É um dos livros mais famosos e mais comentados de Ítalo
Calvino, e é curioso que o seja, quando rompe com duas das convenções mais
enraizadas da literatura de hoje:
1) a de que um livro precisa ter um gênero nítido,
definido (ser “um romance” ou ser “um livro de contos”, no caso); e
2) a de que um texto de ficção precisa ser uma obra
narrativa, com começo, meio e fim.
As Cidades
Invisíveis (Companhia das Letras, 1991, trad. Diogo Mainardi; edição
original, 1972) se esquiva desses dois compromissos. É uma narrativa múltipla,
auto-geradora, que brota de seu próprio centro, sem avançar na direção de um
final. Não é uma narração, é um conjunto de descrições.
Marco Polo descreve para Kublai Khan as cidades que
encontrou nas suas viagens: esta é a narrativa-moldura que contém todas as
outras, mas é uma narrativa que não se modifica, não “avança”, não contém
conflito algum, nem desenvolvimento, nem resolução. Uma situação estática, de
dois homens trocando idéias, e examinando exemplos – como se percorressem uma
galeria de quadros, comentando cada um deles.
Calvino subdivide o livro em várias categorias: “As
Cidades e os Símbolos”, “As Cidades e a Memória”, “As Cidades e o Desejo”,
etc. São ao todo 55 cidades imaginárias,
bizarras, surrealistas, fantasiosas, utópicas, sinistras...
Sua enumeração faz do livro algo semelhante àqueles
quadros de Brueghel onde o artista acumula, num mesmo espaço, lado a lado,
exemplos de brincadeiras de crianças ou de ditados populares. São as “obras por
agrupamento”, obras cuja natureza não é narrativa (=contar uma história), e sim
descritiva ou enumerativa.
Essa técnica de agrupamento deixa o livro numa oscilação
permanente entre um “romance” e uma “coletânea de contos”, sem se definir
claramente por nenhuma das duas fórmulas costumeiras.
E no entanto, o livro é fascinante, é movimentado, tem
sucesso junto ao público. Por que?
(ilustração: Cecilia Reeve)
Um dos motivos, talvez o principal, é a riqueza da
imaginação de Calvino, uma imaginação exuberante, variada, detalhada, que se
realiza principalmente através de sugestões visuais vívidas, descrições capazes
de valer por narrativas inteiras.
No centro de Fedora, metrópole de pedra cinzenta, há um palácio de
metal com uma esfera de vidro em cada cômodo. Dentro de cada esfera, vê-se uma
cidade azul que é o modelo para uma outra Fedora. (p. 32)
Estátuas e escudos reproduzem imagens de leões delfins torres estrelas:
símbolo de que alguma coisa – sabe-se lá o quê tem como símbolo um leão ou
delfim ou torre ou estrela. Outros símbolos advertem aquilo que é proibido em
algum lugar – entrar na viela com carroças, urinar atrás do quiosque, pescar
com vara na ponte – e aquilo que é permitido – dar de beber às zebras, jogar
bocha, incinerar o cadáver dos parentes. (p. 17)
A riqueza desses detalhes torna este livro equivalente àqueles
quadros em que cada figura minúscula está pintada com verossimilhança
anatômica, de atitude, de figurino; cada pequena ação congelada no momento
sugere todo um enredo; e em cada um desses detalhes há algo de inesperado, de
pitoresco, de absurdo, de característico...
(ilustração: Pooja Patel)
Existe a enumeração incessante de cidades, e em cada
cidade uma enumeração de pessoas, de lugares, de logradouros, de
acontecimentos. O “formato” do livro não é, portanto, o de uma seta que parte
do princípio até atingir o fim. Ele se assemelha a um cacho de bolhas, em que
novas bolhas vão surgindo e crescendo, cada vez mais numerosas, mas sem uma
direção, sem um fim em vista.
As Cidades
Invisíveis é, em tese, um livro que poderia ser indefinidamente prolongado,
multiplicado, sem que se alterasse o seu formato, a sua estrutura interna. Uma
estrutura composta por acréscimo, não por desenvolvimento.
(ilustração: Karina Puente)
Eufêmia (As Cidades e as Trocas, 1) é a cidade onde se
cultua a imaginação, onde basta um mote para gerar uma narrativa:
À noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos
ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz –
como “lobo”, “irmã”, “tesouro escondido”, “batalha”, “Sarna”, “amantes” – os
outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de
amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para
permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar
nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã
numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a
cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” (p.
38-39)
Teodora (As Cidades Ocultas, 4) é a cidade que se dedica
ao extermínio dos animais incômodos, em ondas sucessivas de chacinas: corvos,
serpentes, aranhas, cupins, ratos, todas as espécies daninhas vão sendo
liquidadas em massa, até desaparecerem por completo. Mas...
“Relegada por longas eras a esconderijos apartados, desde que fora despojada
do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna retornava à luz dos
porões da biblioteca onde se conservavam os incunábulos, saltava dos capitéis e
dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos dormentes. As esfinges, os
grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os
unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade.” (p. 145)
Será exagero ver nisto uma “vingança” da literatura
fantástica contra o realismo documental?...
(ilustração: Eda Akaltun)
Cada cidade vale como metáfora ou alegoria de alguma
coisa: algum processo mental, algum arquétipo coletivo, algum exagero bizarro,
alguma demonstração pelo absurdo.
As cidades de Calvino têm todas elas nomes de mulheres: Esmeraldina,
Leandra, Irene, Cecília, Armila, Eudóxia... A certa altura o leitor brasileiro
se depara até com uma Olinda (As Cidades Ocultas, 1).
(ilustração: Leighton Connor)
Por que mulheres?... Talvez porque as cidades são múltiplas,
mercuriais; contraditórias, mas vivendo dessas contradições. Talvez porque
sejam, alternada e simultaneamente, acolhedoras e inabarcáveis. Talvez porque
digamos “minha cidade” como dizemos “minha mulher”, não como indicativo de
posse, mas de amálgama.
Cidades onde predomina um senso de justiça que muitas
vezes não alcançamos, é ela que nos alcança e nos explica a nós mesmos, como em
Berenice (As Cidades Ocultas, 5):
“Na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente
maligna: a certeza e o orgulho de serem justos – e de sê-lo mais do que tantos
outros que dizem ser mais justos do que os justos -- fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e
o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de
estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles” (p. 147)
Calvino tem uma imaginação fractal, no sentido de que
cada detalhe de uma história sua é rico o bastante para sugerir um subtexto tão
complexo quanto a história principal. Daí o sucesso deste livro. Percorrê-lo
não é (como seria num romance convencional) acompanhar a vida de uma pessoa, é caminhar
através de uma cidade.
(ilustração: Sofia Correa)