sexta-feira, 21 de setembro de 2012

2983) "Um Livro de Nonsense" (22.9.2012)




Entre os muitos centenários comemorados este ano (Luiz Gonzaga, Nelson Rodrigues, Adoniran Barbosa, Jorge Amado, Herivelto Martins, Mazzaropi, etc.) há um (na verdade, um bicentenário) que quase passava despercebido em nosso país, por ser de um poeta estrangeiro e obscuro. Em 1812 nasceu Edward Lear, poeta e ilustrador inglês, um dos grandes mestres do “nonsense” ou do absurdo.  Lear foi apontado como influência em autores tão diferentes quando John Lennon e James Joyce, e embora não tenha sido nunca um dos “grandes nomes” da poesia inglesa tem em torno de si um pequeno culto de admiradores dedicados.

Tão dedicados que enfrentam a complicada tarefa de verter para outras línguas os seus versinhos sem sentido, que ele mesmo ilustrava de maneira muito divertida. Lear cultivou o limerick,, uma forma de poesia inglesa que consiste numa estrofe de cinco versos onde o 1, o 2 e o 5 são longos e rimam entre si, e o 3 e o 4 são curtos e rimam um com o outro. O limerick é tipicamente uma estrofe meio absurda e meio obscena para ser cantada em público enquanto se toma cerveja num bar. Para ter uma idéia de como se canta, lembrem a melodia do desenho animado de Popeye, aquela que diz “Oh Popeye the sailor man...”  Um limerick se encaixa aproximadamente numa melodia como aquela.

Vinicius Alves arriscou-se a traduzir e homenagear Lear em seu centenário, e publicou este ano Um Livro de Nonsense (Florianópolis: Bernúncia, 2012), um livro destinado a “crianças de 8 a 88 anos”, com 44 limericks de Lear. O livro traz na página esquerda o original inglês (com a ilustração do autor) e na página oposta a tradução, que sempre toma inúmeras liberdades, mantendo uma certa semelhança com o original mas pulando para direções inesperadas. Lear empregava muitos nomes próprios (pessoas e lugares) em suas rimas, e o tradutor brasileiro vê-se forçado a inventar outros, que sugerem novas rimas, e assim por diante. Vinicius Alves também interfere (de forma positiva) na estrutura do limerick de Lear, o qual tinha o hábito de repetir na última linha a frase da primeira; alguns tradutores optam por evitar essa repetição, criando um verso novo. (Eu teria feito o mesmo.)

Veja-se este exemplo: “There was an Old Man of Berlin / whose form was uncommonly thin; / till he once, by mistake, / was mixed up in a cake, / so they baked that Old Man of Berlin”, que vira: “Havia um Velhinho em Berlim, / mais magro que o meu dedo mindim, / até que num dia errado / à massa ele foi misturado, / pelas doceiras que faziam quindim”. O divertido nessas traduções é ser fiel, não às frases, mas ao espírito lúdico, trocadilhesco e irreverente do original.

2982) Escrever e respirar (21.9.2012)



(Londres, 1940)


Suponhamos que daqui a 100 anos a atual crise ambiental se agravou a um tal ponto que a poluição envenenou a atmosfera de modo irremediável. Para sobreviver, a humanidade construiu imensas usinas produtoras de cilindros de oxigênio, que são acoplados aos nossos narizes desde o momento em que o cordão umbilical do bebê é cortado na maternidade. Todo ser humano vive feito um mergulhador, com aquele trambolho de metal numa mochila às costas e os tubos flexíveis conduzindo aos pulmões o gás indispensável à vida.  É de graça? Quem dera. As indústrias e os governos cobram, e cobram caro por isso. Mas todo mundo paga, ou melhor, quem está vivo é porque consegue pagar. Os que não conseguiram não pertencem mais à paisagem.

Um belo dia, um grupo de indústrias independentes inventa um processo químico de limpar a atmosfera e num piscar de olhos, em 20 ou 30 anos, o ar volta a ser uniformemente respirável, ou pelo menos fica igual a este ar que respiramos em 2012. E agora? O mundo entra em crise.  Dezenas de milhões de desempregados superlotam a Praça Tahir, a Plaza de Mayo, Wall Street, o Vale do Anhangabaú. “Queremos de volta a indústria do oxigênio”, bradam eles, arquejantes (e meio bêbados, claro, seus pulmões não estavam acostumados àquela overdose). Os governos arrancam os cabelos porque vão ficar sem os 71% de impostos que cobravam sobre a indústria respiratória. Filósofos ponderam: “Respirar de graça empobrece o senso de responsabilidade dos cidadãos. E esse desperdício de oxigênio não-respirado, francamente!”.

É uma crise assim que a tecnologia digital está precipitando num mundo que estava deixando de ter Cultura para ter Indústria Cultural. Os aspectos industriais e suas prioridades tomaram a frente, e a gente criou este universo surrealista em que a Cultura, que é o compartilhamento livre de informações e contatos entre as pessoas e os grupos, virou uma “commodity”, e nos preocupamos mais com a geração de empregos do que com a geração de idéias. É uma grave crise para todo mundo que ganhava dinheiro com música, filmes e livros – por uma coincidência sinistra, as três coisas com que eu próprio ganho a vida. O que fazer?  Ser contra? Não, amigo. Descobrir maneiras alternativas de ganhar dinheiro. Cultura é oxigênio, não pode ser nem estatizada nem privatizada, pertence aos animais individuais que somos, e não a Instituições. Na nossa cultura, aceitamos como normal que não se ganhe dinheiro para pular carnaval ou para fazer sexo.  Por que essa atitude não pode ser estendida a outras atividades?  Por que tudo tem que ser medido em termos de dinheiro?  Há mil outras maneiras de ganhar dinheiro.