segunda-feira, 15 de novembro de 2021

4764) A volta ao mundo de W. J. Solha (15.11.2021)

 


Waldemar José Solha, que se assina britanicamente W. J. Solha, está botando na praça mais um livro de poesia, desde vez pela Editora Arribaçã, de Cajazeiras. O livro tem um título intrigante: 1/6 de Laranjas Mecânicas, Bananas de Dinamite. Existe na literatura uma nobre tradição de títulos longos e complicados, que já vem de longe, e passa por nomes ilustres como o de David Foster Wallace e seu Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo.

 

Solha vem construindo esse seu ciclo de poemas-prosas desde Trigal com Corvos (Palimage, 2006), que comentei aqui:

 

https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/03/0920-trigal-com-corvos-2622006.html

 

A este se sucederam: Marco do Mundo (João Pessoa: Ideia, 2012), Esse é o Homem (João Pessoa: Ideia, 2013), e Vida Aberta (Guaratinguetá: Penalux, 2019).

 

Esta pentalogia (por enquanto!) de poemas de Solha, em verso livre, vai se construindo como um tronco de árvore que à medida que se alonga de subdivide em galhos grossos que por sua vez vão de prolongando e se ramificando em galhos mais finos. A substância é a mesma mas em cada um deles (em cada galho, em cada livro; em cada ramo, em cada verso) adquire novas formas e se embebe de outra matéria. A árvore é uma só. O autor é um só, multifurcando-se em idéias que não param de jorrar, de uma mente que trabalha 24 horas por dia. (Não pensem que Solha “apaga” quando dorme.) 

 

A busca poética do autor, que já comentei neste blog, se faz através de um tipo de verso curioso, extenso, quase prosa.  

 

Verso que eu costumo chamar “o verso Whitman”, porque foi nos poemas de Walt Whitman (e de seus seguidores como Álvaro “Fernando Pessoa” de Campos, Allen Ginsberg...) que conheci este tipo de verso-quase-prosa.  Linhas extensas que avançam na direção da margem direita da página, esbarram nela. Às vezes retornam ao começo da margem esquerda, às vezes começam a se quebrar e se acumular em linhas que vão se superpondo no lado direito, até concluírem o que têm a dizer.

 

Sobre a dúvida terrível das aparências,

sobre a incerteza que há em tudo, de que estejamos nos iludindo,

de que talvez nossa confiança, nossa esperança, não sejam mais, afinal, do que meras especulações,

de que talvez a identidade no além-túmulo seja apenas uma linda fábula,

e talvez as coisas que eu percebo, os animais, as plantas, os homens, as colinas, as águas que cintilam e que escorrem,

os céus noturnos e diurnos, as cores, as densidades, as formas, talvez tudo isto seja somente (como sem dúvida o são) meras aparições, e a coisa real ainda está para ser conhecida.

(Walt Whitman, “Of the Terrible Doubt of Appearances”, em Folhas de Relva, trad. BT)

 

Ou na poesia beat de Allen Ginsberg:

 

Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura,

eu os vi famintos, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer,

à procura de uma dose brutal,

hipsters de cabeça angelical, ardendo de desejo pela antiga conexão divina com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,

pobres, esfarrapados, com os olhos fundos, viajando sentados, de cigarro aceso, na escuridão sobrenatural de quartos sem aquecimento, flutuando sobre os tetos da cidade e contemplando o jazz...

(“Uivo”, parte I, trad. BT)

 

Ginsberg dizia que seus versos não se contavam por número de sílabas, mas pela capacidade pulmonar. Um verso durava a quantidade de palavras que ele conseguisse recitar a plenos pulmões antes de precisar tomar fôlego novamente.

 

Em Solha, esses versos quilométricos se alternam – por questões puramente rítmicas e de conteúdo, a meu ver – com versos curtíssimos, de uma linha só, criando estrofes como:

 

Falha das mitologias (da grega e hebraica à tupi-guarani), a de nos terem dito... coisas dignas de Dali:

que Deus teria feito o homem do barro,

como o oleiro faz o jarro

...e a vida,

em nós, teria sido inserida – por uma das generosidades divinas –

através de um sopro nas... narinas

ou a nós teria sido dado o fogo dos deuses, roubado,

...algo,

sempre,

à parte,

quando – noutra via – vemos que – por infinitos fatores – da geosfera (passada uma eternidade) se criou uma biosfera, de que surgiu a ...noosfera,

e o fenômeno humano – que se alimenta do que vem do Sol ... e do chão – é a própria Terra

a produzir... Ciência,

...a turbulência – incluindo guerra e tudo mais em que a humanidade “erra” – e Arte.

(1/6 de Laranjas..., págs. 26-27)

 

Acho que não é mero acaso a semelhança de tema e de métrica entre poemas assim. São poetas que tentam abarcar de uma só vez o mundo inteiro, ou uma época inteira, ou a totalidade de uma experiência humana neste breve piscar de olhos que é a vida – uma treva, um vislumbre, e a treva novamente.

 

O mundo é uma chuva constante de imagens e de idéias que o poeta registra sem parar. Tem um verso de Dante, que Ítalo Calvino cita em seu Seis Propostas Para o Próximo Milênio, ao discutir seu conceito de “Visibilidade”: “Chove dentro da alta fantasia” (“Poi piovve dentro a l’alta fantasia”, Purgatório, XVII, 25).

