fato de que quando os Beatles surgiram o veículo das canções de rock era o “compacto” ou “single”, e que um LP ou álbum era um mero empacotamento de 12 canções. Os Beatles foram os primeiros que viram o álbum como um conjunto a ser trabalhado, e criaram o “álbum conceitual”, onde o perfil e a idéia central eram concebidos em primeiro lugar, e depois eram escolhidas ou compostas as canções que iriam corresponder a esse conceito; o exemplo típico é Sgt. Pepper’s.

Na música tivemos momentos em que se alternaram a canção e o álbum como produtos comerciais e como obras de arte. Na literatura, no entanto, o conto raramente foi um produto comercial por si só. Como obra de arte, ele cedo estabeleceu sua importância; mas não como produto. Nenhum leitor comprava um conto: comprava uma revista de contos, ou um livro de contos. A transação comercial do conto existia entre, p. ex., o autor e o editor de uma revista; mas o público só tinha a opção de comprar um conto comprando uma obra coletiva que o incluía.

Agora, com a publicação digital, isto está mudando. No saite de muitas editoras e de livrarias virtuais como a Amazon, pode-se comprar um conto isolado por 0.99 ou 1.99 dólares, o que, dependendo do tamanho e da qualidade da obra, é um ótimo preço. Muitas vezes precisamos ler um conto específico de um autor mas ele só está disponível num volume de 400 páginas que custa 65 reais. Eu pagaria satisfeito 5 e até 10 reais para ler um conto que preciso ler urgentemente, até por motivos de trabalho (inclusão numa antologia, citação num ensaio, etc.). A existência de um mercado específico de contos nunca foi tão possível quanto agora. Seu único defeito é que pode afunilar o mercado aumentando a popularidade dos contos famosos e deixando na obscuridade os contos menos conhecidos, que antes se beneficiavam da inclusão em livros para serem descobertos pelo leitor. 


2998) O autor anônimo (9.10.2012)





A questão dos direitos autorais está ligada, de um lado, à remuneração do trabalho do autor (aspecto material) e a um aspecto que poderíamos chamar imaterial ou simbólico, que é referido nos contratos como “o direito de ser reconhecido como o autor da obra X”. Este é um aspecto interessante porque implica numa vantagem (se não o fosse, não seria reivindicado pelos autores), mas uma vantagem de caráter abstrato. Esse direito e essa vantagem nos parecem indiscutíveis, mas a verdade é que, pelo menos na literatura, nem sempre havia a pressuposição tácita de que o autor gostaria de se identificado com a obra. Às vezes, entretanto, o autor preferia ficar na sombra.

Edgar Allan Poe publicou em 1837 seu primeiro livro, Tamerlane and other poems, assinando-se como “Um bostoniano”. Talvez uma tentativa de sentir-se mais integrado à população de Boston, cidade onde nasceu e com quem manteve uma relação de amor e ódio. Talvez por ter apenas 18 anos, estar servindo ao Exército sob nome falso (“Edgar Perry”) e não querer chamar atenção sobre si próprio. Sempre achei este episódio semelhante ao que ocorreu com Manuel Antonio de Almeida, que publicou em 1852 as Memórias de um Sargento de  Milícias, assinando-se como “Um brasileiro”. Por que?  Já li num ensaio ou prefácio que Almeida limitou-se, como jornalista, a escutar as histórias narradas por um personagem real, e as transpôs para o livro sem muita interferência.. Por isso sentia-se meio desconfortável em apresentar-se publicamente como o inventor daquilo tudo, coisa que não era.

Folheando uma reedição recente do Frankenstein de Mary Shelley vi uma reprodução da página de rosto da edição original de 1818, em três volumes.  O livro saiu sem menção ao autor, o que só ocorreu da segunda edição em diante. Pelo fato de ser uma mulher?  Talvez, mas o livro era prefaciado por Percy Shelley (marido da autora) e trazia uma dedicatória ao pai dela, o filósofo William Godwin.  Hoje em dia, um livro que saia sem indicação do autor, mesmo um nome falso ou um pseudônimo, é quase inimaginável. Livros anônimos são, às vezes, livros que podem produzir reações polêmicas, como os Vestígios da História Natural da Criação, que Robert Chambers publicou anonimamente em 1844, com uma teoria cósmica da evolução.

Entre o autor que receia ser revelado e o autor que não faz a menor questão de ser conhecido vai uma grande distância. Se tomássemos no seu sentido mais amplo as palavra “história” e “canção”, e fosse feito um balanço de muitos séculos, veríamos que numa espantosa percentagem delas nunca se veio a saber quem foi o seu criador. 