 

Calvino explica que “a imaginação é um lugar dentro do qual chove”, quer dizer, chovem imagens, chovem temas, assuntos, histórias, personagens, enredos, situações, idéias, associações de idéias... Chove assim, na mente dos poetas.


(Solha, no filme O Som ao Redor)


Como quando Solha relembra suas viagens de trem:

 

(...) ou,

fora da vida urbana,

na Estrada de Ferro Sorocabana,

entre os troncos e frestas em fila, em florestas de eucaliptos,

o sol – entre ecos de apitos – a correr ao fundo,

a vinte e quatro fotogramas,

fasciculados

por

segundo.

(pág. 14)

 

É o cinema da vida, metralhando os olhos ansiosos do jovem que se educa na marra, na fome insaciável de ficar-sabendo, nas enciclopédias em fascículos, nas sessões de cinema-poeira, nos discos de 78 rotações... Na própria vida de rapaz de classe-média-trabalhadora na distante Sorocaba, a quem um dia o concurso do Banco do Brasil oferece a possibilidade de se transferir para Pombal, no sertão da Paraíba, pra lá do fim do mundo, um lugar onde (parafraseando o que o poeta diz à página 16) “o chão alcança o horizonte e dá a volta por cima”.

 

Carlos Drummond dizia, memoravelmente, que “a Vida, quando vai aos livros, é para voltar mais Vida ainda”. O mergulho eloquente e entusiástico de Solha nos livros, nos álbuns de gravuras, nos filmes, nas telas, é um testemunho de que essas coisas de Arte não nos afastam da realidade, a não ser quando é este o propósito de quem as usa. A Literatura nos devolve às coisas cruas e cruéis do mundo, como quando o poeta questiona os próprios Evangelhos:

 

(...) ao que pergunto,

sem delírio:

o que ...são ...as três horas ...desse martírio ...fecundo – pois pra “Salvar o Mundo” - ...ante as... vinte e seis... mil, viu?,

em que o câncer – corrosivo – atormentou e matou minha mãe,

...sem qualquer ...objetivo?

(pág. 53)

 

Qual o objetivo disto tudo? Por que tanta beleza, ao lado de tanto sofrimento inútil? Por que tantas vidas notáveis e produtivas, em meio a tantos milhões de vidas que aparentemente nada trouxeram para si e para ninguém? Por que tantos sistemas religiosos, políticos, estéticos, filosóficos, tentando explicar ou direcionar esse tsunami de corpos de carne e osso, bilhões deles, nascendo, agitando-se, entrematando-se, reproduzindo-se, desmoronando para adubar a terra, e no meio disso ainda tendo a capacidade de produzir tanta beleza---

 

(...) como foi o da transparência dos tecidos,

...esculpida ...em pedra,

com arte e...

perspicácia,

na Vitória de

Samotrácia.

(pág. 23)

 

Não sabemos. E tomara que ninguém jamais descubra, para que possamos continuar perguntando.

 

A consciência individual é este milagre de cada um de nós: uma coisica minúscula, seletiva, “destamanhinho”, um pentelhésimo de micróbio: mas é tudo que temos e tudo que somos, porque nenhum ser humano até hoje conseguiu sair de dentro de si mesmo.

 

A consciência coletiva é um segundo milagre, que nos permite entender algo que alguém escreveu a dez mil quilômetros ou há quatro mil anos. O milagre que nos permite não apenas ler o que o mundo nos diz mas também escrever sobre ele. Vivemos mergulhados numa ignorância protetora, não sabemos 99% dos processos que agora mesmo estão fervilhando atarefados dentro do nosso corpo (circulação, respiração, digestão, guerra do sistema imunológico contra os exércitos insones de vírus que tentam nos fazer naufragar).

 

(...) ou

se alguém,

de volta pra casa,

uma hora depois de sair,

sentisse,

de repente,

estar... mil e setecentos quilômetros à frente,

por causa da rotação da Terra...

(pág. 69)

 

Não, não sabemos. Vivemos num casulo de individualidade que nos escuda contra “o céu que nos protege”, que nos abriga contra “o som ao redor”, que nos mantém abençoadamente ignorantes de tudo que não somos capazes de abarcar, de conter, de comportar.

 

Por isto são importantes estes registros das coisas irrelevantes da vida concreta, de toda coisinha (como dizia Augusto dos Anjos) “tísica, tênue, mínima, raquítica”, porque quem quiser que sonhe com a permanência, mas para elas a sua glória é passar.

 

(...) o que o faz ...maior que aquele da foto em que se vê Nova Iorque e seu mundo ao fundo,

entre o rastro,

n’água,

de um barco – no primeiro plano – que acaba de passar,

e o de vapor,

que ele deixou

no ar.

(pág. 79)

 

Se nossa vocação fosse a permanência e a imortalidade, a morte seria a derrota, o fracasso; mas sabemos que não é assim. A nossa vocação é a passagem. É o fluxo, é o desfile. A Arte fica, e só fica porque nós passamos. O que salva nossas alegorias é que não somos um Bloco Do Eu Sozinho, somos uma “mocidade independente” que não desfila para “a injustiça dos prêmios”, mas para não deixar o samba morrer.