2997) Blow-ups de Cortázar (8.10.2012)




Julio Cortázar é sempre incluído no realismo mágico latino-americano, em parte por sua evidente identificação com o gênero, mas sua obra vai muito além disso. Muitos livros seus contêm mais contos policiais (histórias de crime) do que os contos fantásticos ou de terror que seu leitor casual espera encontrar. Em “Apocalipse em Solentiname” (no livro Alguém que anda por aí) Cortázar relata uma visita (real, em 1976) que fez à Costa Rica e à Nicarágua.  Ali, fazendo palestras, sendo recebido por escritores e políticos, conhecendo vilas e cidades diferentes, o personagem Julio Cortázar fotografa crianças, plantações, artesanato. De volta a Paris, ele está no apartamento aguardando a chegada de uma amiga, e resolve projetar os slides que tinha recebido do laboratório.  Ao chegar nas fotos em Solentiname, ele tem um susto. As casas que ele fotografou inteiras estão destruídas pelo fogo ou por bombas; um menino, que ao ser fotografado brincava, agora está caído, com uma bala na testa. Ele continua exibindo os slides, até o último: só destruição.

Ele vai lá dentro, passa uma água fria no rosto. Nisso chega a amiga, ele a deixa na sala e vai preparar um drinque. Ela pega o controle e começa a projetar os slides. Ele não tem coragem de voltar à sala, não quer ver aquilo de novo.  Espera ela terminar, e chega na sala com o drinque. Ela diz que viu todos os slides, e completa: “Lindas as fotos... que povo tão alegre... que lugares bonitos!”.

Se fosse um conto sobre um personagem qualquer, seria um conto banal, um conto em que oscilaríamos, conforme a “fórmula de Todorov”, entre uma explicação fantástica e uma explicação corriqueira (“ele teve apenas uma alucinação causada pela longa viagem e pelo jet-lag”).  Mas Cortázar narra o conto, borgianamente, em ultra-primeira-pessoa. O personagem é ele, a história é autobiográfica. No início do conto ele diz que nas entrevistas coletivas respondeu perguntas que sempre lhe são feitas: se não acha estranho viver em outro país, ou se não acha que seu conto “Las babas del diablo” foi mal adaptado por Antonioni no filme Blow up.  Isto cria um piso mínimo de realidade compartilhada entre o autor, o personagem e o leitor. Pelo fato de ter sido justamente ao escritor Cortázar que sucedeu aquilo, ele não poderia deixar de pensar no filme Blow up, também ele a história de um homem que fotografa, e que ao revelar as fotografias percebe que fotografara um crime. O que ele vê na foto não é mais o que ele imaginava estar vendo no momento do clique. Ou, melhor dizendo: o que a gente vê numa foto é uma soma entre o instante de fotografar e o instante de ver.


terça-feira, 9 de outubro de 2012

2996) Infinitamente complexo (7.10.2012)





O ser humano, dizem alguns autores, existe numa escala que fica exatamente no meio do caminho entre as maiores estruturas físicas conhecidas (chamadas as Muralhas de Galáxias) e as menores (as partículas subatômicas, como os quarks).  Calculando as proporções desses dois extremos, o mundo em que existimos está situado bem no meio do caminho. 

Ou talvez — aí já é especulação minha – isso não passe de uma limitação inevitável do nosso ponto de vista.  Sempre estaremos exatamente no meio do caminho entre quaisquer macro e micro-universos que viermos a perceber, olhando para cima e olhando para baixo.

Outra coisa interessante: as leis físicas que governam o grande Universo e o universo sub-microscópico são parecidas. Tanto os cosmólogos (que estudam a formação das estrelas e galáxias) quanto os físicos-de-partículas (que estudam a estrutura do átomo) usam uma Física que trabalha com as mesmas leis, regras, forças básicas que governam a matéria. 

Mas esse domínio é muito diferente deste em que nós existimos. A Física Quântica, p. ex., e as leis da Relatividade, não têm muito a ver com esse mundo real onde existem pessoas, casas, livros, computadores e latas de cerveja (perdão pela descrição – é do meu mundo que estou falando). Nosso mundo é governado por uma Física raríssima no Universo, a Física de Galileu e de Isaac Newton, mas já descobriu a existência de outra Física, mais formatada pela nossa percepção. 

Só no fim do século 19 começamos a perceber que na escala Macro e na escala Micro as leis eram diferentes, ou melhor, somente nessas escalas percebíamos certas sutilezas.

Teilhard de Chardin, o jesuíta arqueólogo que foi silenciado pelo Vaticano pelo atrevimento de ter idéias científicas (e homenageado por autores de FC como George Zebrowski e Dan Simmons), tem uma imagem interessante a este respeito.  

Dizia ele que o ser humano está nesse limite entre o Infinitamente Grande e o Infinitamente Pequeno – e que essa dimensão em que vivemos pode ser chamada o Infinitamente Complexo.  É como se no mundo dos aglomerados de galáxias e no mundo dos quarks e do bóson de Higgs funcionassem apenas ciências como Física e Química.  O Universo, como um todo, é meramente físico.  

E nesta área intermediária onde estamos ocorre o fenômeno da vida, da matéria orgânica, e tudo que deriva dela: plantas, animais, pessoas, linguagem, civilização, ciência, religião, filosofia, psicologia, artes.  Inventamos dezenas de Ciências (além da Física, que pode ser considerada a ciência da base do Universo) para estudar e tentar entender tudo que acontece apenas em nosso estreitíssimo domínio.